ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 2

Aterosclerose coronariana obstrutiva fatal em criança de 9 anos: relato de caso

Coronary disease with fatal disclosure in 9 year old child: a case report

RESUMO

O presente caso é de uma criança de 9 anos com dor torácica e sinais clínicos de hipercolesterolemia. Durante a investigação foi confirmada hipercolesterolemia primária, além da presença de valva aórtica bicúspide e doença arterial coronariana severa, sendo esta a causa da dor torácica. Infelizmente, o paciente evoluiu a óbito durante o cateterismo cardíaco, apesar da implantação de dispositivo tipo stent e realização de ressuscitação cardíaca. A doença aterosclerótica é rara entre crianças, sendo comumente associada a formas familiais de hipercolesterolemia. A presença de valva aórtica bicúspide é uma alteração congênita comum, porém raramente é descrita a associação com hipercolesterolemia familiar. Dor torácica é uma queixa comum na população pediátrica e, ainda que na imensa maioria dos casos não esteja associada à causa cardíaca, deve ser investigada quando há um cenário clínico de hipercolesterolemia, especialmente as formas familiares.

Palavras-chave: Doença da Artéria Coronariana, Criança, Hiperlipoproteinemia Tipo II, Hipercolesterolemia.

ABSTRACT

This article is about a 9-year-old male child with chest pain and clinical signs of hypercholesterolemia. During medical investigation we confirmed primary hypercholesterolemia and diagnosed bicuspid aortic valve and severe coronary disease, this being the cause of chest pain. Unfortunately, the patient evolved to death during the procedure, despite a successful coronary stent implantation and cardiac resuscitation. Atherosclerotic disease is rare among children, being commonly associated to familial forms of hypercholesterolemia. Bicuspid aortic valve, on the other hand, is a common congenital heart disease, but the association between both is rarely described. Chest pain is a common cause of complaint, and although in the vast majority of cases it is not associated with cardiac etiology, in the setup of hypercholesterolemia, especially familial forms, it should prompt the pediatrician attention to threatening etiology.

Keywords: Coronary Artery Disease, Child, Hyperlipoproteinemia Type II, Hypercholesterolemia.


INTRODUÇÃO

A dor torácica em pacientes pediátricos apesar de comum1 deve ser investigada detalhadamente para a causa cardíaca, quando no contexto da hipercolesterolemia familiar2. Essa condição pode gerar agravamentos raros em crianças, como a aterosclerose coronariana obstrutiva3. Já a valva aórtica bicúspide é uma anormalidade congênita comum, entretanto, a associação com hipercolesterolemia raramente é descrita na literatura4. O objetivo desse artigo é relatar o caso de um paciente pediátrico com aterosclerose coronariana obstrutiva associada à valva aórtica bicúspide.


RELATO DE CASO

Em maio de 2018, o paciente KSM, procedente de Novo Repartimento, Pará, foi encaminhado à Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (FHCGV) em Belém, Pará, por ter apresentado dores no peito. Na consulta, a mãe informou que cinco meses antes o paciente apresentou um episódio de dor torácica (dor retroesternal sem irradiação) seguida de desmaio, enquanto estava brincando. No mesmo dia, procurou atendimento médico em um posto de saúde do seu município, distante cerca de quinhentos quilômetros da capital, onde realizou um eletrocardiograma, o qual teve resultado normal (SIC). No momento do exame, o médico responsável auscultou um sopro cardíaco e solicitou um ecocardiograma transtorácico.

O exame prescrito foi realizado em sua cidade de origem dois meses após o primeiro episódio de dor torácica seguida de síncope e o paciente foi encaminhado à FHCGV, serviço de referência em cardiologia do Estado do Pará, para avaliação com um cardiologista pediátrico. A mãe relatou também que a criança persistiu apresentando episódios de dores torácicas aos esforços, que melhoravam ao repouso, porém sem ter novos desmaios.

Quanto aos antecedentes, a mãe relatou que o paciente apresentou uma internação prévia por pneumonia aos quatro anos de idade. Foi negado qualquer antecedente familiar digno de nota. O diagnóstico alimentar foi de erro qualitativo (pouca ingesta de vegetais), enquanto que a avaliação nutricional mostrou que o paciente estava em estado de magreza com peso = 21,5kg; altura = 125cm; IMC de 13,76kg/m2 (situado entre percentil 15 e percentil 3 para idade). A avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor mostrou adequação para a idade.

