ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Alterações endocrinológicas em crianças e adolescentes sobreviventes de linfoma de Hodgkin

Endocrinological disorders in childrens and adolescents survivors of Hodgkin lymphoma

RESUMO

INTRODUÇÃO: O linfoma de Hodgkin (LH) é uma das principais malignidades entre adolescentes e adultos jovens, mas apresenta alta taxa de sobrevida. As alterações endocrinológicas são frequentes em pacientes pós-tratamento, podendo acometer até 44% dos indivíduos.
OBJETIVOS: Avaliar as endocrinopatias presentes em pacientes submetidos ao tratamento do LH na infância e adolescência, correlacionar essas alterações com as características do tratamento e propor um protocolo de avaliação e seguimento.
MÉTODOS: Estudo retrospectivo, longitudinal, que, através de revisão de prontuário, avaliou crianças e adolescentes de 0-18 anos, sobreviventes do LH, com tratamento inicial e seguimento mínimo de 3 anos em um serviço de oncologia pediátrica, entre o período de 1990 e 2015.
RESULTADOS: A amostra foi composta por 75 indivíduos com média de idade ao diagnóstico de 9,2 anos e tempo de seguimento de 8,6 anos. Todos haviam sido submetidos à quimioterapia e 85,3% à radioterapia, com dose média de 25,7Gy. Foram excluídos 12 indivíduos por abandono de tratamento ou óbito. Ao menos uma alteração endocrinológica estava presente em 20,6% dos pacientes, sendo que 100% desses apresentavam disfunções tireoidianas, sendo o hipotireoidismo a mais frequente. Não foi possível avaliar a função gonadal, massa óssea, metabolismo da glicose ou dislipidemia na amostra devido à escassez de dados e período curto de seguimento.
CONCLUSÃO: A elaboração de um protocolo de avaliação e seguimento destes pacientes é necessária para padronização e diagnóstico precoce de comorbidades. O conhecimento das repercussões do tratamento é essencial para viabilizar uma qualidade de vida adequada ao sobrevivente.

Palavras-chave: Doenças do Sistema Endócrino, Doença de Hodgkin, Adolescente, Criança.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Hodgkins lymphoma (HL) is one of the main malignancies among adolescents and young adults, but with a high survival rate. Endocrinological disorders are frequent in post-treatment patients, affecting up to 44% of these individuals.
OBJECTIVES: To evaluate the endocrinopathies existing in patients undergone HL treatment in childhood and adolescence, to correlate these changes with the treatment characteristics and to propose an evaluation and follow-up protocol.
METHODS: Retrospective longitudinal study, performed through medical records analysis, that evaluated children and adolescents aged 0-18 years, HL survivors, with initial treatment and minimum 3 years follow-up in a pediatric oncology service from 1990 and 2015.
RESULTS: The sample consisted of 75 individuals with a mean age at diagnosis of 9.2 years and follow-up time of 8.6 years. All had undergone chemotherapy and 85.3% radiotherapy, with an average dose of 25.7Gy. Twelve individuals were excluded due to treatment abandonment or death. At least one endocrinological disorder was present in 20.6% of the patients, and 100% of them had thyroid dysfunction, with hypothyroidism being the most frequent. It was not possible to assess gonadal function, bone mass, glucose metabolism or dyslipidemia in the sample due to lack of data and short follow-up.
CONCLUSION: The elaboration of a protocol of evaluation and follow-up of these patients is necessary for standardization of management and early diagnosis of comorbidities. Knowledge of the repercussions of treatment is essential to provide better quality of life for the survivor.

Keywords: Endocrinology, Hodgkin Disease, Adolescent, Child.


INTRODUÇÃO

O linfoma de Hodgkin (LH) é uma neoplasia linfoproliferativa derivada dos linfócitos B que acomete o sistema linfático e se diferencia dos outros subtipos de linfoma pela presença da célula de Hodgkin, também chamada de célula de Reed-Sternberg1. É responsável por 7% dos casos de câncer na infância, com aproximadamente 12,1 casos novos por milhão por ano nos Estados Unidos1,2. Seu pico de incidência ocorre entre 15 e 19 anos, sendo raro em crianças menores, e sua taxa de sobrevida em 5 anos é, atualmente, maior que 90%1,3.

