ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Síndrome de Eisenmenger oligossintomática em adolescente

Oligosymptomatic Eisenmenger syndrome in adolescent

RESUMO

A Síndrome de Eisenmenger (SE) caracteriza-se pela elevação da pressão pulmonar a níveis sistêmicos, causada pelo aumento da resistência vascular pulmonar, com shunt reverso (direita-esquerda) ou bidirecional. É uma entidade que ocorre em consequência de defeito congênito não reparado, sendo seu diagnóstico baseado em clínica, ecocardiograma e cateterismo cardíaco. Apresentamos um caso de uma adolescente com quadro de comunicação interventricular (CIV) associado à SE não corrigida cirurgicamente. Seu diagnóstico foi realizado aos 4 anos e dois meses, com perda de seguimento após um ano de acompanhamento. Retornou ao serviço após 7 anos, com dispneia aos grandes esforços, piora dos padrões ecocardiográficos, hipertensão pulmonar e déficit pônderoestatural. Sem indicação cirúrgica, segue em acompanhamento, aos 13 anos, com padrão de dispneia semelhante, eutrófica e com desenvolvimento normal. A SE é um quadro extremo, em que, por um defeito cardíaco prévio, a resistência vascular pulmonar se torna maior que a sistêmica e o fluxo se inverte de maneira irreversível, levando a um quadro clínico de alta morbidade, principalmente devido à hipoxemia. Além do tratamento cirúrgico precoce, algumas opções medicamentosas podem ser utilizadas, como: bosentana, PDE-5i, prostanoides e sildenafila associada com bosentana. A bosentana é o fármaco de primeira escolha, sendo que outras opções devem ser avaliadas individualmente. Apesar das linhas terapêuticas citadas, evitar que os defeitos cardíacos congênitos cheguem a esse quadro dramático é essencial. A evolução oligossintomática do caso descreve uma possibilidade da história natural desta entidade.

Palavras-chave: Complexo de Eisenmenger, Hipertensão Pulmonar, Cardiopatias.

ABSTRACT

Eisenmenger syndrome is characterized by high pulmonary pressure, caused by a high pulmonary flow state, with inverted shunt (right-to-left) or bidirectional. The condition is a complication of a congenital heart defect not repaired and the diagnosis is based on clinic, echocardiogram and cardiac catheterization. The case reported is a 13 years old teenager that had lost the follow-up a year after the diagnosis with 5 years old. She returned with dyspnea, worsening of echocardiographic patterns, pulmonary hypertension and under weight. Without surgical indication, the patient were followed up clinically for a year and evolved with a similar dyspnea pattern, healthy weight and normal neurological development. ES is an extreme condition in which, due to a previous cardiac defect, pulmonary vascular resistance becomes greater than systemic resistance and the flow reverses irreversibly, leading to high morbidity, mainly due to hypoxemia. Besides the surgical treatment, some drug options may be used, such as: bosentan, PDE-5i, prostanoids and sildenafil associated with bosentan. Bosentan is the first choice drug, the others should be evaluated individually. Despite the aforementioned therapeutic guidelines, it is essential to avoid congenital heart defects from reaching this dramatic picture. The oligosymptomatic evolution of the case describes a possibility of the natural history of this entity.

Keywords: Eisenmenger Complex, Hypertension, Pulmonary, Heart Diseases.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Eisenmenger (SE) caracteriza-se pela elevação da pressão pulmonar a níveis sistêmicos, causada pelo aumento da resistência vascular pulmonar, com shunt reverso (direita-esquerda) ou bidirecional. Tal elevação é causada por um grande defeito congênito não reparado, intra (comunicações interventriculares) ou extracardíaco (interposição de grandes vasos)1,2. As principais manifestações clínicas desta entidade são: dispneia aos esforços, cianose, síncope, dor torácica e arritmias. O diagnóstico é feito pela clínica, somado à realização de exames, como o eletrocardiograma e o cateterismo cardíaco, que fecha o diagnóstico3. A SE, com prevalência exata ainda desconhecida, é uma condição progressiva, irreversível e associada à alta mortalidade e morbidade quando não diagnosticada precocemente1. Por esse motivo, é de grande importância a prevenção do quadro, com a realização de cirurgia corretiva antes de surgirem as alterações pulmonares. Uma vez que a síndrome tenha sido desenvolvida, não existe tratamento específico, salvo transplante. O tratamento medicamentoso é baseado em suporte clínico3. O tratamento da SE é complexo e com resultados limitados. É essencial evitar qualquer fator que possa descompensar a fisiologia equilibrada.

