ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Granulomatose com poliangiite em paciente pediátrica: relato de caso

Granulomatosis with polyangiitis in pediatric patient: case report

RESUMO

OBJETIVOS: Relatar o caso de uma paciente pediátrica com diagnóstico de granulomatose com poliangiite (GPA) e evolução para insuficiência renal crônica, com necessidade de terapia de substituição renal, evento extremamente raro na GW, sendo relatado em menos de 2% dos casos.
RELATO DE CASO: Paciente feminina, apresentava quadros gastrointestinais e sinusites de repetição durante a infância. Os sintomas evoluíram para astenia e dor abdominal aos 9 anos de idade, seguido por cefaleia, hematúria macroscópica, diminuição da diurese, ascite e edema facial. A investigação sugeriu insuficiência renal, com posterior biópsia e confirmação do diagnóstico de GPA com ANCA negativo. Embora tenha apresentado boa evolução inicial ao tratamento dialítico, a paciente reinternou por picos hipertensivos associados à cefaleia e crises convulsivas. Os exames de imagem evidenciaram vasculite do sistema nervoso central. Apesar do tratamento, a paciente evoluiu com choque séptico, seguida de parada cardiorrespiratória, indo a óbito.
COMENTÁRIOS: O presente estudo demonstra a importância da investigação da GPA em pacientes com sintomatologia suspeita, a fim de iniciar o tratamento precoce e evitar desfechos adversos.

Palavras-chave: Granulomatose com Poliangiite, Nefrologia, Vasculite Associada a Anticorpo Anticitoplasma de Neutrófilos.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the case of a pediatric patient diagnosed with granulomatosis with poliangiitis (GPA) and progression to chronic renal failure, requiring renal replacement therapy, an extremely rare event in GPA being reported in less than 2% of cases.
CASE REPORT: Female patient had gastrointestinal symptoms and recurrent sinusitis during childhood. Symptoms evolved to asthenia and abdominal pain at 9 years of age, followed by headache, macroscopic hematuria, decreased diuresis, ascites and facial edema. The investigation suggested renal insufficiency, with subsequent biopsy and confirmation of the diagnosis of GPA with negative ANCA. Although she presented a good initial evolution to the dialysis treatment, the patient was readmitted for hypertensive peaks associated with headache and seizures. Imaging exams showed vasculitis of the central nervous system. Despite treatment, the patient developed septic shock, followed by cardiorespiratory arrest, and died.
COMMENTS: The present study demonstrates the importance of investigating GPA in patients with suspected symptoms in order to initiate early treatment and avoid adverse outcomes.

Keywords: Granulomatosis with Polyangiitis, Nephrology, Anti-Neutrophil Cytoplasmic Antibody-Associated Vasculitis.


INTRODUÇÃO

A granulomatose com poliangiite (GPA), antes denominada granulomatose de Wegener (GW), é uma vasculite necrotizante que acomete, sobretudo, vasos de pequeno e médio calibre, incluindo-se no grupo de vasculites associadas a anticorpos anticitoplasma dos neutrófilos (ANCA)1. A GPA é bastante rara em idade pediátrica, estimando-se em 0,1:100.000 a incidência anual em crianças, com mortalidade de 90% em um ano após o diagnóstico caso não tratada, razões pelas quais optou-se pelo relato do presente caso1.

Conquanto ainda não bem estabelecida a fisiopatologia da GPA, sugere-se o desenvolvimento de um processo inflamatório autoimune, com envolvimento de neutrófilos, células endoteliais e ANCA contra a proteinase dos neutrófilos (PR3), em indivíduos com predisposição genética frente a gatilhos ambientais, como infecções de vias aéreas, por exemplo2.

A GPA pode levar à manifestação de glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP), a qual caracteriza-se por uma perda rápida e progressiva de função renal que ocorre em semanas ou meses, associada à presença de indicativos laboratoriais de glomerulonefrite, ou seja, hematúria e proteinúria. Histologicamente, a tradução desta síndrome clínica é a presença de crescentes em mais de 50% dos glomérulos3.

A sintomatologia da GPA é bastante variada, podendo acometer diversos órgãos. Classicamente, mais de 90% dos pacientes apresentam quadros respiratórios e auditivos. As manifestações renais ocorrem em 70 a 77% dos pacientes, resultantes da glomerulonefrite necrotizante, que pode ser evidenciada por alterações no sedimento urinário, azotemia e hipertensão arterial. Em até 60% dos indivíduos podem ser observadas manifestações cutâneas. Os acometimentos neurológico e cardíaco, no entanto, são bastante raros, podendo atingir até 33,6% dos pacientes1,4.