Devido ao progressivo aumento da chance de sobrevivência do LH, há também o crescente reconhecimento dos efeitos adversos tardios ao tratamento2,3. O Childhood Cancer Survivor Study (CCSS) afirma que 44% dos pacientes pós-tratamento de neoplasias apresentam ao menos uma alteração endocrinológica, 16,7% duas e 6,6% três ou mais3. Destes pacientes, os acometidos pelo LH têm a maior prevalência, podendo ocorrer em até 60% dos sobreviventes3,4.

As endocrinopatias encontradas nestes pacientes incluem as tireoidopatias, obesidade, diabetes mellitus, baixa estatura ou crescimento desproporcional, osteoporose e o hipogonadismo3-5. Dentre elas, as alterações tireoidianas se destacam pela maior incidência, estando presentes em 18 a 43% dos sobreviventes4-6. O risco de desenvolver hipotireoidismo é 2,2 vezes maior se comparados aos irmãos, 2,4 vezes maior de hipertireoidismo, 3,9 vezes maior para o surgimento de nódulos e 2,5 vezes maior para o câncer de tireóide3.

A incidência de tireoidopatias, especialmente o hipotireoidismo, está intimamente relacionada com altas doses de radioterapia (RT) em região cervical e é mais prevalente nas mulheres e pacientes de raça branca5,6. Um estudo americano relata que 30% dos pacientes que receberam RT em doses menores do que 21Gy (Gray) desenvolveram hipotireoidismo, enquanto 61% dos que receberam doses maiores evoluíram com a doença5. A RT é realizada em praticamente todos os pacientes com LH, até mesmo os de baixo risco, porém novos estudos sugerem protocolos com redução do uso para restringir os efeitos colaterais1,3.

No que se refere ao surgimento de obesidade e diabetes, estes são associados principalmente aos casos submetidos à RT abdominal ou a TBI (Total Body Irradiation)1,3. O comprometimento da função gonadal e da fertilidade estão relacionados às altas doses cumulativas dos agentes alquilantes utilizados na quimioterapia (QT), à idade ao diagnóstico e especialmente à RT pélvica1,3,7. Um estudo europeu demonstrou que somente 30% das mulheres tratadas com RT pélvica tiveram filhos, enquanto essa porcentagem subiu para 51% naquelas que receberam somente RT acima do diafragma7. Já o risco de osteoporose é 1,2 vezes maior nos pacientes que utilizaram metotrexate, glicocorticoides ou realizaram TBI, em relação aos que não receberam1.

Atualmente estima-se que existam mais de 900.000 sobreviventes de LH nos Estados Unidos, o que corresponde a 6% da população total de sobreviventes de câncer8. É importante ressaltar que muitos destes foram submetidos a protocolos de tratamento antigos e mais agressivos do que os utilizados atualmente1,8. Isto destaca a necessidade de criação de um plano de cuidado para os sobreviventes, com monitoramento do crescimento, desenvolvimento da puberdade e avaliações laboratoriais seriadas1,8.

O atendimento de um grande número de pacientes com LH em serviço de referência em oncologia pediátrica, aliado ao reconhecimento da importância da identificação de comorbidades na qualidade de vida destes pacientes motivaram a realização deste estudo.


MÉTODOS

Estudo retrospectivo, longitudinal que incluiu crianças e adolescentes de 0 a 18 anos sobreviventes do LH, com tratamento inicial e seguimento mínimo de 3 anos em um serviço de oncologia pediátrica durante 25 anos (1990-2015). O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa em seres humanos (CAAE 07696819.7.0000.0096).

Por meio da revisão de prontuários, foram analisados dados clínicos e antropométricos como idade ao diagnóstico, sexo, estatura, índice de massa corpórea (IMC), subtipo de doença, estadiamento e tratamento ao qual foi submetido, achados laboratoriais e radiológicos, ao diagnóstico e nas consultas de seguimento ambulatorial da oncologia e da endocrinologia pediátrica. A estatura e o IMC foram convertidos em score Z utilizando-se o software da Organização Mundial da Saúde (OMS) AnthroPlus® (2007). Optou-se por realizar somente a estatística descritiva devido ao tamanho da amostra e escassez de dados.


