Relato de Caso
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Ano 2021 -
Volume 11 -
Número
3
Doença de Kawasaki incompleta com apresentação de febre de origem indeterminada
Incomplete Kawasaki disease with presentation of fever of unknown origin
Lívia Figueiredo Pereira1; Júlia Coutinho Cordeiro2; Luísa Alvarenga Guerra Martins3; Jáder Pereira Almeida4
RESUMO
INTRODUÇÃO: A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistêmica que acomete principalmente vasos de pequeno
e médio calibre.
OBJETIVOS: Apresentar o caso de uma criança com DK com forma incompleta, descrevendo o processo de investigação até o diagnóstico.
RELATO DE CASO: Paciente de 2 anos e 4 meses, sexo feminino, apresentou quadro de febre persistente, diária, durante duas semanas, associada à adenomegalia cervical unilateral direita, tratada inicialmente como adenite bacteriana. Em decorrência da persistência da febre, retornou à unidade de emergência, sendo identificado edema em ambos os pés e descamação periungueal em mão direita. Após investigação, o diagnóstico de DK incompleta foi confirmado de forma tardia.
DISCUSSÃO: A DK se enquadra dentre os diagnósticos diferenciais de febre de origem indeterminada. A forma incompleta da doença cursa com ausência dos sinais clínicos clássicos. Dada à gravidade da doença e suas possíveis complicações, é imprescindível que o tratamento seja realizado de forma precoce.
CONCLUSÃO: Faz-se necessário considerar a doença de Kawasaki como diagnóstico diferencial da febre de origem indeterminada em crianças.
Palavras-chave:
Febre de Causa Desconhecida, Vasculite Sistêmica, Pediatria.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Kawasaki disease (KD) is a systemic vasculitis that mainly affects small and medium-sized vessels.
OBJECTIVES: To present the case of a child with incomplete KD describing the investigation process until diagnosis.
CASE REPORT: A 2-year and 4-month-old female patient with daily two-week persistent fever associated with right unilateral cervical adenomegaly initially treated as bacterial adenitis. Due to the persistence of fever, she returned to the emergency unit with edema in both feet and periungual desquamation in the right hand. After investigation, the diagnosis of incomplete KD was confirmed late.
DISCUSSION: KD is one of the differential diagnoses of unknown origin fever. The incomplete form of the disease evolves with the absence of classic clinical signs. Given the severity of the disease and its possible complications, an early treatment it is essential.
CONCLUSION: It is necessary to consider Kawasaki disease as a differential diagnosis of fever of unknown origin in children.
Keywords:
Fever of Unknown Origin, Systemic Vasculitis, Pediatrics.
INTRODUÇÃO
A doença de Kawasaki (DK), relatada pela primeira vez no Japão, pelo pediatra Tomisaku Kawasaki em 1967, é uma vasculite multissistêmica que durante a fase febril aguda acomete vasos de pequeno e médio calibre em vários tecidos, principalmente pulmonar, cerebral e cardíaco1,2. No contexto atual, considerado o aumento do número de casos diagnosticados, tem-se que a DK acomete 1/1.000 crianças no mundo, sendo em países desenvolvidos a principal causa de doença cardíaca adquirida na infância, substituindo a posição anteriormente ocupada pela febre reumática2.
O diagnóstico da DK é realizado através de febre persistente associado com critérios clínicos clássicos, entretanto uma parcela dos pacientes cursa com apresentação atípica, sendo necessário alto nível de suspensão para o diagnóstico ser realizado de forma precoce. Exames laboratoriais e de imagem podem ser necessários durante a investigação3. Desse modo, o objetivo deste trabalho é relatar o caso de uma criança com DK incompleta, abordando aspectos que podem auxiliar no diagnóstico da patologia.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, parda, 2 anos e 4 meses, previamente hígida, apresentou quadro de febre persistente, diária, média de 2 vezes ao dia, durante duas semanas, com temperatura máxima de 39,5°C. Além disso, foi relatado adenomegalia em região cervical unilateral à direita, móvel, de consistência fibroelástica, em torno de cinco centímetros. Negou coriza, tosse ou odinofagia no período. História epidemiológica negativa de contato com animais ou pessoas doentes.
Procurou a unidade de emergência pediátrica em duas ocasiões, sendo prescrito amoxicilina e cefalexina em tempos diferentes, sem melhora do quadro. Foi optado por internação em unidade hospitalar devido à suspeita de adenite bacteriana, recebendo antibioticoterapia venosa durante 4 dias, com redução do nódulo cervical e dos episódios de febre. Recebeu alta para continuação do tratamento em domicílio, porém cursou novamente com febre diária, além de edema simétrico nos pés.
