ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Síndrome de Bartter no diagnóstico diferencial de baixa estatura: um relato de caso

Bartter syndrome in the differential diagnosis of short stature: a case report

RESUMO

O presente estudo visa apresentar um relato de caso envolvendo a síndrome de Bartter no diagnóstico diferencial de baixa estatura. Trata-se de um estudo retrospectivo, com base em um protocolo prospectivo, descritivo, observacional do tipo relato de caso. O relato envolveu um nascido termo, sem intercorrências, vigoroso, pesando 3,560g, medindo 50cm, com histórico gestacional de polidrâmnio com 27 semanas, inicialmente atribuído a diabetes gestacional. O paciente ao cursar com baixa estatura, reitera-se a relevância da suspeição, pelo pediatra generalista, dessa etiologia no diagnóstico diferencial, já que através da inclusão precoce da gasometria venosa e ionograma nos exames laboratoriais, o resultado é quase patognomônico, de baixo custo, amplamente acessível, e capaz de dispensar investigação onerosa e supérflua. Concluiu-se que a síndrome de Bartter é uma tubulopatia rara que cursa frequentemente com déficit ponderal e neuropsicomotor, cuja terapêutica precoce permite atenuação das complicações a longo prazo. O diagnóstico é fortemente sugerido por gasometria, tipicamente apresentando alcalose metabólica hipocalêmica. Devido à propedêutica amplamente acessível, sua investigação é imperativa no paciente com baixa estatura.

Palavras-chave: Diagnóstico Estatura por Idade, Síndrome de Bartter, Tratamento Farmacológico.

ABSTRACT

This article aims to present a case report involving Bartter syndrome in the differential diagnosis of short stature. This is a retrospective study, based on a prospective, descriptive, observational protocol of the case report type. The report involved a term newborn, without complications, vigorous, weighing 3.560g, measuring 50cm with gestational history of polyhydramnios at 27 weeks, initially attributed to gestational diabetes. When approaching patients under investigation for short stature, the relevance of suspicion of this etiology by the generalist pediatrician in the differential diagnosis is reiterated, since through the early inclusion of venous gasometry and ionogram in laboratory tests the result is almost pathognomonic, low cost, widely accessible, and capable of dispensing with onerous and superfluous research. In conclusion, Bartter syndrome is a rare tubulopathy that often has weight and neuropsychomotor deficit, whose early therapy allows long-term complications to be attenuated. Diagnostic strongly suggested by gasometry, typically presenting hypokalemic metabolic alkalosis. Due to the widely accessible propaedeutic, its investigation is imperative in the patient with short stature.

Keywords: Diagnosis, Stature by Age, Bartter Syndrome, Pharmacological Treatment.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Bartter (SB) é uma condição que contempla um grupo de doenças genéticas, autossômicas, recessivas, tubulares renais, caracterizadas por perda urinária de sódio, potássio e cloreto, alcalose metabólica hipocalêmica1-3, hiperaldosteronismo hiperrreninêmico e secundariamente níveis séricos e urinários elevados de prostaglandinas4,5, pressão arterial (PA) normal3 e resposta diminuída à ação vasopressora da angiotensina II com hiperplasia justaglomerular. Foi descrita inicialmente, em 1962, por Bartter et al.3, é geralmente identificada na infância e predomina no sexo masculino. Foram descritas ao menos cinco variantes genéticas da síndrome até o momento.

A etiologia da SB ainda não está totalmente esclarecida, sendo aventadas hipóteses baseadas em achados fisiológicos, com destaque àquela que sugere disfunção tubular renal no transporte e reabsorção de íons de sódio e cloro ao nível da porção espessa ascendente da alça de Henle7,8.

Os sinais e sintomas, de uma forma geral, são inespecíficos, embora quando associados a achados de retardo no desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), e distúrbios eletrolíticos e metabólicos, assumem um caráter sugestivo7. O paciente tipicamente apresenta as alterações laboratoriais supracitadas. São evidentes polidipsia, poliúria, déficit de crescimento, episódios fatais de desidratação8 e apresentam características clínicas da SB nos primeiros dois anos de vida, podendo apresentar sinais precoces ainda na vida intrauterina com acentuado polidrâmnio, podendo levar ao parto prematuro. A poliúria pós-natal que, em determinadas condições, causa desidratação grave, podendo constituir um sério risco de morte ao paciente, devido à ocorrência de acidose metabólica transitória9.

O tratamento envolve suporte clínico, baseado fundamentalmente no adequado controle dos distúrbios hidroeletrolíticos, com uso de suplementação de potássio (KCl)4, bem como o uso de a anti-inflamatórios não-esteroidais (AINEs), classicamente a indometacina que, através da redução dos níveis de prostaglandina E2 (PGE2), objetiva reduzir ou normalizar os distúrbios hidroeletrolíticos dos pacientes, tendo estes respostas variáveis ao suporte terapêutico, reposição de água e eletrólitos3.