Ao exame físico o paciente apresentava-se em bom estado geral, eupneico, acianótico, normocárdico, com xantomas em face extensora de cotovelos e joelhos (Fig 1). A ausculta cardíaca mostrava sopro sistólico ejetivo (4+/6+), com presença de frêmito, em borda esternal direita alta. A ausculta pulmonar não tinha alterações e os pulsos estavam medianos, simétricos e palpáveis em membros superiores e inferiores. O abdome se mostrou sem alterações.


Figura 1. Xantomas no joelho (A) e cotovelo (B).



Foi feita uma radiografia de tórax que mostrou discreto aumento de ventrículo esquerdo. O eletrocardiograma mostrou alterações de repolarização de onda T de V1 a V3 e sinais de sobrecarga ventricular esquerda. Já o ecocardiograma revelou uma comunicação interatrial ostium secundum de 4mm, valva aórtica bicúspide com calcificação dos folhetos e limitação da mobilidade com gradiente sistólico máximo de 77mmHg e médio de 47mmHg e fração de ejeção normal com leve aumento de cavidades esquerdas. O exame laboratorial mostrou colesterol total de 720mg/dl (HDL: 34mg/dl; LDL: 644,7mg/dl; VLDL: 41,3mg/dl; triglicerídeos: 219mg/dl).

Diante do diagnóstico de hipercolesterolemia primária, foi iniciado sinvastatina 10mg/dia e devido à associação com valva aórtica bicúspide e estenose aórtica grave foi indicado estudo hemodinâmico. O estudo mostrou irregularidades parietais em aorta torácica, valva aórtica espessada e com mobilidade reduzida e lesão obstrutiva acentuada em óstios de coronária direita e tronco de coronária esquerda. Durante a realização do procedimento o paciente apresentou bradicardia e hipotensão refratárias, foi implantado um stent em tronco de coronária esquerda para melhorar a circulação sanguínea local, porém o paciente evoluiu a óbito (Fig 2).


Figura 2. Cateterismo cardíaco mostrando: (A) irregularidades na parede aórtica, lesões obstrutivas no tronco das coronárias direita (B) e esquerda (C); resultado após implante de dispositivo tipo stent em tronco da coronária esquerda (D).



COMENTÁRIOS

Na pediatria, a dor torácica é uma queixa comum1. Ainda que em muitos casos a causa não seja um problema cardiovascular, deve-se buscar um diagnóstico preciso e excluir problemas que possam gerar situações potencialmente fatais1, como a doença arterial coronariana, apresentada no caso, esteja ela associada ou não a cardiopatias congênitas.

As alterações no metabolismo dos lipídeos são importantes fatores de risco de doença arterial coronariana5. Embora o processo de formação da placa ateromatosa se inicie ainda na infância, as manifestações clínicas da doença arterial coronariana aguda ou estável normalmente ocorrem na fase adulta5. Na maioria dos casos, o aumento dos lipídeos circulantes se dá por causas secundárias como o aumento da ingesta na dieta, sedentarismo, diabetes e hepatopatias crônicas6. Entretanto, a hipercolesterolemia primária, de origem genética, pode provocar aterosclerose clínica em idade bastante precoce7.

Na população pediátrica, a recomendação para avaliação dos níveis séricos de colesterol e triglicerídeos é entre os nove e onze anos e entre dezessete e vinte e um anos6. Já entre dois e dez anos de idade, essa monitoração é feita em situações onde existem parentes de primeiro grau com, principalmente, formas graves de dislipidemia; clínica de dislipidemia; outras doenças como hipotireoidismo, síndrome nefrótica, imunodeficiência e hipertensão arterial sistêmica, bem como uso de drogas que possam aumentar os níveis de colesterol2,6. Da mesma forma, é obrigatória a monitoração cuidadosa de crianças acometidas de dislipidemia familiar2. Apesar de encontrar-se faixa etária para triagem laboratorial e de apresentar clínica de dislipidemia (xantomas), o paciente não tinha relato de investigação pregressa, o que retardou o diagnóstico, permitindo a evolução do quadro.

A hipercolesterolemia familiar (HF) é uma doença genética com padrão autossômico dominante, onde ocorre uma redução do clearence hepático do LDL-colesterol (LDL-c) devido a uma série de defeitos no gene codificador do receptor dessa substância6. Há então o acúmulo de LDL-c na circulação sistêmica, o que acarreta todos os efeitos deletérios associados à condição. Pode ocorrer na forma heterozigótica, com incidência estimada entre 1:250-1:500 indivíduos, e na forma homozigótica, mais rara e de manifestações clínicas mais graves, com incidência variando entre 1:160.000 até 1:1.000.0006,8.