Retornando ao pronto-atendimento, observou-se que estava ativa, sem sinais de comprometimento hemodinâmico. Não foram observadas alterações cutâneas, neurológicas, oftalmológicas, orofaríngeas, cardiopulmonares ou abdominais. O exame da região cervical era normal. Chamava atenção edema discreto em pés, bilateralmente, com presença de sinal de cacifo até nível do tornozelo, sem presença de calor, rubor, dor ou limitação dos movimentos. Além disso, foi identificado descamação periungueal discreta em dedos da mão direita.
Os exames laboratoriais solicitados no pronto-atendimento evidenciaram hemoglobina: 9,5g/dL, leucócitos: 6,460/mm3 (neutrófilos: 41%, bastões: 1%, segmentados: 42%, linfócitos: 52%, monócitos: 4%), plaquetas: 734.000/mm³, proteína C-reativa (PCR): 37mg/dL, velocidade de hemossedimentação (VHS): 98mm/h, aspartato aminotransferase (AST): 88U/L, alanina aminotransferase (ALT): 35U/L, ferritina 120μg/L, anticorpo antiestreptolisina O (ASLO) <100U/ml e creatinina: 0,2mg/dL. O exame de urina apresentava apenas piúria microscópica.
A paciente foi internada na enfermaria pediátrica da instituição com suspeita de doença de Kawasaki. As sorologias virais apresentaram resultados negativos. Além disso, não houve crescimento de microrganismo na urocultura ou hemocultura. A radiografia de tórax era normal. O fator reumatoide, fator antinuclear, anti-DNA dupla-hélice e anti-Smith eram negativos. O ecocardiograma evidenciou função cardíaca preservada, sem alteração valvar, porém com várias dilatações saculares de artérias coronárias. A angiotomografia computadorizada de crânio e a ultrassonografia doppler de vasos renais, ilíacos, hepáticos e da artéria aorta eram normais. Diante dos achados, foi realizado tratamento com ácido acetilsalicílico (AAS) e imunoglobulina intravenosa (IGIV), além de acompanhamento com equipe de cardiologia e reumatologia pediátrica.
COMENTÁRIOS
O caso abordado direciona o raciocínio clínico para uma paciente com diagnóstico sindrômico de febre de origem indeterminada (FOI), a qual se caracteriza pela manutenção da temperatura corporal maior ou igual a 38°C por um período maior que 1-2 semanas, após investigação inicial negativa4. Têm-se, entre as causas mais prevalentes da FOI, as doenças infecciosas, as reumatológicas e as malignidades (Tabela 1)4-6.
Nesse sentido, a suspeita clínica da paciente relatada foi amparada pela presença de febre, adenomegalia de consistência fibroelástica em região cervical e edema de extremidades com descamação periungueal, que sugerem a doença de Kawasaki (DK) como principal hipótese diagnóstica. Trata-se de uma doença cuja patogênese ainda não está totalmente elucidada, entretanto, acredita-se que seja decorrente de um estímulo desconhecido que desencadeia uma cascata inflamatória imunomediada em crianças geneticamente suscetíveis7. É a segunda vasculite mais frequente na população pediátrica2. Acomete mais o sexo masculino (2:1) e crianças de descendência japonesa, principalmente na faixa etária entre 6 meses e 5 anos de idade8.
O diagnóstico da DK é realizado na presença de febre ≥5 dias associada a, pelo menos, 4 de 5 critérios clínicos: conjuntivite não-purulenta, alteração da mucosa oral ou língua em framboesa, adenomegalia cervical, eritema polimorfo, edema ou descamação das mãos9. Pode ser classificada em forma completa, quando preenche os critérios diagnósticos, ou em forma incompleta, na presença de, pelo menos, 2 critérios após descartar outras possíveis causas10.
A despeito dos critérios diagnósticos, Gonçalves e Silva (2019)1 em estudo descritivo com 12 crianças com diagnóstico de DK, identificaram que rash cutâneo foi o sinal mais prevalente entre os analisados, sendo observado em todos os pacientes, seguido de descamação periungueal (83%), alteração de cavidade oral (66%), conjuntivite não-purulenta (58%) e linfonodomegalia (50%). Além disso, a frequência dos sinais depende da fase da doença, de modo que o menos observado na fase inicial é o edema de extremidades e a descamação periungueal.
Como demonstrado no estudo de Rife e Gedalia (2020)7, diversas doenças compartilham sinais e sintomas semelhantes aos da DK, devendo ser realizado diagnóstico diferencial com outras patologias. É importante considerar as características de cada doença, a sazonalidade, a epidemiologia local e a imunoproteção por meio de vacinas já ofertadas7. Nosso paciente foi inicialmente tratado com antibioticoterapia devido à suspeita de adenite bacteriana. Rossi et al. (2015)11 também relataram o caso de um paciente de 7 anos de idade com adenomegalia cervical que recebeu cefadroxila, seguido de ceftriaxone e oxacilina venosas, porém evoluiu com alteração labial, hiperemia conjuntiva não-exsudativa e rash cutâneo no quarto, novo e décimo dia de febre, respectivamente, sendo realizado diagnóstico de DK de forma tardia.
