Ponto de Vista
-
Ano 2021 -
Volume 11 -
Número
3
Insuficiência respiratória em pacientes pediátricos com paralisia cerebral: como podemos prevenir?
Respiratory failure in pediatric patients with cerebral palsy: how can we prevent it?
Jáder Pereira Almeida; Sylvio Gilberto Andrade Ávilla; Paulo Ramos David João
RESUMO
Pacientes pediátricos com paralisia cerebral apresentam maior risco de desenvolver insuficiência respiratória devido às suas particularidades anatômicas e fisiológicos, sendo necessária a adoção de medidas preventivas para melhorar sua qualidade de vida. Tópicos como trabalho com equipe multiprofissional, métodos de alimentação e estratégias de mobilização de secreção respiratória são abordados neste artigo. Além disso, tratamento de sialorreia, refluxo gastroesofágico, bronquiectasia, desnutrição e cirurgia de separação laringotraqueal são discutidos, com o propósito de reduzir a morbidade respiratória desses pacientes.
Palavras-chave:
Pediatria, Paralisia Cerebral, Prevenção Primária, Insuficiência Respiratória.
ABSTRACT
Pediatric patients with cerebral palsy have a higher risk of respiratory failure due to their anatomical and physiological particularities, requiring the adoption of preventive treatment to improve their quality of life. Topics such as working with multidisciplinary team, feeding methods and respiratory secretion mobilization strategies are discussed in this article. In addition, treatment of sialorrhea, gastroesophageal reflux, bronchiectasis, malnutrition and laryngotracheal separation surgery are addressed, with the aim of reducing respiratory morbidity in these patients.
Keywords:
Pediatrics, Cerebral Palsy, Primary Prevention, Respiratory Insufficiency.
A paralisia cerebral (PC) é um grupo de desordens que afetam a motricidade do indivíduo em vários graus de gravidade, podendo ser acompanhada por distúrbios da sensibilidade, cognição, percepção ou comunicação1. O subtipo mais comum é a forma espástica, correspondendo a 80% dos casos, sendo caracterizada por apresentar alta tonicidade muscular e disfunção da mobilidade corporal. Entre os principais fatores de risco, podemos destacar a prematuridade, infecções gestacionais e o tocotraumatismo2.
Apesar dos avanços tecnológicos das últimas décadas, parte das crianças com PC com disfunção grave (graus IV e V pelo escore “gross motor function classication system”) apresentam baixa qualidade de vida, com visitas frequentes ao pronto-atendimento pediátrico, sendo que o comprometimento respiratório é a principal causa de morbimortalidade2-4.
Algumas características anatômicas e fisiológicas podem justificar a maior ocorrência de insuficiência respiratória nessa população: (1) distúrbios da deglutição favorecem para o aumento da incidência de pneumonias aspirativas; (2) cifoescoliose repercute na redução do número de alvéolos e da complacência da parede torácica; (3) fraqueza da musculatura respiratória compromete o volume corrente e a capacidade vital; e (4) reflexo de tosse ineficaz aumenta o risco de infecções e de atelectasia1,5.
Em recente pesquisa realizada em nossa instituição, observou-se que cerca de 20% das admissões na unidade de terapia intensiva (UTI) geral e cirúrgica são devido à insuficiência respiratória, sendo que um terço dos analisados apresentavam PC. Outros autores identificaram resultados similares6. Logo, podemos perceber a importância do tema no contexto do paciente grave.
Quando crianças com PC são admitidas na UTI por insuficiência respiratória, a primeira linha de tratamento é o uso da ventilação mecânica não-invasiva. Essa modalidade de suporte pode ser utilizada em pacientes com ou sem alteração gasométrica, com o objetivo de tornar o ciclo respiratório mais eficaz. Entretanto, apesar da boa eficácia na população geral, pacientes com PC apresentam maior risco de falha terapêutica em decorrência da redução do clearance mucociliar, maior prevalência de obstrução de via área superior e maior dificuldade de ajuste da interface do ventilador ao paciente7,8. Consequentemente, são submetidos com maior frequência à intubação orotraqueal e suas complicações.
Uma vez resolvido o quadro agudo, também apresentam maior risco de falha no desmame de ventilação mecânica. Hsia et al. (2012)9 identificaram esse problema em seu estudo retrospectivo avaliando 139 crianças dependentes de ventilação mecânica, sendo que grande parte da amostra apresentava PC com necessidade de suporte ventilatório por mais de 5 anos. Vale ressaltar que a ventilação mecânica prolongada também é fator de risco para ocorrência de pneumonia.
