ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Diagnóstico de colelitíase intraútero no 3º trimestre gestacional: relato de caso e revisão de literatura

Fetal biliary lithiasis in third trimester of pregnancy: case report and literature review

RESUMO

A colelitíase fetal é uma condição benigna rara diagnosticada incidentalmente pela realização da ultrassonografia obstétrica de rotina. Sua incidência varia entre 0,03% a 2,3%. Costuma ter resolução espontânea com excelente prognóstico. No caso relatado, durante pré-natal materno a ecografia obstétrica com 34 semanas de gestação evidenciou presença de imagem hiperecoica na topografia da vesícula biliar do feto, compatível com cálculo biliar. Durante a gestação não apresentou intercorrências. Mãe com histórico de 3 anos antes da gestação ter apresentando colelitíase com colangite, sendo submetida à colecistectomia laparoscópica na ocasião. Com idade gestacional de 37 semanas, nasceu a paciente do sexo feminino, parto vaginal, sem intercorrências, Apgar 8/9. No primeiro dia de vida da paciente foi realizada ecografia de abdome que confirmou a presença de bile espessada e ao menos dois cálculos biliares medindo até 0,7cm, sem sinais inflamatórios e sem alterações de enzimas canaliculares. A paciente apresentou ainda icterícia neonatal tratada com fototerapia simples. Por não apresentar sintomas clínicos, nem sinais inflamatórios ou alterações laboratoriais, optou-se por seguimento clínico. Ao completar seis meses de vida foram repetidos laboratoriais com resultado dentro da normalidade e USG de abdome, que não demonstrou presença de cálculos, indicando resolução espontânea da colelitíase. Ainda que a maioria dos casos não curse com repercussões para os pacientes ou necessite de intervenções, é importante que o acompanhamento pós-natal seja realizado, com atenção especial para quadros de persistência dos cálculos ou obstrução das vias biliares, procurando possibilitar o tratamento precoce caso necessário.

Palavras-chave: colelitíase, litíase, recém-nascido, feto.

ABSTRACT

Fetal biliary lithiasis is a benign condition usually incidentally diagnosed in a routine obstetric echography. Incidence varies from 0,03% to 2,3%. Usually presents spontaneous resolution with excellent prognosis. In the case here reported, obstetric ultrasound performed at 34 gestational weeks demonstrated hyperechoic image in gall bladder suggesting biliary lithiasis. No complications occurred during gestation period. Three ears earlier the patients mother was submitted to laparoscopic cholecystectomy due to lithiasis and cholangitis. With 37 gestational weeks the patient was born, female, Apgar 8/9, vaginal delivery, no complications. At her first day of life abdominal echography was performed and confirmed the presence of thick bile and at least two gallstones measuring up to 0,7cm with no inflammatory signs and no laboratorial alterations. Patient presented neonatal icteric that was treated with simple phototherapy. Conservative treatment was chosen. When completed 6 months of age new echography was performed and demonstrated no signs of gallstones indicating spontaneous resolution of the biliary lithiasis. Even knowing that most part of the cases present no repercussion and also need no intervention, the post-natal follow up it is important with special attention to cases with persistence of lithiasis or biliary obstruction, making it possible to treat precociously when needed.

Keywords: Lithiasis, Cholelithiasis, Fetus, Infant, Newborn.


INTRODUÇÃO

A colelitíase fetal é uma condição benigna rara diagnosticada incidentalmente pela realização da ultrassonografia obstétrica de rotina. Sua incidência reportada na literatura varia entre 0,03% a 2,3%1. O primeiro relato de litíase biliar diagnosticada no período neonatal data de 19832, muito embora existam relatos de achados desta patologia em autópsias no ano de 19283. Complicações são raras, e na maioria das séries descritas, a litíase biliar apresenta resolução espontânea dentro do primeiro ano de vida4.