Além dos sinais clássicos, a forma incompleta da DK pode apresentar manifestações atípicas como insuficiência cardíaca, meningite asséptica, acidente vascular cerebral, empiema, artrite, hepatite, pancreatite, hidrocele e uveíte, o que torna o diagnóstico mais difícil3,7,11. Nesse sentido, durante a investigação de DK, algumas alterações laboratoriais podem ajudar no raciocínio diagnóstico, como presença de anemia normocítica normocrômica, leucocitose, plaquetose, ALT >50UI/L, provas inflamatórias aumentadas, albumina sérica <3mg/dL e exame de urina com mais de 10 leucócitos/campo. Não existe marcador específico para a patologia em questão1,2,8-10. Ademais, a alteração do ecocardiograma evidenciando aneurismas de coronárias também auxilia no diagnóstico, sendo essa a complicação mais temida da doença, podendo ocorrer em até 20% dos pacientes não tratados, com maior risco a partir de 7 a 10 dias de febre1.
Desse modo, é necessário que o diagnóstico seja realizado o mais precocemente possível, para que se possa instituir o tratamento adequado em tempo oportuno. Este consiste na administração de IGIV, 2gramas/kg, com uma única infusão por 10 a 12 horas, associada a AAS, 80-100mg/kg/dia até resolução da febre, geralmente 3-7 dias, seguido de redução da dose para 3-5mg/kg/dia, devendo ser utilizado por período de 6-8 semanas3. Cerca de 10 a 20% dos pacientes não respondem ao tratamento preconizado e, portanto, são consideradas resistentes a IGIV, sendo orientado tentar nova dose de imunoglobulina ou utilizar alternativas terapêuticas como corticoide, infliximab, ciclosporina, IL-1, anakinra, ciclofosfamida ou plasmaférese7-9,11.
Atualmente, tem sido descrita uma condição inflamatória associada ao coronavírus-19 (COVID-19) com características semelhantes à DK, a chamada síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P). As principais manifestações clínicas da SIM-P são febre persistente, conjuntivite, mucosite, linfadenopatia e rash, o que faz com que essa síndrome faça diagnóstico diferencial com a DK clássica, especialmente durante o período pandêmico da COVID-19. Entretanto, algumas diferenças epidemiológicas entre SIM-P e DK foram notadas, como a maior incidência da SIM-P em crianças maiores de cinco anos e em crianças afrodescendentes. Para o diagnóstico da SIM-P, além da febre persistente, aumento de provas inflamatórias (PCR, VHS, ferritina ou procalcitonina) e o envolvimento multissistêmico de órgãos, é necessário ter evidência de exposição ao COVID-19 quatro semanas antes do início dos sintomas através de sorologia ou RT-PCR positivo7.
CONCLUSÃO
É importante que haja alto grau de suspeição da doença de Kawasaki como diagnóstico diferencial de febre de origem indeterminada em crianças, de modo a identificar o problema de forma precoce e evitar suas possíveis complicações.
REFERÊNCIAS
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2. Oliveira TA, Gomes Junior LCB, Araujo PA, Soffe B, Silva CTF. Kawasaki e fatores de risco para pior prognóstico. Resid Pediatr. 2017;7(2):73-6.
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10. Giannouli G, Tzoumaka-Bakoula C, Kopsidas I, Papadogeorgou P, Chrousos GP, Michos A. Epidemiology and risk factors for coronary artery abnormalities in children with complete and incomplete Kawasaki disease during a 10-year period. Pediatr Cardiol. 2013 Ago;34(6):1476-81.
11. Rossi FS, Silva MFC, Kozu KT, Camargo LFA, Rossi FFP, Silva CA, et al. Extensa linfadenite cervical mimetizando adenite bacteriana como primeira manifestação da doença de Kawasaki. Einstein. 2015 Jun;13(3):426-9.
1. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Medicina - Betim - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade José do Rosário Vellano - UNIFENAS, Medicina - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
3. Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Terapia Intensiva Pediátrica - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
4. Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro/Hospital Pequeno Príncipe, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
Endereço para correspondência:
Lívia Figueiredo Pereira
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
R. do Rosário, 1081 - Angola
Betim/MG, 32604-115
E-mail: livia.lfp@gmail.com
Data de Submissão: 24/06/2021
Data de Aprovação: 10/07/2021