Assim, podemos perceber que apesar do aparato tecnológico, crianças com PC com insuficiência respiratória apresentam maior risco de falha terapêutica, devendo ser investido esforços em medidas preventivas. Baseada na experiência da nossa instituição e em dados da literatura médica, abordamos algumas medidas que podem melhorar a qualidade de vida desses pacientes.
Trabalho com equipe multiprofissional: é necessário o envolvimento de alguns especialistas no acompanhamento desses pacientes em decorrência da complexidade do quadro, não só para manejo dos fatores de risco que resultam em insuficiência respiratória, mas também para questões psicossociais envolvendo pais e responsáveis. Na nossa unidade, a equipe é formada por pediatra, neurologista pediátrico, pneumologista pediátrico, gastroenterologista pediátrico, cirurgião pediátrico, otorrinolaringologista, fisioterapeuta, enfermeira, fonoaudióloga, nutricionista, psicólogo e assistente social. Os profissionais devem atuar em conjunto de modo a propor o melhor plano terapêutico ao paciente.
Métodos de alimentação: pacientes com PC podem apresentar distúrbios da deglutição, tanto para sólidos quanto para líquidos, resultando em microaspirações, pneumonias aspirativas e, consequentemente, insuficiência respiratória. A suspeita deve ser avaliada pelo especialista em deglutição, sendo que técnicas de alimentação e posicionamento podem ser benéficas em evitar o problema. A confirmação diagnóstica é realizada através do videodeglutograma. Na inviabilidade de alimentação oral ou quando o suporte calórico for insuficiente, há indicação de tubo de gastrostomia¹. Entretanto, é importante ressaltar que via alternativa de alimentação não evita aspiração traqueal de saliva5.
Tratamento de sialorreia: alguns anticonvulsivantes e neurolépticos podem resultar em produção excessiva de saliva e secreção brônquica. A avaliação do neurologista pediátrico, nesse caso, pode ser necessária para ajuste das doses das medicações ou mudança das drogas. Além disso, agentes anticolinérgicos (exemplo, escopolamina) podem ser utilizados para reduzir a produção de saliva, apesar dessa medida apresentar baixo nível de evidência na literatura1. Em último caso, alguns autores defendem que a ligadura cirúrgica dos ductos salivares é uma boa opção em reduzir o número de infecções recorrentes do trato respiratório inferior10.
Eliminação eficaz da secreção respiratória: o trabalho com fisioterapia respiratória possibilita a mobilização da secreção brônquica através de movimentos inspiratórios e expiratórios com o auxílio do dispositivo bolsa-válvula-máscara. Outra alternativa são os aparelhos de insuflação-desinsuflação mecânica (IE-M), auxiliando a tosse do paciente de forma não-invasiva7. Consiste em realizar pressão positiva alternada com pressão negativa com alto fluxo expiratório na via aérea, evitando assim os efeitos deletérios da redução do clearence mucociliar. Siriwat et al. (2018)11, em seu ensaio clínico randomizado, constataram que a IE-M é benéfica no tratamento de crianças com paralisia cerebral espástica apresentando quadro de pneumonia e atelectasia.
Tratamento de refluxo gastroesofágico: distúrbios da motilidade esofágica e espasticidade da musculatura abdominal podem justificar a maior incidência de refluxo gastroesofágico em pacientes com PC, potencializando a ocorrência de pneumonia aspirativa1. Em pacientes com asma, esse problema é ainda mais prejudicial, resultando em inflamação crônica da via aérea e crises de sibilância. O uso da fibroscopia rígida ou flexível pode ser útil em identificar os efeitos do conteúdo gástrico na mucosa respiratória e a pHmetria pode confirmar o diagnóstico. O tratamento clínico pode ser realizado com alimentação mais espessa, antagonistas de receptores H2 ou inibidores de bomba de prótons. Na falha das medidas clínicas, a fundoplicadura é uma alternativa eficaz em reduzir a morbidade respiratória provocada por refluxo12.
Tratamento de bronquiectasia: pacientes que apresentam aspiração traqueal crônica podem desenvolver bronquiectasia. Piccione et al. (2012)13 identificaram que crianças com comprometimento neurológico severo e refluxo gastroesofágico apresentam 9,4 vezes (p<0,004) e 3,3 vezes (p=0,036) maior risco de desenvolver esse problema, respectivamente. Histórico de tosse crônica, pneumonias de repetição e/ou persistência de alteração radiográfica podem fazer parte do quadro clínico, sendo a confirmação realizada através da tomografia computadorizada de tórax com cortes finos. Antibioticoterapia profilática com macrolídeos (exemplo, azitromicina em dias alternados) pode evitar exacerbações do quadro. Em casos refratários, a abordagem cirúrgica está indicada.