O diagnóstico da GPA envolve critérios clínicos, radiológicos, sorológicos e anatomopatológicos. A recomendação do consenso EULAR PRINTO PRES é o preenchimento de pelo menos dois dos critérios diagnósticos (Tabela 1) - quando três dos seis critérios estão presentes, há sensibilidade de 93,3% e especificidade de 99,2% para a confirmação diagnóstica³. As manifestações histopatológicas da doença caracterizam-se por necrose parenquimatosa, vasculite e inflamação granulomatosa. O C-ANCA, por sua vez, é um marcador de anticorpo direcionado à proteinase-3 (anti-PR3), presente nos neutrófilos. A titulação desse marcador relaciona-se com a atividade da GPA, com 90% de sensibilidade e especificidade, devendo ser acompanhada no curso da doença5,6.




O Colégio Americano de Reumatologia, na contramão, propõe o diagnóstico da GPA frente a pelo menos 2 dos seguintes critérios diagnósticos (Tabela 2)7-9:




RELATO DE CASO

MGM, 9 anos de idade, deu entrada em pronto atendimento de hospital pediátrico com queixa de vômitos e diarreia com 3 dias de evolução. A mãe referiu que há 8 meses a paciente iniciou com quadro de astenia, progredindo para náuseas, dor abdominal, picos febris e cefaleia, cujos tratamentos eram baseados em hidratação venosa e antieméticos. História pregressa de dores abdominais associados a vômitos desde os 2 anos de idade e quadro de rinite e sinusite recorrentes desde os 5 anos de idade.

Há 4 meses a paciente apresentou hematúria macroscópica e diminuição da diurese, associada a dores lombar e abdominal, quando foi internada em hospital de sua cidade em regular estado geral (REG), hipocorada, com edema facial e ascite discreta. Nesta mesma ocasião, foram solicitados exames laboratoriais que mostraram insuficiência renal, a qual foi realizada tratamento de suporte e sendo solicitada tomografia computadorizada (TC) de abdome (laudo normal). Devido à redução da diurese e evolução dos exames laboratoriais foi solicitada a transferência da criança para unidade de terapia intensiva (UTI), sendo então encaminhada para hospital pediátrico em Curitiba.

Ao exame físico no momento da internação apresentou peso de 32,5kg (P50-CDC) e altura de 1,21m (P5-CDC), REG, hipoativa, hipocorada, hidratada, hipertensa, oligoanúrica, eupneica e afebril. Apresentando-se com edema de face e ascite moderada.

No segundo dia da primeira internação, com duração de 56 dias, a paciente realizou biópsia renal e foi instituída diálise peritoneal automatizada. As hipóteses diagnósticas iniciais eram de insuficiência renal crônica (IRC) agudizada, doença autoimune ou glomerulonefrite rapidamente progressiva. Devido a esta última hipótese, foi iniciado pulso de metilprednisolona 1.000mg/1,73m2/dia, por três dias.

No décimo quinto dia da internação, a diálise peritoneal mostrou-se pouco funcionante e os exames evidenciaram bacilos gram-negativos em seu líquido, sendo associado cefazolina e amicacina intraperitoneais ao cefepime endovenoso.

No décimo sétimo dia da internação, obteve-se o resultado do material de biópsia renal, identificando na amostra lesões crescêntricas em fase proliferativa/esclerosante, moderado infiltrado granulomononuclear com com plasmócitos e granulomas, além de fibrose (30-40%) com proporcional atrofia tubular. No compartimento vascular os vasos arteriais encontram-se discretamente espessadas.

Frente ao quadro clínico e aos achados anatomopatológicos, a hipótese de GPA seria a mais provável. Foram solicitados ANCA, metilação do gene MGMT por PCR (GBM), imunoglobulinas, TC tórax, espirometria e RM de crânio e seios da face para auxiliar no diagnóstico. Essa evidenciou espessamento mucoso velando o seio maxilar direito e um pequeno cisto no seio maxilar esquerdo.

No vigésimo terceiro dia da internação, foi estabelecido o diagnóstico de GPA com ANCA negativo, demonstração histopatológica compatível na biópsia renal e glomerulonefrite com crescentes. Sendo então realizado pulsoterapia com metilprednisolona por cinco dias, e no último dia da medicação, foi efetuada dose de ciclofosfamida.

Paciente evoluiu com melhora dos parâmetros clínicos, até que no décimo terceiro dia da internação, devido à inefetividade da diálise peritoneal, foi optado por troca para hemodiálise. A paciente manteve-se estável e assintomática, iniciando o segundo ciclo de pulsoterapia com metilprednisolona e ciclofosfamida. No quinquagésimo sexto dia da internação, recebeu alta mantendo hemodiálise ambulatorial.

Vinte e oito dias após a alta hospitalar, a paciente foi internada novamente por crise hipertensiva associada a queixas de cefaleia e crises convulsivas, sendo encaminhada para a UTI. A RM de crânio realizada neste dia evidenciou isquemia aguda e subaguda por vasculite generalizada. Os diagnósticos até esse momento eram de GPA, doença renal crônica dialítica, vasculite de sistema nervoso central (SNC), manifestando crises convulsivas e HAS.

