ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

É possível evitar a transmissão vertical do HIV? Primeiro recém-nascido HIV-positivo em Curitiba após três anos: um relato de caso

Is it possible to avoid vertical transmission of HIV? First HIV-positive newborn in Curitiba in three years: a case report

RESUMO

OBJETIVOS: Curitiba foi a primeira cidade brasileira a eliminar a transmissão do HIV de mãe para filho, título recebido em dezembro de 2017, com a capital obtendo uma proporção de crianças infectadas pelo HIV entre as crianças expostas ao vírus inferior a 2% em três anos, com apenas um caso em 2015. O objetivo deste relato é abordar um caso de transmissão vertical do HIV diagnosticado em 2018 no município.
RELATO DE CASO: LEGD, masculino, 3 meses, exposto à HIV. Mãe negativa para o vírus no início da gestação, evoluindo para exame positivo aos 6 meses de gestação e carga viral indetectável no nono mês. Recém-nascido com duas cargas virais positivas após o nascimento, negativo para outras TORCHSZ. Diagnóstico de HIV confirmado e iniciado tratamento.
DISCUSSÃO: A gestação com HIV representa um risco tanto para a mãe quanto para a criança, sendo necessária intervenção no pré-natal, parto e puerpério para reduzir as chances de transmissão vertical do vírus, visto que a principal via é o trabalho de parto, além de intraútero e amamentação. Apesar de realizar todas as condutas de pré-natal, laboratoriais, terapêuticas e profiláticas de maneira correta, existe a possibilidade de 1% de a transferência vertical ocorrer. Sendo assim, é indispensável o preparo do médico generalista a respeito da transmissão vertical do HIV, para oferecer às gestantes HIV positivas medidas preventivas, acesso ao tratamento e garantir a compreensão os benefícios de um tratamento adequado.

Palavras-chave: Transmissão Vertical de Doença Infecciosa, Profilaxia Pós-Exposição, Infecções por HIV.

ABSTRACT

OBJECTIVES: Curitiba was the first Brazilian city to eliminate HIV transmission from mother to child, a title received in December 2017, with the capital obtaining a proportion of HIV-infected children among children exposed to the virus less than 2% in three years, with only one case in 2015. The purpose of this report is to approach a case of vertical HIV transmission diagnosed in 2018 in the municipality.
CASE REPORT: LEGD, male, 3 months, exposed to HIV. Negative mother for the virus in the beginning of gestation, evolving to positive test at 6 months of gestation and undetectable viral load in the ninth month. Newborn with two positive viral loads after birth, negative for other TORCHSZ. Diagnosis of HIV confirmed and initiated treatment.
DISCUSSION: Pregnancy with HIV represents a risk for both the mother and the child, and it is necessary to intervene in prenatal, childbirth and puerperium to reduce the chances of vertical transmission of the virus, since the main route is labor, besides intrauterine and breastfeeding. Although all prenatal, laboratorial, therapeutic and prophylactic conducts are performed correctly, there is a possibility that 1% of vertical transference may occur. Therefore, it is essential to prepare the general practitioner about vertical transmission of HIV, to offer HIV positive pregnant women preventive measures, access to treatment and ensure the understanding of the benefits of appropriate treatment.

Keywords: Infectious Disease Transmission, Vertical, Post-Exposure Prophylaxis, HIV Infections.


INTRODUÇÃO

O HIV representa um dos principais problemas de saúde do mundo, sendo que a contenção de sua transmissão está entre os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” das Nações Unidas. A eliminação de novas infecções por HIV em crianças é um dos elementos essenciais da orientação estratégica da Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter a propagação da doença1. A transmissão vertical do HIV, que ocorre durante o período da gestação, no parto ou pelo aleitamento materno, é a principal forma de transmissão de HIV para menores que 15 anos, causando cerca 90% das infecções2. À nível nacional, na última década, houve redução da taxa de transmissão vertical (TV) de 16% para 2,7%, uma redução relativa de 83,1%1. Tal feito se relaciona ao emprego de medidas de prevenção como a terapia antirretroviral (TARV) combinada, parto cesáreo quando indicado e substituição do aleitamento materno para todos os recém-nascidos (RN) filhos de mães com HIV1.

Curitiba foi a primeira cidade brasileira a eliminar a transmissão do HIV de mãe para filho, título recebido em dezembro de 2017. Tal título certifica municípios que tenham atingido os critérios e os indicadores estabelecidos para eliminar a transmissão vertical do HIV, em conformidade com as diretrizes da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da OMS. Entre os critérios atingidos, Curitiba obteve uma proporção de crianças infectadas pelo HIV entre as crianças expostas ao vírus, acompanhadas na rede laboratorial do SUS, inferior a 2% em três anos, com apenas um caso em 20153.

O objetivo deste relato é abordar um caso de transmissão vertical do HIV ocorrido no ano de 2017, em Curitiba.