RELATO DE CASO

Gestante em pré-natal de baixo risco, acompanhamento adequado com realização de consultas e exames laboratoriais conforme estabelecido, todas as sorologias negativas, gestação sem intercorrências ou alterações até a 34ª semana de gestação, quando a ecografia de rotina evidenciou presença de imagem hiperecoica na topografia da vesícula biliar, sugerindo cálculo. História prévia materna demonstrou que 3 anos antes da gestação a mesma foi submetida à colecistectomia laparoscópica com colangiografia transoperatória por quadro de colangite e litíase biliar. O restante da gestação transcorreu normalmente. Com 37 semanas de idade gestacional apresentou parto vaginal espontâneo, sem intercorrências, RN do sexo feminino, com Apgar 8/9 e peso 2.710 gramas. Sem alterações ao exame físico, foi submetida à realização de ecografia de abdome com 24 horas de vida, que demonstrou vesícula biliar tópica, com paredes finas e regulares, contendo bile espessa e ao menos 2 cálculos em seu interior, medindo até 0,7cm (Figuras 1 e 2), sem sinais inflamatórios associados. Na ocasião foram realizados também exames laboratoriais, sem alterações nas bilirrubinas e enzimas canaliculares.


Figura 1. Ecografia da recém-nascida com 24 horas de vida demonstrando litíase biliar, sem sinais inflamatórios.


Figura 2. Ecografia da recém-nascida com 24 horas de vida demonstrando litíase biliar, sem sinais inflamatórios.



Com 48 horas de vida apresentou icterícia neonatal na zona 2 de Krammer, sendo tratada com fototerapia simples por 36 horas com melhora clínica. Por não apresentar sintomas clínicos nem sinais inflamatórios ou alterações laboratoriais, optou-se por seguimento clínico ambulatorial. Continuou o acompanhamento na puericultura com atenção especial para icterícia de rebote e discrasia sanguínea, sendo encaminhada para avaliação com hematologia que a liberou após conclusão de normalidade da investigação.

Ao completar seis meses de vida foram repetidos os exames laboratoriais, que apresentaram resultado dentro da normalidade e a ecografia de abdome não demonstrou presença de cálculos, indicando resolução espontânea da colelitíase. Atualmente a paciente está com um ano de idade, segue em acompanhamento ambulatorial de puericultura, sem sinais de recidiva da litíase ou outras intercorrências.


DISCUSSÃO

Nas últimas décadas, observou-se um aumento na detecção da litíase biliar no período pré-natal, provavelmente em virtude do aumento do uso da ecografia neste período e da melhor acurácia deste exame, com crescente melhoria dos aparelhos ecográficos e também maior experiência dos médicos que realizam este exame2. De acordo com a literatura, a partir da 14ª semana de gestação, a vesícula biliar fetal pode ser identificada como uma estrutura em forma de gota, com parede fina, adjacente a superfície inferior do lobo hepático direito4. De acordo com a literatura, após 20 semanas de gestação a vesícula biliar pode ser facilmente identificada em até 64,7% dos pacientes2. A presença de material ecogênico no interior da estrutura geralmente não é bem definida antes de 26 semanas de gestação2. A fisiopatologia da formação de cálculos neste período ainda permanece incerta, mas sugere-se que isso ocorra no terceiro trimestre em virtude da produção anormal de bile, alterações em sua composição e transporte neste período1,2.

De forma diferente da litíase que ocorre nos pacientes pediátricos e adultos, onde fatores de risco associados à formação dos cálculos são bem aceitos, no período neonatal, apesar de sugeridos alguns fatores de risco, eles não são amplamente estabelecidos3. Entre esses fatores podemos citar: doença hemolítica, descolamento prematuro de placenta, uso de narcóticos e antibióticos pela mãe, gravidez gemelar, colestase durante a gestação, malformações anatômicas congênitas, anormalidades cromossômicas, alterações da árvore biliar e incompatibilidade sanguínea1,2,5. A presença de histórico materno de colelitíase é outro fator que parece estar associado ao aparecimento de litíase no período pré-natal3,6, fator de risco este que foi identificado no caso aqui descrito. Estima-se que esses fatores estejam presentes em 1 a cada 4 casos, sendo que os 3 casos restantes não apresentariam quaisquer anormalidades que justificassem a litíase biliar no período pré-natal3.