RESULTADOS

A amostra foi composta por 75 indivíduos, sendo 24% (18) do sexo feminino e 76% (57) do sexo masculino. A média de idade ao diagnóstico foi de 9,2 anos 2,8 DP, variando de 3,7 anos a 14,8 anos. A maioria dos pacientes não apresentavam comorbidades relevantes prévias ao LH, havendo apenas um paciente com fibrose cística, um com neurofibromatose, um paciente HIV positivo, um com síndrome de Down, um paciente pós-TMO por anemia de Fanconi e um pós-transplante hepático por atresia de vias biliares.

O local mais acometido foi a região cervical associada à mediastino em 25,3% (19) dos pacientes, além de 18,6% (14) com cervical, mediastino e outros locais associados. Dentre os subtipos histológicos, a variante celularidade mista foi a mais prevalente (49,3%; 37), seguida por esclerose nodular (30,6%; 23), predomínio de linfócitos (13,3%; 10) e depleção linfocitária (6,6%; 5). No momento do diagnóstico, 40% (30) dos pacientes apresentavam estádio II da doença, 26,6% (20) estádio IV, 24% (18) estádio III e apenas 9,3% (7) estádio I. Os sintomas B – febre inexplicável, perda de peso maior que 10% nos últimos 6 meses e sudorese noturna – foram observados na maior parte deles (52%; 39), assim como a presença de massa mediastinal (56%; 42). Em contrapartida, o comprometimento de medula óssea foi constatado somente em 8% (6) dos pacientes.

Referente ao tratamento, todos os indivíduos da pesquisa foram submetidos à QT (diversos protocolos e número de ciclos) (Gráfico 1). Dentre esses, o esquema quimioterápico ABVD (adriamicina, bleomicina, vimblastina e dacarbazina) foi o mais realizado (52%; 39). Exceto este esquema, todos os demais continham altas doses de corticoide (48%; 36). Além disso, 89,3% (67) foram expostos à agentes alquilantes, com dose média de 5,09g/m2 2,4 DP, variando de 1,8 a 13,6g/m2 (mediana 4,65). Os alquilantes mais frequentemente utilizados foram a dacarbazina, não clássica, e a procarbazina, ciclofosfamida e mecloretamina ou mostarda nitrogenada, alquilantes clássicos. Treze pacientes (17,3%) foram expostos a pelo menos dois ciclos de MOPP ou COPP (mecloretamina ou ciclofosfamida e vincristina, prednisona e procarbazina).


Gráfico 1. Quimioterapia realizada em pacientes pediátricos com LH (1990-2015). ABVD: adriamicina (doxorrubicina), bleomicina, vimblastina e dacarbazina*; OPPA: vincristina, procarbazina*, prednisona e adriamicina; VAMP: vimblastina, adriamicina, metotrexato e prednisona; OEPA: Vincristina, etoposideo, prednisona e adriamicina; COP: ciclofosfamida, vincristina, prednisona. *agentes alquilantes clássicos e não clássicos. Fonte: O autor (2019).



A RT foi realizada em 85,3% (64) da amostra, sendo as regiões mais prevalentes a supra e infradiafragmática associadas (42,6%; 32), seguida de mantle (18,7%; 12) e região cervical e fossa supra clavicular (14%; 9). A dose média de radiação foi de 25,7Gy 7,62DP, variando de 8,5Gy a 36Gy (mediana 24,5Gy). O tempo de duração do tratamento foi de 7,16 meses 4,5 DP (mediana 6,69) e 18,6% (14) dos pacientes apresentaram recidiva. Desses, 57,1% (8) um único episódio, 35,7% (5) dois episódios e 7,1% (1) três episódios. O local mais comum de recidiva foi o abdome, seguido de mediastino, região cervical, inguinal e outros.

Foram excluídos da pesquisa de seguimento 12 indivíduos, sendo 3 por abandono de tratamento e 9 óbitos, restando 63 pacientes. O tempo médio de acompanhamento foi de 8,63 anos 3,38DP, variando de 3,0 a 16,7 anos (mediana 7,9). A idade média da última consulta foi de 17,9 anos 3,7 DP, variando de 10,2 a 26, 2 anos. O score Z da estatura e do IMC no início do tratamento encontravam-se no -0,67 (1,27DP) e -0,24 (1,2DP), respectivamente. Já na última consulta, encontravam-se em -0,74 (1,09DP) e -0,19 (1,21DP), respectivamente. Não houve diferença estatística significativa entre essas medidas.