No Brasil, dentre os principais empecilhos ao diagnóstico da SB estão a precisa identificação da mutação envolvida. Portanto, a inclusão de técnicas moleculares pode acelerar o diagnóstico e tratamento, bem como proporcionar aconselhamento genético familiar. No exame físico da SB neonatal, notam-se fácies típicas, caracterizada por face triangular, fronte proeminente e olhos grandes, podendo haver estrabismo3.

O diagnóstico da SB é fortemente sugerido por gasometria, e devido à propedêutica amplamente acessível, sua investigação sindrômica é imperativa no paciente com baixa estatura (BE). Dessa forma, o presente estudo propõe apresentar um relato de caso sugerindo a SB como diagnóstico diferencial de BE e reiterar a importância da gasometria dentro da investigação inicial, visto sua acessibilidade, resultado típico e de fácil interpretação, bem como a celeridade no início da terapia ser capaz de mudar o prognóstico cognitivo do paciente6.


RELATO DE CASO

NWMS, termo, sem intercorrências, vigoroso, pesando 3,560g, medindo 50cm com histórico gestacional de polidrâmnio às 27 semanas gestacionais, atribuído a diabetes mellitus gestacional (DMG). Apresentou triagem neonatal ampliada, normal, adequadamente imunizado e em aleitamento materno exclusivo (AME) até seis meses. Aos quatro meses de idade houve estagnação de ganho ponderal, atribuída à BE familiar e não investigada. Aos 2 anos de vida a mãe buscou novo pediatra quando foi constatado retardo de DNPM e iniciado investigação inicial, junto ao endocrinologista deste serviço, sendo afastado inicialmente doença celíaca, fibrose cística e desnutrição primária.

O paciente era cronicamente desnutrido, irritadiço, interagia pouco com o examinador, quando demonstrava evidente déficit de linguagem; intensa avidez por líquidos, ingerindo até 1.500ml de água diariamente, além da oferta constante de seio materno. Em investigação inicial mostrou radiografia de ossos longos compatível com idade cronológica, ressonância magnética de sela túrcica sem alterações, e níveis séricos de somatomedina C (IGF-1) muito reduzidos, afastadas hipóteses de doença celíaca e hipotiroidismo.

Com 30 meses, a gasometria evidenciou discreta alcalose metabólica com hipocalemia severa, foi solicitada a internação, no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes - HUCAM, para tratamento de distúrbio hidroeletrolítico e investigação diagnóstica. Na internação, o paciente apresentava vocabulário limitado a dissílabos, sinalizava vontades com o indicador; aparente déficit auditivo; pouca interação com o examinador e choro intenso às tentativas de exame físico. Exames laboratoriais revelaram labilidade nos níveis de potássio, sendo necessário iniciar a suplementação oral em doses altas (6mEq/kg/dia).

Em discussões multidisciplinares a equipe de nefropediatria tomou ciência do quadro do paciente, sugeriu diagnóstico de SB, e após hiperreninemia confirmada, fechou-se o diagnóstico, permitindo terapia com indometacina 1,2mg/kg/dia e xarope de KCl.

A resposta terapêutica foi rápida, com progressão da dose de KCl até 8,5mEq/kg/dia. Na tentativa de introduzir espironolactona em dose baixa, para reduzir oferta de xarope, houve piora da poliúria, alcalose, hipocalemia e hipocloremia. A terapia seguiu bem tolerada, exceto pela impalatabilidade do xarope de KCl e piora transitória de função renal, após breve incremento dose de AINE (2,5mg/kg/dia de indometacina). Não foram percebidos outros efeitos colaterais esperados das medicações prescritas, embora desde o início do tratamento com AINE o paciente fez uso concomitante de ranitidina profilática, logo, o risco de irritação gastrintestinal não pôde ser avaliado fidedignamente neste caso.

Após 8 meses de tratamento com houve ganho pôndero-estatural de 4kg e 17cm, com retorno à faixa de alvo genético, normalização de níveis séricos de IGF-1 e melhora comportamental. A abordagem genética sugeriu diagnóstico presuntivo de Bartter antenatal (tipo 1), com provável acometimento do gene SLC12A1. O alto risco de recorrência (25%) suscitou aconselhamento genético da família.