No terceiro dia da segunda internação, apresentou hipoglicemia e hipotensão ao término da hemodiálise. Ao exame físico, REG, hipocorada, eupneica em ar ambiente, com fáscies cushingoide, PA de 92/65mmHg (P50 para a pressão sistólica e entre P50-90 para a pressão diastólica), FC de 110bpm, saturando 95% em ar ambiente, abdome globoso, distendido e doloroso a palpação difusamente.

No sétimo dia da segunda internação, a paciente referiu dificuldade respiratória. Ao exame, hipotensa, taquipneica, saturando 91% com O2 em cateter nasal e apresentando palidez cutaneomucosa. Ausculta pulmonar com murmúrio vesicular diminuído difusamente. Os pulsos centrais eram palpáveis e finos e os periféricos de difícil palpação. Foi instalada máscara de oxigênio, prescrito piperacilina sódica com tazobactam sódico e amina vasoativa. No momento, foi conversado com a família sobre hipótese de choque séptico e risco iminente de necessidade de intubação. A paciente evoluiu com alteração súbita do nível de consciência e apneia. Foi iniciada ventilação com pressão positiva e posterior intubação orotraqueal, evoluindo com bradicardia, seguida de parada cardiorrespiratória em assistolia, sendo iniciado reanimação cardiopulmonar. A paciente manteve o quadro de assistolia e foi a óbito.


DISCUSSÃO

O presente estudo relata o caso de uma paciente de 9 anos de idade com o diagnóstico de GPA, uma vasculite necrotizante associada ao ANCA de baixa prevalência na faixa etária pediátrica. O diagnóstico deve ser considerado em pacientes que apresentam sintomas respiratórios - como sinusites, epistaxe, úlceras orais -, renais - como hematúria, leucocitária e proteinúria -, constitucionais - febre, perda de peso, e fadiga, por exemplo -, gastrointestinais - náuseas crônicas, dor abdominal e diarreia persistente -, cutâneos e musculoesqueléticos6,10. Para a confirmação diagnóstica utilizam-se os critérios diagnósticos da EULAR PRINTO PRES e do Colégio Americano de Reumatologia (Tabelas 1 e 2, respectivamente)5,7.

O diagnóstico foi selado uma vez que foram preenchidos os critérios diagnósticos tanto do EULAR PRINTO PRES como do Colégio Americano de Reumatologia, apresentando envolvimento pulmonar, renal, de vias aéreas superiores, associado aos achados da biópsia renal que evidenciou granulomas e pauci-reatividade5,7.

O quadro de GNRP não foi manifestado no caso desta paciente, embora esteja associado à GPA em até 15% dos casos3. O ANCA negativo, assim como apresentado pela paciente, pode ocorrer em aproximadamente 33% dos pacientes4. Nesses casos, a pesquisa de anti-PR3 pode auxiliar sobremaneira na elucidação diagnóstica da GPA, uma vez que pode ser positivo mesmo frente ao ANCA negativo.

A TC de tórax, que pode evidenciar alterações pulmonares como consolidações e padrão vidro fosco11, também se mostrou normal na paciente. A RM de seios da face, por sua vez, demonstrou espessamento mucoso e cisto de retenção com hipersinal em T1 no seio maxilar esquerdo, em concordância com a literatura, que indica entre as anormalidades radiológicas mais comuns dos seios da face as opacidades, níveis hidroaéreos e destruição óssea12.

A paciente em questão foi tratada inicialmente com pulsoterapia de metilprednisolona e, posteriormente, associada à ciclofosfamida, em concordância com a literatura10. Há relatos do uso de corticoides em 95% dos pacientes e de ciclofosfamida em 76%, sendo as drogas mais utilizadas no tratamento da GPA8. Ademais, a associação da ciclofosfamida ao corticoide na terapia de indução incrementa as taxas de remissão da doença de 55% para 85%13. A paciente apresentou quadro de IRC agudizada, com necessidade de terapia de substituição renal, evento extremamente raro na GPA, sendo relatado em menos de 2% dos casos.

Na segunda internação, a paciente apresentou quadro sugestivo de vasculite do SNC, desencadeando crises convulsivas, crise hipertensiva, confirmado por RM de encéfalo. A evolução seguiu com o quadro de choque séptico que levou a paciente a óbito, em concordância com os artigos que definem os processos infecciosos como as principais causas de morte nos pacientes com GPA8.


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1. Universidade Positivo, Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Nefrologia - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Marina Machado Ramos
Universidade Positivo
R. Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 - Ecoville, Curitiba, PR, Brasil
CEP: 81280-330
E-mail: ma_ramos96@icloud.com

Data de Submissão: 03/03/2020
Data de Aprovación: 25/03/2020