ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Diagnóstico tardio de acalasia esofágica idiopática em paciente com pneumonias de repetição

Late diagnosis of Idiopathic Esophageal Achalasia in patient with recurrent pneumonias

RESUMO

A acalasia esofágica é a doença motora mais comum do esôfago, sendo rara na faixa-etária pediátrica. A principal causa é secundária à perda da função dos neurônios inibitórios dos plexos mioentéricos, decorrente de processo inflamatório de origem ainda não estabelecida. Os sintomas mais comuns na criança são vômitos, perda de peso e pneumonias aspirativas, sintomatologia mais comumente associada à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), dificultando o diagnóstico da acalasia. A realização de exames complementares como a endoscopia digestiva alta (EDA), radiografia contrastada e manometria esofágica são importantes para confirmação diagnóstica. O tratamento visa aliviar os sintomas e melhorar o esvaziamento esofágico. Criança do sexo feminino, 3 anos, apresentando vômitos persistentes, ausculta pulmonar reduzida à direita e condensação em base do pulmão direito sugestivo de pneumonia e antecedente de cinco pneumonias prévias. Mãe relata início de vômitos aos 9 meses de vida, inicialmente recebendo tratamento para DRGE, sem melhora. Desde então, apresentou dificuldade para ingestão de alimentos sólidos e, posteriormente, para líquidos. A investigação confirmou o diagnóstico de acalasia, porém a etiologia não foi conclusiva. Foi realizada dilatação com aplicação cirúrgica de toxina botulínica ao nível do esfíncter esofágico inferior (EEI), recebendo alta para acompanhamento ambulatorial.

Palavras-chave: Pediatria, Acalasia Esofágica, Diagnóstico.

ABSTRACT

Esophageal achalasia is the most prevalent esophageal motility disease; however, it is rare in pediatrics. The principal cause is secondary to the loss of function in inhibitory neurons of myenteric plexus, due inflammatory process of unknown origin. The most prevalent symptoms in children are vomit, loss of weight and aspiration pneumonia; those are more commonly related to gastroesophageal reflux disease (GERD), making it more difficult the diagnosis of achalasia. Complementary exams are crucial to diagnoses, such as upper digestive endoscopy, radiography (barium swallow) and esophageal manometry. The treatment aims to relieve the symptoms and improve the esophageal emptying. Three years old female child, presenting persistent vomit, pulmonary auscultation reduced at right lung and condensation in the right pulmonary base suggestive of pneumonia, regarding an antecedent of five episodes of pneumonia. The symptoms started at nine months old, and the initial treatment was for GERD, without improvement. The propaedeutic confirmed the diagnoses of achalasia, though etiology was not conclusive. The chosen treatment was pneumatic dilatation with an additional surgical injection of botulinum toxin at the lower esophageal sphincter. The patient received hospital discharge to outpatient follow-up.

Keywords: Pediatrics,Esophageal Achalasia,Diagnosis.


INTRODUÇÃO

A acalasia é uma desordem de motilidade que ocorre após inflamação crônica dos plexos de Auerbach do esôfago. Sua progressão resulta em dilatação do corpo esofagiano, estase de bolo alimentar e irritação da mucosa, que pode levar a esofagite linfocítica e alterações displásicas. A acalasia primária idiopática não possui etiologia bem descrita na literatura, mas teoriza-se que possa ter origem autoimune, genética ou viral1.

Clinicamente, o sintoma mais relevante é a disfagia, podendo cursar com dor precordial, regurgitação e perda ponderal. Embora a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) tenha uma prevalência substancialmente maior, é importante se atentar à acalasia na presença de sinais de alarme, sobretudo, de disfagia progressiva. Em 30 a 90% dos casos, o paciente tem histórico de falha terapêutica para a DRGE. O pico diagnóstico da acalasia é entre 30 e 60 anos, embora possa ocorrer em qualquer faixa etária. Na população pediátrica é pouco comum, sendo considerada extremamente rara em lactentes, com um número pequeno de casos relatados. Além da DRGE, importantes diagnósticos diferenciais são pseudoacalasia (como no megaesôfago chagásico), acalasia iatrogênica e esofagite eosinofílica2,3.

O objetivo deste trabalho é demonstrar que pacientes jovens que apresentam pneumonias de repetição comumente associada à DRGE e não responsivas ao tratamento convencional, devem passar por outros exames diagnósticos para pesquisa de outras etiologias, como a acalasia. Além disso, a disfagia pode estar presente tardiamente e/ou passar despercebida. O diagnóstico rápido permite a intervenção precoce e os minimiza os impactos sobre o crescimento pônderoestatural da criança. A escolha da melhor intervenção terapêutica deve ser individualizada, sobretudo em crianças menores, visando segurança e melhora dos sintomas e da qualidade de vida desses pacientes.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 3 anos e 1 mês de idade, foi trazida ao pronto atendimento apresentando vômitos persistentes, ausculta pulmonar reduzida à direita e condensação em base de pulmonar direita sugestivo de pneumonia, com antecedente de quatro internações prévias por pneumonias com broncoespasmo importante. Possuía histórico de início dos vômitos aos 9 meses de vida, três meses após introdução alimentar, recebendo diagnóstico de doença de DRGE e tratamento aos 2 anos e 5 meses, sem melhora clínica. Desde então apresentou dificuldade para ingestão de alimentos sólidos e, posteriormente, também para líquidos.