RELATO DE CASO

LEGD, 3 meses, natural e procedente de Curitiba. Admitido no serviço de infectopediatria do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR), por exposição ao HIV na gestação. Mãe com sorologia negativa para HIV no início da gestação, mas positiva para HIV no sexto mês (exame de 05/10), carga viral (CV) de 9173 cópias. Iniciou tratamento com tenofovir, lamivudina e efavirenz (TDF+ 3TC+EFZ), em 09/11/17, e no mês de nascimento do bebê apresentou carga indetectável de vírus (exame em 05/12). Em exames complementares, não reagente para toxoplasmose IgM, HBsAg e sífilis, e toxoplasmose IgG reagente durante toda gestação. Em 17/12/17, gestante recebida no serviço em trabalho de parto evoluindo para parto vaginal sem intercorrências. RN com Apgar primeiro minuto de 8 e quinto minuto de 9, não necessitou de manobras de reanimação. Transferido ao alojamento conjunto com a mãe. Após três dias, ambos receberam alta. Bebê encaminhado para puericultura na UBS e para o serviço de infectopediatria do HC-UFPR. Foi prescrita zidovudina (AZT) e orientado retorno em um mês.

Criança realizou exames de rotina em 18/12/17, sendo reagente para citomegalovíus (CMV) IgG e toxoplasmose IgG, e não reagente para CMV IgM e toxoplasmose IgM.

Na consulta de retorno, mãe e filho sem queixas, com teste sorológico RN positivo para HIV. Realizado início de profilaxia com sulfametoxazol+trimetoprim e solicitada carga viral de HIV. Na segunda consulta pós-natal, confirmada a exposição ao HIV com uma CV de 54.462 cópias. Orientado retorno em duas semanas e realização de uma nova carga viral. Na terceira consulta, com o resultado da segunda CV de 64.022 cópias, confirmado o diagnóstico de HIV. Iniciou uso da medicação em 12/03/2018, em uso de sulfametoxazol+trimetoprim 2,5ml 3x/semana S-Q-S; zidovudina 7ml 12/12h; lamivudina 2,5ml 12/12h e lopinavir+ritonavir 1ml 12/12h. Atualmente, paciente em acompanhamento regular com o serviço para garantir adesão ao tratamento.


DISCUSSÃO

A gestação associada com HIV representa um alto risco tanto para a mãe quanto para a criança, fazendo-se necessária uma intervenção interdisciplinar no pré-natal, parto e puerpério para que seja possível a redução da transmissão do vírus da mãe para a criança, caracterizando a TV4. A TV do HIV representa a principal via de infecção pelo HIV em crianças, sendo que em aproximadamente 65% dos casos ocorre durante o trabalho de parto e o restante ocorre intraútero, principalmente nas últimas semanas de gestação, ou através do aleitamento materno4. No caso em questão, a mãe sofreu uma infecção aguda detectada no final do segundo trimestre de gestação o que pode ter ocasionado uma transmissão intraútero, apesar das chances serem consideravelmente menores do que durante o parto. Dessa forma, outra hipótese que pode ser levantada é de que a transmissão ocorreu durante o parto, pois apesar da via vaginal ter sido corretamente indicada nesse caso, a chance de transmissão, ainda que pequena, existe.

Pode-se observar que a gestante foi adequadamente assistida durante o seu pré-natal. O teste de HIV deve ser oferecido à gestante em dois momentos do seu pré-natal: na 1ª consulta, idealmente no 1º trimestre da gestação, e com 28 semanas de gravidez, marcando o início do 3º trimestre. A realização do teste de carga viral deve ser realizada imediatamente após a confirmação de uma infecção por HIV5. Neste relato de caso, a sorologia foi negativa no início da gestação, positivando no sexto mês gestacional, com uma CV de 9.173 cópias, fator materno extremamente relevante no que se refere ao risco de transmissão vertical do HIV6.

Conforme preconizado pelo Ministério da Saúde, toda gestante infectada pelo HIV possui indicação para TARV, antes mesmo de se obterem os resultados dos exames CV-HIV, LT-CD4+ e genotipagem, com o intuito de suprimir a CV de forma vertiginosa7. Para as gestantes, em início de tratamento, tem-se o como esquema preferencial tenofovir, lamivudina e raltegravir (TDF+3TC+RAL). Quando presentes aspectos de má adesão, há a opção de um esquema alternativo, como a combinação TDF+3TC+EFV, em comprimido único. Sabe-se que o esquema de TARV é um dos fatores que influenciam na sua adesão7 contribuindo para o sucesso terapêutico. O tratamento de escolha para a paciente relatada compôs-se de TDF+3TC+EFV, e cerca de quatro semanas após o início do tratamento medicamentoso, apresentou CV indetectável.

Diante da supressão viral e do uso preciso de ARV, a via de parto, devidamente indicada, foi a vaginal, já que não havia qualquer contraindicação obstétrica que levassem à cesárea eletiva. A escolha da via deve levar em consideração a CV materna (indetectável ou até 1.000 cópias/ml a partir da 34ª semana) e uma avaliação obstétrica detalhada5. Em casos em que a gestante está fazendo uso de antirretrovirais e com supressão da CV sustentada, o parto vaginal é indicado se não houver qualquer outra condição que contraindique, uma vez que não há diferença estatisticamente significativa entre a taxa de transmissão do parto vaginal e cesárea em mulheres adequadamente tratadas4. Além de que as comorbidades de uma cesariana, tanto para a mãe quanto para o feto, se sobrepõem às chances de transmissão do vírus, principalmente em locais onde o parto não é devidamente assistido8.