Ao menos uma alteração endocrinológica estava presente em 20,63% (13) dos pacientes, sendo que 100% desses apresentavam disfunções tireoidianas. Dez com hipotireoidismo, 3 com nódulos tireoidianos e 1 com carcinoma papilífero de tireoide (Tabela 1). Além disso, uma paciente desenvolveu falência ovariana precoce com necessidade de reposição hormonal e osteopenia, uma paciente desenvolveu obesidade grave e um paciente hipogonadismo hipergonadotrófico.




DISCUSSÃO

O LH é mais comumente diagnosticado em adolescentes e adultos jovens entre 15 a 24 anos, porém, nossa amostra foi composta por um grupo mais jovem, com média de idade de 9,2 anos1,9. Um estudo realizado na Alemanha, Áustria e Suíça entre 1978 e 2002, encontrou 2.548 casos de LH em menores de 18 anos com idade média ao diagnóstico de 13,3 anos, entretanto, o tempo de seguimento foi de 14,3 anos, enquanto o presente estudo foi de somente 8,6 anos10. Outro estudo no St. Jude Children’s Hospital, nos Estados Unidos, encontrou 461 pacientes menores de 21 anos, tratados entre 1980 e 2002, com média de idade de 15,3 anos e tempo de seguimento de 11,3 anos6.

Assim como demonstrado neste estudo, a maioria dos pacientes encontrava-se em estádio II da doença ao diagnóstico, sendo 38% em um estudo populacional americano e 40% em nossa pesquisa11. Já o subtipo histológico mais prevalente foi o celularidade mista (49,3%), apesar das estatísticas mundiais apontarem o subtipo esclerose nodular como mais prevalente nas crianças e adolescentes, podendo representar aproximadamente 80% dos casos1,11.

A QT combinada no tratamento do LH iniciou na década de sessenta e foi sedimentada com a publicação de estudos em 1970 comprovando a eficácia do esquema MOPP12. Desde então, novos esquemas foram propostos visando reduzir os efeitos colaterais da QT, marcado pelo surgimento do ABVD em 197512,13. Visto que nosso trabalho foi composto por indivíduos tratados somente após 1990, 52% foi submetido ao esquema ABVD, que foi utilizado em 84% dos pacientes a partir do ano 2000 em um estudo conduzido no sul da California9. Neste caso, 95% das crianças e adolescentes com LH receberam QT, tal como a totalidade da nossa amostra recebeu9.

Função gonadal

Os agentes alquilantes utilizados e classicamente relacionados com alterações da função gonadal e fertilidade são a ciclofosfamida e a procarbazina, estando a mecloretamina em desuso14-16. A dacarbazina presente no esquema ABVD, um agente gonadotóxico leve, considerada um alquilante não clássico, isoladamente poderia ser capaz de levar à azoospermia transitória em 1/3 dos homens e desenvolver falência ovariana precoce em mulheres menores de 40 anos, mas seu efeito é potencializado se combinado a outros agentes e à RT16. Um estudo grego realizado em pacientes do sexo masculino, com média de diagnóstico aos 10,8 anos, que utilizaram alquilantes clássicos, correlacionou doses de 6,3g/m2 de ciclofosfamida e 4g/m2 de procarbazina à valores de FSH superiores à 10UI/L e tamanho testicular reduzido14.

Quase 90% da nossa amostra foi submetida a uma dose média de 5g/m2 de alquilantes e 17% submetidos a 2 ou mais ciclos de MOPP ou COPP, porém, somente 2 casos de alteração na função gonadal foram identificados, sugerindo uma falha na detecção destes pacientes. Um estudo demonstrou que 6 ciclos de MOPP seriam capazes de causar azoospermia prolongada em 90-100% dos homens e levar a falência ovariana em 5-25% das mulheres menores de 30 anos e em 50-80% das maiores de 30 anos16. Ocorre redução do volume ovariano e da reserva folicular, com menopausa precoce, redução do risco de câncer de mama e aumento do risco de osteoporose e doença cardiovascular16,17.