A presença de lama biliar antes de 26 semanas de gestação é descrita como fator de risco para cronificação da litíase após o nascimento, bem como o aparecimento do cálculo após 30 semanas de gestação é associado com bom prognóstico pós natal6.

Na maioria da literatura vigente, existe uma predisposição pelo sexo masculino1, ao contrário do foi encontrado no caso relatado. A maior parte dos casos cursa com ausência de sintomas, mesmo após o nascimento7, como apresentado neste relato. A suspeita de litíase biliar deve ser diferenciada de achados ecográficos de outras patologias como peritonite meconial, infecção, sequestro pulmonar subfrênico, massas hepáticas císticas, calcificações intra-hepáticas infecciosas e hemangiomas da vesícula biliar5.

De acordo com a literatura, cerca de 70% dos casos se resolvem espontaneamente nos primeiros 3 meses de vida, 90% até os 6 meses de vida3 e quase todos eles se resolvem antes de um ano de idade6,7. Desta forma, a escolha pelo tratamento conservador é reforçada pela literatura3 e o acompanhamento com ecografias seriadas é o preconizado2,3. Existem algumas descrições de casos sintomáticos tratados com ácido ursodesoxicólico2 e na literatura revisada foram encontrados poucos casos de necessidade de cirurgia precoce1,3. Complicações em virtude da presença dos cálculos são raras4. As taxas de recorrência são desconhecidas2, porém estudos já demonstraram uma predisposição dos pacientes com litíase fetal ao desenvolvimento da litíase biliar no futuro3.


CONCLUSÃO

Ainda que a maioria dos casos não curse com repercussões para os pacientes ou necessite de intervenções, o conhecimento sobre esta patologia é importante e o acompanhamento pós-natal rigoroso deve ser realizado, com atenção especial para os quadros de persistência dos cálculos ou obstrução das vias biliares, procurando possibilitar o tratamento precoce caso necessário.


REFERÊNCIAS

1. Carvalho EG, Silveira GL, Peloso M, Freitas BAC, Gilberti ADP, Leite LAB, et al. Colelitíase fetal: um relato de caso. Braz J Surg Clin Res. 2018;22(2):59-61.

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3. Humi Y, Vigo F, Von Wattenwyl BL, Ochsenbein N, Canonica C. Fetal cholelithiasis: antenatal diagnosis and neonatal follow-up in a case of twin pregnancy – a case report and review of the literature. Ultrasound Int Open. 2017 Fev;3(1):e8-e12.

4. Triunfo S, Rosati P, Ferrara P, Gato A, Scambia G. Fetal cholelithiasis: a diagnostic update and a literature review. Clin Med Insights Case Rep. 2013 Out;6:153-8.

5. Molina-Giraldo S, Bermudes-Roa J, Pinzón WE, Torres LC, Alfonso DA. Diagnóstico prenatal de la colelitiasis fetal. Reporte de casos y revisión de la literatura. Rev Colomb Obstet Ginecol. 2012 Jan/Mar;63(1):78-84.

6. Troyano-Luque J, Padilla-Pérez A, Martínez-Wallin I, Rosa MA, Mastrolia SA, Trujillo JL, et al. Short and long term outcomes associated with fetal cholelithiasis: a report of two cases with antenatal diagnosis and postnatal follow-up. Case Rep Obstet Gynecol. 2014;2014:714271. DOI: http://dx.doi.org/10.1155/2014/714271

7. Llano JMA, Sarabia AR, Rueda VB, Fernández P, González JD, Candela RC. Material ecogénico en vesícula biliar fetal: diagnóstico prenatal y seguimiento posnatal. An Pediatr (Barc). 2004 Out;61(4):326-9.










Fundação Hospitalar São Lucas, Departamento de Pediatria & Cirurgia Pediátrica - Cascavel - Paraná - Brasil.

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Carolina Talini
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E-mail: caroltalini@yahoo.com.br

Data de Submissão: 30/03/2020
Data de Aprovação: 07/04/2020