Em investigação, a radiografia contrastada de esôfago, estômago e duodeno (REED), evidenciou uma dilatação importante do esôfago com estreitamento da porção distal e proximal do estômago (Figura 1), considerado quadro compatível com acalasia, solicitando EDA para confirmação diagnóstica.


Figura 1. REED posteroanterior e lateral evidenciando esôfago de calibre aumentado com estreitamento de segmento distal e retardo no trânsito do contraste, evidenciando acalasia esofágica e megaesôfago.



A EDA demonstrou megaesôfago com resíduo salivar e evidências de estreitamento em aspecto de anel muscular hipertrofiado e alongado na transição esôfago-cardia sem sinais cicatriciais ou fibróticos. A paciente foi submetida a uma dilatação pneumática devido ao grau da acalasia e, após 15 dias, foi realizada nova dilatação com aplicação cirúrgica de toxina botulínica ao nível do EEI.

Um mês após procedimento de aplicação da toxina botulínica foi realizado exame de manometria que demonstrou o EEI normotônico com relaxamento incompleto nas deglutições e aperistalse do corpo do esôfago, compatível com diagnóstico de acalasia. A investigação etiológica foi inconclusiva, permanecendo de etiologia idiopática. A paciente recebeu alta para tratamento e acompanhamento ambulatorial.


COMENTÁRIOS

A acalasia é uma patologia considerada rara em pediatria, com uma leve predominância no sexo masculino e acometendo de 0,1 a 0,18/100.000 crianças por ano, sendo geralmente diagnosticada entre os 7 e os 15 anos4. Em geral, menos de 5% dos pacientes vão apresentar sintomas antes dos 15 anos, sendo ainda menos frequente nos menores de 5 anos de idade. Em lactentes, a incidência é menor que 0,05%5. O paciente do caso relatado, embora tenha tido o diagnóstico aos 3 anos de idade, que já corresponde a menos de 5% dos casos, o início dos sintomas se deu com 9 meses de vida quando foi tratado como DRGE.

Os sintomas mais apresentados por adultos e crianças mais velhas são disfagia progressiva, regurgitação de alimentos mal digeridos, perda de peso e dor torácica, já em crianças menores de 5 anos são mais comuns a perda de peso, vômitos e tosse crônica. A perda de peso pode vir acompanhada de déficit pônderoestatural com achatamento das curvas de crescimento e impactos nutricionais6. Ressalta-se que na maioria dos casos relatados em lactentes a clínica inicial foi de atraso no crescimento e vômitos após a alimentação, o que resulta em um diagnóstico inicial de DRGE7. Estes achados inespecíficos de vômitos e regurgitações podem postergar o diagnóstico, como no caso relatado, cuja paciente teve confirmação diagnóstica após cerca de dois anos do início dos sintomas. Além disso, pacientes pediátricos são mais predispostos a apresentar complicações extraesofágicas, como aspiração pulmonar4. Neste caso, em especial, a paciente tinha antecedentes de pneumonias de repetição por provável aspiração.

A investigação diagnóstica usualmente se dá por meio de estudos radiográficos e manometria esofagiana, sendo que a EDA não é rotineiramente indicada em crianças. A deglutição de bário tipicamente demonstra uma imagem bico de pássaro ao nível da junção esofagogástrica, esôfago dilatado, aperistalse e velocidade reduzida de esvaziamento do contraste, enquanto a manometria demonstra ausência de peristalse no corpo do esôfago, juntamente com relaxamento incompleto do esfíncter esofagiano inferior. A manometria, além de ser considerada o padrão-ouro no diagnóstico permite a classificação da acalasia em três subtipos clinicamente relevantes, todavia, essa classificação foi feita para a população adulta e seu uso na pediatria ainda carece de mais estudos4.

Os exames da paciente permitem visualizar os achados descritos acima, ressaltando que a EDA, mesmo não sendo o exame mais indicado durante a investigação em crianças, pode ser de grande auxilio no diagnóstico final quando guiada por um profissional experiente.