As recomendações mais recentes do Children’s Oncology Group (COG), em 2008, ressaltam a necessidade de rastreio para pacientes submetidos à 3 ou mais ciclos de MOPP, dose cumulativa de 7,5g/m2 de ciclofosfamida ou qualquer dose de alquilante associado à RT abdominal, pélvica ou TBI. Orienta realizar anualmente o estadiamento de Tanner, com medida do volume testicular pelo orquidômetro, dosar LH, FSH e testosterona ou estradiol em todos os homens, a partir dos 14 anos, e mulheres, a partir dos 13 anos, e repetir os exames conforme sinais de atraso puberal ou deficiência hormonal18.

Não há evidência comprovada que o uso de análogos de GnRH, como a leuprorrelina e a triptorrelina, durante o período de QT, seja capaz de reduzir o recrutamento folicular e os níveis de estrogênio, melhorando a função ovariana e preservando a fertilidade16,19.

Metabolismo ósseo

Os pacientes que receberam protocolos quimioterápicos diferentes do ABVD (48%; 36) foram expostos à altas doses de corticoide, variando de 40 a 60mg/m2/dia de prednisona durante 15 dias em cada ciclo, com média de 4 a 6 ciclos. Esse fator, associado ao risco de falência ovariana precoce que leva a deficiência estrogênica e aos demais efeitos tóxicos dos quimioterápicos, aumenta o risco de osteoporose15,18. Conforme recomendações do COG, pacientes expostos a doses cumulativas de prednisona de 9g/m2 ou mais devem realizar densitometria óssea no início do seguimento e repetir conforme necessidade individual, lembrando também da importância em avaliar a ingesta diária de cálcio e os níveis séricos de vitamina D18.

Tireoide

A alteração da função tireoidiana é considerada o distúrbio benigno mais comum após o tratamento de LH, sobretudo o hipotireoidismo3,4,20,21. A incidência pode chegar a 60% dos pacientes submetidos à RT cervical13,17,20. Ocorre principalmente nos primeiros 5 anos livres de doença, especialmente no segundo e terceiro ano, mas o risco permanece por até 25 anos pós RT21,22. É mais comum em mulheres, assim como na população em geral, porém, nossa amostra foi homogênea entre os sexos21.

O risco de desenvolver hipotireoidismo após doses de 30Gy é de 11,5% se o volume da tireoide acometido for menor ou igual a 62,5% e aumenta para 70,8% de chance se o volume for maior que 62,5%22. Em nossa amostra, 20,6% dos pacientes evoluíram com hipotireoidismo, com dose média de 29Gy e somente uma paciente que não recebeu RT. Em comparação com os demais estudos, a dose média foi mais alta, variando de 32 a 38Gy21,22.

Já o surgimento de uma segunda malignidade é uma das principais causas de morte em pacientes pós tratamento de LH, sendo os tumores sólidos responsáveis pela maioria dos casos e a RT o principal fator de risco13,17. O prognóstico parece ser pior em pacientes submetidos ao tratamento mais jovens, principalmente antes dos 15 anos11. Um estudo com 2.548 pacientes pós-LH, com diagnóstico médio aos 13,3 anos, encontrou uma incidência cumulativa em 30 anos de 4,4% de carcinomas de tireoide para homens e mulheres, com idade média de 24,7 anos; 13,2 anos após o LH. Todos eles haviam sido submetidos à RT cervical ou mediastinal, com doses médias de 20Gy, e o subtipo mais comum foi o carcinoma papilífero de tireoide10. Isso reforça a importância de novas abordagens de tratamento, com diminuição das doses e da prescrição de RT, além de melhora das técnicas utilizadas13,22.

Uma análise realizada na população americana avaliou 174 casos de câncer de tireoide pós LH, diagnosticados entre 1973 e 2012, e comparou sua apresentação e resposta ao tratamento com o CA primário de tireoide. Não houve diferença entre o padrão histológico, risco de metástase ou taxa de sobrevida, porém, a idade ao diagnóstico foi menor em pacientes com LH prévio, provavelmente pelo seguimento e vigilância maior desse subgrupo11. Ademais, recomenda-se que a conduta perante nódulos de tireoide nesses pacientes seja semelhante a população geral e, se indicada retirada do nódulo, deve-se optar preferencialmente pela tireoidectomia total23.