O diagnóstico de HF deve ser suspeitado na presença de sinais clínicos de depósitos extravasculares de colesterol, como xantomas, xantelasmas e arcos córneos, assim como relato de parentes em primeiro grau com histórico precoce de doença arterial coronariana e colesterol elevado8. Níveis séricos elevados de colesterol total e fração LDL, o último com valores acima de 150-190mg/dl, em duas ocasiões sucessivas e na ausência de causas secundárias, aumentam a possibilidade de causa genética6,8. No caso em questão, ainda que o paciente não tivesse histórico familiar digno de nota, diante do quadro clínico fortemente sugestivo, com presença de xantomas, da ausência de fatores que levantassem a possibilidade de causas secundárias (obesidade, uso de medicação, outra doença de base) associado aos exames laboratoriais alterados, foi feito o diagnóstico de hipercolesterolemia primária.

A doença arterial coronária em crianças também é rara e está relacionada principalmente a anomalias congênitas ou doença da Kawasaki1,9. Casos relacionados à placa de ateroma são ainda mais raros, e na população pediátrica estão relacionados à hipercolesterolemia familiar3. Sintomas como dor torácica, cansaço e síncope apontam para isquemia miocárdica e a presença de xantomas em membros, além de níveis séricos elevados de LDL colesterol e triglicerídeos, aumentam a probabilidade de doença arterial coronária3,7,10. O diagnóstico definitivo da doença arterial coronária é feito pela angiografia coronária, para definição das lesões e intervenção terapêutica1.

O tratamento é baseado em mudança do estilo de vida e no uso de estatinas orais2,8. O tratamento não-medicamentoso consiste em exercícios físicos, dieta com baixos teores de gordura saturada e maior ingesta de vegetais, peixes, etc.8. Ainda que haja controvérsia quanto à idade de início do tratamento medicamentoso2,8, há consenso no uso de estatinas, ezetimibe e sequestrantes de ácidos biliares2,8. O objetivo terapêutico é a redução do LDL-c a níveis tão baixos quanto 110-130mg/dl, para redução do risco cardiovascular a longo prazo2,8. Infelizmente, no caso descrito o jovem teve uma complicação que impediu uma evolução no tratamento.

A valva aórtica bicúspide está fortemente associada a doenças da aorta10, como a estenose aórtica apresentada pelo paciente, além de ter um papel reconhecido no surgimento precoce de doença arterial coronariana11. O surgimento mais precoce de placas de aterosclerose, na aorta e nas artérias coronárias de pacientes com hipercolesterolemia familiar já é descrito em literatura12. A associação incomum e rara entre esses dois fatores de risco para doença arterial coronariana no paciente pode ter sido fundamental para o surgimento de forma tão precoce do quadro clínico apresentado.


CONCLUSÃO

A dor torácica em pacientes pediátricos é um sintoma comum e que não deve ser desvalorizada pelo médico pediatra. Apesar da causa raramente ser um problema cardiovascular, em algumas situações, como as apresentadas nesse caso, podem sinalizar a existência de quadros potencialmente fatais. A atenção na história do paciente e no exame físico, auxiliados por exames laboratoriais e de imagem, devem guiar o médico pediatra, a fim de que obtenha um diagnóstico preciso, no objetivo de evitar desfechos trágicos e garantir um tratamento adequado aos pacientes.


REFERÊNCIAS

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12. Greco M, Robinson JD, Eltayeb O, Benuck I. Progressive aortic stenosis in homozygous familial hypercholesterolemia after liver transplant. Pediatrics. 2016 Nov;138(5):e20160740.










1. Fundação Hospital das Clínicas Gaspar Vianna, Departamento de Pediatria - Belém - PA - Brasil
2. Fundação Hospital das Clínicas Gaspar Vianna, Departamento de Hemodinâmica - Belém - PA - Brasil

Endereço para correspondência:
Lucas Santiago Santos do Carmo
Fundação Hospital das Clínicas Gaspar Vianna
Tv. Alferes Costa, S/N, Pedreira
Belém - PA. Brasil. CEP: 66083-106
E-mail: lucasantiago@gmail.com

Data de Submissão: 25/07/2019
Data de Aprovação: 10/09/2019