Tratamento de desnutrição: estudos mostram que até 20% dos pacientes com PC podem apresentar desnutrição. Em situações de instabilidade hemodinâmica, pode ocorrer aumento do catabolismo proteico e atrofia da musculatura respiratória1. O retorno da alimentação deve ser precoce, tendo em vista os seus benefícios. O especialista em nutrição deve acompanhar o caso durante a internação hospitalar e no seguimento ambulatorial, quando possível.
Separação Laringotraqueal (SLT): em casos refratários, a avaliação do cirurgião pediátrico e a indicação desse procedimento pode ser benéfica para o paciente. Consiste em fechar o segmento proximal da traqueia em fundo cego, separando-o do segmento distal que será conectado à pele da região cervical anterior14. Difere da traqueostomia, já que não existe risco adicional de microaspirações pelo espaço entre a cânula de traqueostomia e a traqueia. Hara et al. (2014)15, em seu estudo com crianças portadoras de doença neurológica, observaram redução significativa das pneumonias aspirativas após realização da SLT. Na nossa unidade, o procedimento é realizado em pacientes selecionados, apresentando bons resultados, com baixa taxa de complicação.
REFERÊNCIAS
1. Boel L, Pernet K, Toussaint M, Ides K, Glenn L, Haan J, et al. Respiratory morbidity in children with cerebral palsy: an overview. Dev Med Child Neurol. 2019 Jun;61(6):646-53.
2. Ray S, Chatterjee S, Ruiz-Lozano P. Pediatric cerebral palsy life expectancy: has survival improved over time? Pediatr Ther. 2013;3(1):146.
3. Vilela LR, Brízida LVO, Pádua MF, Silva BM, Ferreira LS. Perfil de crianças e adolescentes internados por distúrbios neurológicos. Resid Pediatr. 2019;9(3):1-5.
4. Himmelmann K, Beckung E, Hagberg G, Uvebrant P. Gross and fine motor function and accompanying impairments in cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 2006 Jun;48(6):417-23.
5. Proesmans M, Vreys M, Huenaerts E, Haest E, Coremans S, Vermeulen F, et al. Respiratory morbidity in children with profound intellectual and multiple disability. Pediatr Pulmonol. 2015 Out;50(1):1033-8.
6. Yates K, Festa M, Gillis J, Waters K, North K. Outcome of children with neuromuscular disease admitted to paediatric intensive care. Arch Dis Child. 2004 Fev;89(2):170-5.
7. Gauld LM. Airway clearance in neuromuscular weakness. Dev Med Child Neurol. 2009 Mai;51(5):350-5.
8. Lis ARB, Duarte MCMB, Andrade LB. Noninvasive ventilation as the first choice of ventilatory support in children. Rev Bras Ter Intensiva. 2019 Out;31(3):333-9.
9. Hsia SH, Lin JJ, Huang IA, Wu CT. Outcome of long-term mechanical ventilation support in children. Pediatr Neonatol. 2012 Out;53(3):304-8.
10. Manrique D, Sato J. Salivary gland surgery for control of chronic pulmonary aspiration in children with cerebral palsy. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2009 Set;73(9):1192-4.
11. Siriwat R, Deerojanawong J, Sritippayawan S, Hantragool S, Cheanprapai P. Mechanical insufflation-exsufflation versus conventional chest physiotherapy in children with cerebral palsy. Respir Care. 2018 Fev;63(2):187-93.
12. Sload RL, Brigger MT. Surgery for reflux induced airway disease: a systematic review. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2014 Ago;78(8):1211-15.
13. Piccione JC, McPhail GL, Fenchel MC, Brody AS, Boesch RP. Bronchiectasis in chronic pulmonary aspiration: risk factors and clinical implications. Pediatr Pulmonol. 2012 mai;47(5):447-52.
14. Antunes LA, Talini C, Carvalho BC, Guerra JP, Aristides ES, Oliveira DE, et al. Laryngotracheal separation in pediatric patients: 13-year experience in a reference service. Einstein (São Paulo). 2019;17(3):eAO4467.
15. Hara H, Hori T, Sugahara K, Ikeda T, Kajimoto M, Yamashita H. Effectiveness of laryngotracheal separation in neurologically impaired pediatric patients. Acta Otolaryngol. 2014 Jun;134(6):626-30.
1. Hospital Pequeno Príncipe, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Departamento de Cirurgia Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
Endereço para correspondência:
Jáder Pereira Almeida
Hospital Pequeno Príncipe
Rua Desembargador Motta, 1070 - Água Verde
Curitiba/PR, 80250-060
E-mail: jader.pa@hotmail.com
Data de Submissão: 05/12/2019
Data de Aprovação: 13/04/2020