As diretrizes do COG orientam que seja realizada a palpação anual de tireoide e dosagem de função tireoidiana, com TSH e T4 livre, em todos os pacientes submetidos à RT cervical, supra clavicular, mantle e mini mantle. A ultrassonografia deve ser realizada somente naqueles com alteração no exame físico18.

Metabolismo da glicose e dislipidemia

O CCSS demonstrou que pacientes tratados com RT apresentavam 1,8 vezes mais chance de desenvolver diabetes do que seus irmãos e que esse risco aumentava para 2,7 vezes na RT abdominal. Não foi encontrada correlação com o aumento do IMC ou prática de atividade física, mas a chance era 2,4 vezes maior nos pacientes submetidos ao tratamento antes dos 5 anos se comparado aos adolescentes de 15 a 20 anos24. Já um estudo francês e britânico evidenciou que doses de RT maiores ou iguais a 10Gy em região de cauda pancreática, local de maior concentração das Ilhotas de Langerhans, associam-se a um risco 11,5 vezes maior de desenvolver diabetes se comparado aos pacientes que não receberam25. Mais recentemente, em outra pesquisa, não houve aumento do risco de diabetes em pacientes tratados com RT abdominal em doses menores que 35Gy, mas os submetidos a doses maiores ou iguais a 36Gy apresentavam chance 2,58 vezes maior. Pacientes tratados antes dos 25 anos eram particularmente afetados e o risco de diabetes permanecia por mais de 30 anos após o tratamento26.

No que concerne à dislipidemia, pacientes sobreviventes de LH, avaliados na República Tcheca e comparados com um grupo controle, apresentaram 3 vezes mais síndrome metabólica, com aumento nos níveis de insulina, glicemia de jejum, pressão arterial e perfil lipídico. Essas alterações foram independentes das doses de RT27. Em nossa pesquisa, provavelmente devido ao tamanho da amostra e tempo de seguimento reduzido, não foi possível identificar pacientes com diabetes ou dislipidemia, porém, de acordo com as recomendações do COG, é importante manter avaliação antropométrica desses pacientes, com avaliação do IMC e dosagem de perfil lipídico a cada 2 anos ou antes se necessário18.

Crescimento

Sabe-se que a baixa estatura e o crescimento linear prejudicado podem estar relacionados à estados de má nutrição, uso prolongado de corticoides, inibidores da tirosino-quinase, retinoides e à RT espinal. Estruturas ósseas submetidas à RT tem risco elevado de baixo crescimento e crescimento desproporcional. Apesar de não ser utilizado em pacientes com LH, tratamentos que incluam RT cranial e TBI podem levar à deficiência do hormônio de crescimento e, em doses elevadas (30Gy), múltiplas deficiências hipotálamo-hipofisárias28.

Protocolo de avaliação e seguimento

O LH é o exemplo de uma neoplasia curável, com altas taxas de sobrevida, porém, com efeitos adversos pulmonares, cardiovasculares, musculares e endocrinológicos decorrentes do tratamento. Dentre eles, as alterações endocrinológicas são as mais comumente encontradas e, com o rastreio correto, permitem identificação e intervenção precoce. Além disso, a importância de novas abordagens terapêuticas, com o avanço das técnicas de RT, redução das doses utilizadas e o surgimento de protocolos quimioterápicos menos nocivos, reduzem os impactos da terapia.

A elaboração de um protocolo de avaliação e seguimento facilita a compreensão da equipe, reduz falhas, leva a padronização do serviço e antecipa o diagnóstico (Tabela 2). Além disso, o seguimento a longo prazo é necessário para melhor avaliação destes pacientes. É incontestável que a cura da neoplasia é a prioridade, entretanto, o conhecimento das repercussões do tratamento são essenciais para viabilizar uma qualidade de vida adequada ao sobrevivente.




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Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Departamento de Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Luiza Marcolla Bordin
Complexo Hospital de Clínicas UFPR
Rua Gen. Carneiro, nº 181, Alto da Glória
Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80060-900
E-mail: luizabordin@hotmail.com

Data de Submissão: 24/02/2020
Data de Aprovação: 21/07/2020