De acordo com o Protocolo do Ministério da Saúde de 20109, a profilaxia da transmissão vertical do HIV no parto, para todas as gestantes portadoras do vírus HIV, deve ser a administração de AZT via intravenosa. Em contraposição, o Protocolo de 20175 define o uso de AZT profilático em gestantes com CV-HIV indetectável após 34 semanas gestacionais e aderentes à TARV. Entretanto, reforça que é competência médica indicar ou não o uso de AZT intraparto. No caso em questão, mesmo não tendo indicação de AZT intraparto pelos protocolos atuais, foi optado por iniciar AZT endovenosa durante a conduta obstétrica inicial.

Quanto à quimioprofilaxia do recém-nascido no perinatal, primeiramente foi indicado AZT por um mês. De acordo com o Ministério da Saúde, todas as crianças nascidas de mães com HIV devem receber ARV como umas das medidas de profilaxia para TV. Nesse caso, como a gestante fez uso ARV durante a gestação, é indicado o uso de AZT (VO) por 4 semanas5, o que reforça a prescrição realizada para o RN.

Toda criança de mãe HIV positivo deve realizar o exame da CV, sendo que o primeiro teste deve ser realizado com 4 ou 6 semanas de vida, caso tenha recebido profilaxia ATV e não apresente sintomas. Quando o RN é sintomático, a CV pode ser realizada a qualquer momento, além disso, o exame também deve ser realizado imediatamente em RN que foram amamentados10. Caso a primeira CV tenha resultado detectável, esta deve ser repetida com uma nova amostra assim que possível. Se a segunda CV também for detectável, a criança é considerada infectada pelo HIV e deve iniciar o tratamento clínico10. Nesse contexto, o RN tinha uma possível exposição ao HIV, assim, em sua primeira consulta pós-natal foi solicitado o exame de CV. O exame identificou uma CV de 54.462 cópias. Uma nova CV foi realizada após um mês com resultado de 64.022 cópias, confirmando-se assim o diagnóstico de infecção pelo HIV, mesmo com o seguimento correto da terapêutica materna.

Diante desse quadro, o tratamento preconizado para crianças menores de dois anos é a combinação de AZT+3TC+LVP/r11. Logo, a escolha terapêutica proposta para o paciente em questão foi devidamente realizada, além de profilaxia contra o Pneumocystis jirovecii, potencial causador de pneumonia em crianças HIV positivo12.

Nesse contexto, ressaltamos que todas as condutas de pré-natal, laboratoriais, terapêuticas e profiláticas foram devidamente fundamentadas, objetivando diminuir o risco de transmissão vertical do HIV. No entanto, mesmo em gestantes em uso de antirretroviral e com níveis de CV-HIV abaixo de 1.000 cópias/ml, existe uma possibilidade de a transferência vertical ocorrer, sendo a taxa de transmissão inferior a 1%5.

Frente a esse caso, torna-se indispensável o preparo do médico generalista, a respeito da TV do HIV. É necessário que seja capaz de oferecer medidas preventivas, não só em centros especializados como também na atenção primária, e proporcionar acesso ao tratamento adequado para gestantes HIV positivo. Deve-se também avaliar a compreensão da gestante sobre a doença e salientar os resultados benéficos de um tratamento adequado, ambicionando a redução de danos não só para a mãe, mas, sobretudo para o seu lactente, que está suscetível a se tornar uma criança portadora do vírus HIV.


REFERÊNCIAS

1. Friedrich L, Menegotto M, Magdaleno AM, Silva CLO. Transmissão vertical do HIV: uma revisão sobre o tema. Bol Cient Pediatr. 2016;5(3):81-6.

2. Redmound AM, McNamara JF. The road to eliminate mother-to-child HIV transmission. J Pediatr (Rio J). 2015;91(6):509-11.

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4. Ministério da Saúde (BR). Gestação de alto risco: manual técnico. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012.

5. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das hepatites virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites virais. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017.

6. Duarte G, Quintana SM, El Beitune P. Fatores que influenciam a transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana tipo 1. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005 Nov;27(11):698-705.

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10. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Manual técnico para o diagnóstico da infecção pelo HIV. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016.

11. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das hepatites virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pós-exposição (PEP) de risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017.

12. Bactrim®/Bactrim® F (sulfametoxazol + trimetoprima) [bula]. Rio de Janeiro: Roche Químicos e Farmacêuticos S.A.; 2019.










Universidade Federal do Paraná, Departamento de Pediatria - Curitiba - PR - Brasil

Endereço para correspondência:
Tyane de Almeida Pinto
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E-mail: tyane_almeida@hotmail.com

Data de Submissão: 21/10/2019
Data de Aprovação: 07/04/2020