Esse trabalho tem como objetivo descrever um caso de síndrome de Eisenmenger com apresentação atípica (oligossintomática) diagnosticada em hospital universitário brasileiro.


RELATO DE CASO

Paciente GVS, feminina, 13 anos, natural de Goiânia/GO, procedente de Abadia de Goiás, foi encaminhada ao ambulatório de pediatria aos 4 anos e 2 meses por quadro de agenesia de rim esquerdo, diagnosticado desde a gestação. Como comorbidades, apresentava CIV, atresia de esôfago (corrigida com 9 dias de vida) e assimetria de extremidades (escanometria mostrou membro inferior esquerdo 3,5cm maior que o direito), resultando no diagnóstico de associação de VACTREL. Apresentava desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) normal e função renal normal. Em investigação genética foi excluída qualquer tipo de síndrome cromossômica.

Ao ecocardiograma apresentou CIV de tamanho moderado com shunt bidirecional, ventrículo direito (VD) com moderado aumento de volume e hipertensão de artéria pulmonar (HAP) importante, com indicação de cirurgia para CIV. Apesar de realizado diagnóstico de síndrome de Eisenmenger no período, não realizou cirurgia e perdeu segmento após um ano.

Após 7 anos, retornou ao serviço com déficit pônderoestatural e dispneia aos grandes esforços e emoções fortes. Foi avaliada pelas equipes de pneumopediatria, cardiologia e endocrinopediatria. Apresentava velocidade de crescimento limítrofe, que foi associada à síndrome de Eisenmenger. Realizado novo ecocardiograma que mostrou defeito do septo atrioventricular com CIV grande, shunt bidirecional mais cleft mitral incompetente com regurgitação moderada, FE: 71%, PSVD: 98mmHg, importante aumento de VD, discreta dilatação biatrial. Realizou cateterismo que evidenciou HAP pré-capilar com teste de vasorreatividade com queda de 32% na resistência vascular pulmonar, Qp/Qps<1 e sem indicação cirúrgica.

Paciente apresentou telarca aos 10 anos e menarca aos 11, sendo encaminhada ao ambulatório de ginecologia para iniciar anticoncepção de alta eficácia pela impossibilidade de poder gestar, notícia que a afetou emocionalmente. No momento deste relato, paciente estava com 13 anos, eutrófica, M3P3, dispneica aos grandes esforços, sem uso de medicação e sem uso de método contraceptivo. Está em acompanhamento multiprofissional, sem mais queixas.


COMENTÁRIOS

A SE é um quadro extremo, em que, por um defeito cardíaco prévio, a resistência vascular pulmonar se torna maior que a sistêmica e o fluxo se inverte de maneira irreversível, levando a um quadro clínico de alta morbidade, principalmente devido à hipoxemia1,2.

Vários defeitos cardíacos congênitos estão associados a um risco aumentado de desenvolver essa síndrome, sendo os principais a comunicação interventricular (CIV), persistência do ducto arterioso e defeitos do septo interventricular1,4. Mostrando a importância de tal afecção, estima-se que 10% dos pacientes com CIV (como no caso aqui relatado), após 2 anos de idade, possam evoluir para SE. Porém, nos últimos anos, com o avanço da cirurgia cardíaca e melhoria no atendimento desses pacientes, os casos de SE têm reduzido consideravelmente5.

O diagnóstico é baseado inicialmente em características clínicas. A dispneia aos esforços é comum, e foi o único sintoma relatado por GVS ao procurar novamente acompanhamento médico. Normalmente outros sinais e sintomas estão presentes, como cianose, síncope, dor torácica, arritmias e, mais raramente, falência cardíaca direita. Hemograma, eletrocardiograma e ecocardiograma também fazem parte da investigação. A cianose e a eritrocitose são marcantes na SE e raramente ocorrem nos pacientes com outras causas de HAP2. Apesar de todos os outros, a cateterização cardíaca, com a medição da pressão arterial pulmonar, é exame o utilizado para confirmar o diagnóstico3.