No que concerne ao tratamento da acalasia, a literatura descreve diversos métodos que enfocam no enfraquecimento ou ablação do EEI, que abrange desde a terapia por via oral com tratamento farmacológico, tratamento via endoscópica (toxina botulínica e balão pneumático para dilatação), cirúrgica (laparoscópica, torascópica, abdominal aberta para miotomia, como a esofagomiotomia cirúrgica/laparoscópica de Heller, ou em casos mais avançados, a esofagectomia) e mais recentemente a cirurgia endoscópica transluminal por orifícios naturais (NOTES, em inglês) e a miotomia endoscópica peroral (POEM, em inglês)3. No entanto, é valido lembrar que a causa do acometimento neuromuscular ainda é obscura e como o defeito subjacente não pode ser revertido, o tratamento da acalasia permanece paliativo, sendo o principal objetivo a melhora da passagem do alimento esofágico, reduzindo a obstrução esofágica distal8. A escolha de qual linha terapêutica seguir depende da idade do paciente, comorbidades, gravidade, preferência do paciente e especializações disponíveis no local9.

Métodos como a dilatação pneumática ou a intervenção cirúrgica são indicados para pacientes que toleram passar por procedimentos invasivos e são a opção de escolha por possuírem respostas mais eficazes e mais duradouras. Em contrapartida, pode-se optar pelo tratamento farmacológico, preferencialmente com o uso das toxinas botulínicas, nitratos, bloqueadores dos canais de cálcio e inibidores da fosfodiesterase-59.

No caso apresentado optou-se pela aplicação da toxina botulínica. A terapia farmacológica por via endoscópica se resume ao uso dessa toxina, um inibidor potente da liberação de acetilcolina a partir dos terminais pré-sinápticos que gera um relaxamento muscular do EEI, sendo assim uma boa alternativa para os pacientes que são incapazes de tolerar terapias mais intensivas. As respostas à toxina botulínica são altas após o tratamento, mas seu efeito terapêutico possui pouca duração, devido ao surgimento de fibrose tecidual e à formação de anticorpos contra a toxina3-9.

No caso descrito os critérios como idade, gravidade da acalasia e a não possibilidade de se realizar um tratamento mais invasivo definiram a escolha terapêutica. Dessa forma, a dilatação pneumática com aplicação da toxina botulínica ao nível do EEI reduziu seu tônus e os sintomas de vômitos e disfagia.

A terapia combinada (endoscópico/farmacológico) é um método seguro e eficaz, sendo a escolha terapêutica no caso relatado, com boa resposta clínica. Entretanto, ela apresenta uma desaceleração de sua eficácia com o tempo, sendo necessário acompanhamento ambulatorial para observar a necessidade de novas intervenções caso tenha recidiva dos sintomas da acalasia, aguardando o melhor momento para uma abordagem cirúrgica de maneira segura e eficaz9.


REFERÊNCIAS

1. Pressman A, Behar J. Etiology and pathogenesis of idiopathic achalasia. J Clin Gastroenterol. 2017 Mar;51(3):195-202.

2. Patel DA, Kim HP, Zifodya JS, Vaezi MF. Idiopathic (primary) achalasia: a review. Orphanet J Rare Dis. 2015 Jul;10:89.

3. Stavropoulos SN, Friedel D, Modayil R, Parkman HP. Diagnosis and management of esophageal achalasia. BMJ. 2016 Set;13(354):i2785.

4. Van Lennep M, Van Wijk MP, Omari TIM, Benninga MA, Sinqendonk MMJ. Clinical management of pediatric achalasia. Expert Rev Gastroenterol Hepatol. 2018;12(4):391-404.

5. Banerjee R, Prasad A, Kumar V, Wadhwa N. Infantile achalasia cardia. Indian Pediatr. 2016 Set;15(53):831-2.

6. Meyer A, Catto-Smith A, Crameri J, Simpson D, Alex G, Hardikar W, et al. Achalasia: outcome in children. J Gastroenterol Hepatol. 2017 Fev;32(2):395-400.

7. Li Y, Fallon SC, Helmrath MA, Gilger M, Brandt ML. Surgical treatment of infantile achalasia: a case report and literature review. Pediatr Surg Int. 2014 Jun;30(6):677-9.

8. Esposito D, Maione F, D’Alessandro A, Sarnelli J, Palma GD. Endoscopic treatment of esophageal achalasia. World J Gastrointest Endosc. 2016 Jan;8(2):30-9.

9. Krill JT, Naik RD, Vaezi MF. Clinical management of achalasia: current state of the art. Clin Exp Gastroenterol. 2016 Abr;4(9):71-82.










1. Universidade Federal de Uberlândia, Graduação em Medicina - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Medicina - Departamento de Pediatria - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:
Victor Hugo dos Santos
Universidade Federal de Uberlândia
Av. João Naves de Ávila, nº 2121, Santa Mônica
Uberlândia, MG, Brasil. CEP: 38408-100
E-mail: victorhs2000@hotmail.com

Data de Submissão: 04/09/2019
Data de Aprovação: 15/09/2019