A alta do serviço de endocrinologia ocorreu 13 meses após o início da terapêutica, com normalização da velocidade de crescimento (Gráfico 1), dos níveis de IGF-1 e controle hidroeletrolítico sem maiores intercorrências. O paciente aguarda resultado de painel de mutações para SB; e encontra-se em seguimento regular há 42 meses nesta instituição. Desde o início da terapia vem mantendo valores séricos médios de potássio de 2,9mEq/L (variando de 1,9 a 4,3), sendo os últimos exames de novembro/2019 mostrando potássio de 3,4mEq/L, magnésio 2,2 mEq/L, gasometria venosa pH: 7,41 e bicarbonato 30,5mEq/L.


Gráfico 1. Evolução pôndero-estatural do paciente durante o curso do tratamento.*O triângulo laranja demonstra o momento da primeira constatação de deficiência de IGF-1(25-VR: 39-100); em verde o diagnóstico sindrômico e início da terapia. Logo após se percebe pronunciado ganho pôndero-estatural (verde); em azul o momento da primeira evidencia de normalização dos níveis de IGF-1.



RESULTADOS E DISCUSSÃO

A clínica do paciente, aliada ao histórico de polidrâmnio e déficit pôndero-estatural, potencializado pelas informações identificadas pela gasometria, sugeriram o diagnóstico.

A SB relaciona-se a distúrbios eletrolíticos e ácido-básicos, pertencendo a um grupo de tubulopatias caracterizadas, principalmente, por prejuízo na reabsorção de NaCl na porção espessa da alça de Henle, e excreção aumentada de potássio e hidrogênio2, com consequente hipocalemia e alcalose metabólica. Outras anormalidades incluem aumento nos níveis séricos de renina e aldosterona. Hipomagnesemia e hipofosfatemia ocorrem em poucos pacientes3,10. Araújo et al. (2007)1 citam que a alcalose metabólica, confirmada pela gasometria neste relato de caso, consiste na alteração predominante na SB, embora as outras anormalidades também podem estar presentes. A identificação precoce constitui importante estratégia de prevenção da morbimortalidade3,11.

Estudos sobre crescimento e desenvolvimento de pacientes com SB indicam que pode haver retardo de crescimento grave durante o período de lactente e pré-escolar. Em 1988, Rubin3 citou que os pacientes com SB raramente atingem altura normal e apresentam peso abaixo do esperado para a idade3. Estudos relatam que clinicamente, a maioria dos pacientes portadores da SB são desnutridos e apresentam retardo no crescimento12,13. Bhat et al. (2012)13 evidenciam que o retardo no crescimento é uma característica comum em pacientes acometidos pela SB; o atraso no desenvolvimento também é descrito em estudos anteriores; Maia et al. (2011)3 relatam que, apesar do reduzido número de pacientes, descobriu-se que o perfil metabólico, peso e estatura baixa, podem ser melhorados ou recuperados ao iniciar o tratamento específico com AINEs. Na presença de espasmos musculares ou tetania, o cálcio ou suplementos de magnésio podem ser necessários14.

Maia et al. (2011)3 mencionam que o mecanismo onde a indometacina (inibidor da síntese das prostaglandinas) melhora o crescimento linear é incerto, não há relação demonstrada com a dose, contudo, é notório que, apesar do retardo no crescimento, a estatura pode ser recuperada com o tratamento, o mesmo pode ser identificado no presente relato de caso.

A indometacina é o fármaco mais utilizado, e a sua dose inicial, para crianças, é de 1-3mg/kg/dia, devendo ser evitada até 4-6 semanas de vida neonatal, devido ao risco de enterocolite necrosante; acrescida da suplementação de magnésio, pois a hipomagnesemia pode agravar a perda de potássio10,15. Ibuprofeno parece ser uma boa alternativa. Em alguns casos, observa-se o efeito útil dos inibidores da enzima conversora da angiotensina, que reduz a produção de angiotensina II e de aldosterona na normalização da hipocalemia a médio e longo prazo1. O defeito tubular não pode ser corrigido, portanto, o tratamento para toda a vida deve reduzir os efeitos da elevação na produção de prostaglandina. A hipocalemia é o parâmetro que demanda maior atenção1.


CONCLUSÃO

A SB é uma tubulopatia rara que cursa frequentemente com déficit ponderal e do DNPM, cuja terapêutica precoce permite atenuação das complicações a longo prazo.

O diagnóstico é fortemente sugerido por gasometria. Devido à propedêutica amplamente acessível, sua investigação é imperativa no paciente com BE.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes - HUCAM, Residência Médica de Pediatria - Vitoria - Espirito Santo - Brasil
2. Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes - HUCAM, Endocrinologia Pediátrica - Vitoria - Espirito Santo - Brasil

Autor correspondente:

Pedro Henrique de Oliveira Celestrini
Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes
Av. Mal. Campos, 1355, Santos Dumont, Vitória, ES, Brasil
CEP: 29041-295
E-mail: pedro.celestrini@hotmail.com

Data de Submissão: 06/02/2020
Data de Aprovação: 08/03/2020