O tratamento da SE é complexo e com resultados limitados. É essencial evitar qualquer fator que possa descompensar a fisiologia equilibrada. A desidratação, a alta altitude e o exercício isométrico moderado a grave devem ser evitados. Pelo mesmo motivo, a gravidez é estritamente contraindicada para essas pacientes, levando a uma mortalidade de 30% a 50%6. Tal informação pode afetar bastante as pacientes, como ocorreu nesse caso descrito, e, por esse motivo, os riscos devem ser explicados de forma cuidadosa e detalhada.

Como medidas de suporte, pode-se tentar o tratamento medicamentoso. O uso de antagonistas de receptores de endotelina (ERA) como bosentana foi a primeira terapia avançada a ser estudada em SE. O Bosentan Randomized Trial of Endothelin Agonist Therapy-5 (BREATHE-5) mostrou que seu uso melhora os sintomas e a capacidade para realização de atividade física, através da redução da RVP e do aumento do fluxo sanguíneo pulmonar. Atualmente, as diretrizes europeias apoiam o uso de bosentana como tratamento de primeira escolha para pacientes com classe funcional (CF) III-IV7-9.

Apesar de poucos ensaios clínicos randomizados, há também evidências dos efeitos benéficos dos PDE-5i e dos prostanoides em pacientes com SE em CF III. Porém, como os níveis de evidência são menores do que com o uso de ERAs, os PDE-5i são recomendados como terapia de segunda linha7-9.

O uso combinado de diferentes tipos de terapias avançadas para maximizar o benefício clínico pode melhorar os resultados do tratamento e do prognóstico. Um estudo randomizado duplo-cego avaliou o efeito da combinação de sildenafila e bosentana em 21 pacientes com SE (NYHA II e III). Nesse estudo, evidenciou-se que o único benefício da terapia combinada foi em relação à saturação periférica de oxigênio10,11. Estudo retrospectivo com 121 pacientes mostrou que o uso de sildenafila suplementar, após falha da terapia única com bosentana, melhorou a performance dos pacientes, com uma diferença significativa na sobrevida de 1 a 3 anos no grupo de terapia avançada em comparação com o grupo de terapia não avançada4,12.

Segundo alguns estudos, os pacientes portadores de disfunção ventricular direita podem se beneficiar da suplementação domiciliar de oxigênio, o que ajudaria, também, a reduzir a progressão da eritrocitose, diminuindo a necessidade de hemodiluições12.

A anticoagulação e antiagregação plaquetária ainda é um assunto controverso que necessita de mais estudos. A decisão sobre o estabelecimento da terapêutica anticoagulante em crianças e adolescentes depende da análise de cada caso individualmente. Não há evidências de que drogas antiagregantes plaquetárias utilizadas isoladamente possam ter impacto significante sobre a evolução desses pacientes. O uso combinado, entretanto, pode ser justificável12. Além do tratamento medicamentoso, também podem ser utilizados procedimentos intervencionistas, como a atriosseptostomia por balão e os transplantes naqueles casos refratários a outros tratamentos5. Nos pacientes sem disfunção ventricular esquerda, em que ainda é possível a correção do defeito cardíaco, o transplante pulmonar concomitante ao reparo do defeito anatômico pode ser realizado12. O transplante coração-pulmão é uma outra opção, sendo um tratamento reconhecido como de sucesso na SE. É o único procedimento capaz de melhorar a qualidade de vida dos pacientes e potencialmente também o único a aumentar a sobrevida. No entanto, o tempo ideal do procedimento é um desafio especialmente pelas demoradas filas para o transplante, o que impacta nos desfechos de sobrevida dos pacientes submetidos ao procedimento13.

Como visto, ainda existe uma grande dificuldade em manejar a SE, e suas consequências afetam muito a vida dos pacientes. Evitar que os defeitos cardíacos congênitos cheguem a esse quadro dramático é essencial. Os pediatras, em especial, têm uma grande importância nesses casos, com possibilidade de diagnóstico precoce e indicação de correção imediata dos casos. A evolução oligossintomática do caso relatado descreve uma possibilidade da história natural desta entidade.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital das Clínicas da UFG, Departamento de Pediatria - Goiânia - Goiás - Brasil
2. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina - Goiânia - Goiás - Brasil

Endereço para correspondência:
Vanessa Farias Franco
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás
Rua 235 QD. 68 Lote Área, 285, s/nº - Setor Leste Universitário
Goiânia, GO, Brasil. CEP: 74605-050
E-mail: vanessafariasf@hotmail.com

Data de Submissão: 15/08/2019
Data de Aprovação: 10/09/2019