ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Perfil clínico-epidemiológico dos pacientes pediátricos assistidos pelo programa de assistência domiciliar interdisciplinar de um hospital de referência no Rio de Janeiro

Clinical-epidemiological profile of pediatric patients assisted by the interdisciplinary home care program of a reference hospital in Rio de Janeiro

RESUMO

O Programa de Assistência Domiciliar Interdisciplinar do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (INSMCA Fernandes Figueira/FIOCRUZ) - PADI IFF - é pioneiro na atenção domiciliar (AD) pediátrica pública no estado do Rio de Janeiro. Ele promove desospitalização segura, proporciona continuidade do cuidado de maneira multidisciplinar, integral e individualizada, humanizando a assistência de crianças com condições crônicas complexas de saúde e dependentes de tecnologia. Foi descrito o perfil clínico-epidemiológico dos pacientes do programa analisando-se: gênero, idade, data de internação, origem, residência, diagnósticos, número de internações prévias, dependência de tecnologias, tempo de internação hospitalar antes da alta pelo programa, reinternações durante a AD e desfecho da AD. Não houve predominância de gênero, a maioria é formada por lactentes e pré-escolares, residentes do município do Rio de Janeiro. A maternidade de origem dessas crianças é o INSMCA Fernandes Figueira em 70% dos casos. As condições clínicas eram, em sua maioria, compostas por afecções respiratórias e foi visto que 90% dos pacientes possuem doenças relacionadas ao período perinatal (malformações congênitas, distúrbios genéticos, afecções da prematuridade). As condições crônicas foram responsáveis por longos períodos de internação, muitos deles com origem no período neonatal. Todos são dependentes de pelo menos dois tipos de tecnologia médica e 80% possui mais de um diagnóstico. Prevaleceu o uso de ostomias, sendo a gastrostomia o principal dispositivo. São dependentes de oxigenioterapia 80% dos pacientes e 50% utiliza ventilação mecânica. Após a desospitalização, 40% das crianças nunca reinternaram e duas receberam alta do programa.

Palavras-chave: Assistência Domiciliar, Pediatria, Doença Crônica.

ABSTRACT

The Interdisciplinary Home Care Program of the Fernandes Figueira National Institute for Women’s, Children’s and Adolescents’ Health (INSMCA Fernandes Figueira/FIOCRUZ) - PADI IFF - is pioneer in public pediatric home care (HC) in the state of Rio de Janeiro. It promotes safe dehospitalization, provides continuity of care in a multidisciplinary, comprehensive and individualized way, humanizing the care of children with technology-dependent complex chronic health conditions. The clinical-epidemiological profile of the patients in the program was described, analyzing: gender, age, date of admission, origin, residence, diagnoses, number of previous admissions, dependence on technologies, length of hospital stay before discharge from the program, readmissions during the HC, and outcome of the HC. There was no gender predominance; most are infants and preschoolers, residents of the city of Rio de Janeiro. The maternity of origin of these children is the INSMCA Fernandes Figueira in 70% of the cases. Clinical conditions were mostly composed of respiratory disorders and 90% of the patients have diseases related to the perinatal period (congenital malformations, genetic disorders, prematurity disorders). Chronic conditions were responsible for long periods of hospitalization, many of them originating in the neonatal period. All are dependent on at least two types of medical technology, and 80% have more than one diagnosis. The use of ostomies prevailed, with gastrostomy being the main device. 80% of the patients were dependent on oxygen therapy and 50% used mechanical ventilation. After dehospitalization, 40% of the children were never readmitted and two were discharged from the program.

Keywords: Home Care, Pediatrics, Chronic disease


INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, houve uma transição epidemiológica baseada no aumento das condições crônicas de saúde e redução das infectocontagiosas. Anteriormente, crianças morriam por desidratação em quadros diarreicos, doenças imunopreveníveis, desnutrição e doenças infecciosas. Dentre as causas para esse fenômeno, destacam-se: programas de imunização, melhores condições sanitárias e ambientais, terapia de reidratação oral, incentivo ao aleitamento materno, aperfeiçoamento da assistência neonatal e aos prematuros, inovação cirúrgica para correção de malformações congênitas, desenvolvimento de fármacos e tecnologias médicas1. Todos esses elementos proporcionaram aumento na sobrevida daqueles que antes iam a óbito na ausência dessas intervenções. Com este novo panorama, as doenças crônicas na pediatria ganharam destaque.

As doenças crônicas possuem etiologias diversas: metabólicas, degenerativas, hereditárias, congênitas, inflamatórias, autoimunes, infecciosas que cronificam. São condições com expectativa de duração de pelo menos um ano; que produzem sequelas (limitando funções orgânicas, atividades diárias, papéis sociais em comparação a crianças hígidas da mesma idade do ponto de vista emocional, físico, cognitivo); que exigem cuidados médicos e de outros profissionais de saúde além do que seria necessário para determinada faixa etária; que demandam dependência de medicamentos, tecnologias, aparelhos, dietas especiais e cuidadores2.

Dentro da população pediátrica, estão as crianças com condições crônicas complexas de saúde (CCCs). São crianças com necessidade de cuidados especializados, acometidas por uma ou mais doença crônica (grave ou que tenha elevada morbidade/mortalidade), trazendo limitação não só do ponto de vista orgânico, mas também no que diz respeito às atividades diárias e à participação comunitária. Além disso, possuem doenças que geram dependência de tecnologias médicas e importante demanda por serviços de saúde (acompanhamento multidisciplinar e especializado, internações frequentes e prolongadas, múltiplas cirurgias)3,4. Ainda neste grupo, estão as crianças dependentes de tecnologias (CDTs). São aquelas que, devido a alguma limitação física e/ou perda de função vital, exigem tecnologias para sobrevivência como traqueostomia (TQT), gastrostomia (GTT), derivação ventriculoperitoneal (DVP), cateteres de longa permanência, nutrição parenteral (NPT), diálise peritoneal, sondas enterais para alimentação, cateterismo vesical (CV), cateter nasal de oxigênio, ventilação mecânica (VM)5.

Com este panorama, torna-se imprescindível o olhar diferenciado para novas demandas, que englobam, principalmente, cuidados multidisciplinares e dependência de tecnologias. Como resultado das necessidades produzidas pela doença crônica e das comorbidades que a acompanham, há um maior número de internações que tendem a ser mais prolongadas, gerando consequências físicas e psicossociais para o paciente e família6. Nesse sentido, é essencial buscar amenizar os efeitos prejudiciais das internações e, quando possível, priorizar o cuidado em domicílio.

O PADI IFF foi criado em abril de 2001, objetivando atendimentos domiciliares para pacientes pediátricos do INSMCA Fernandes Figueira com doenças crônicas e dependentes de tecnologia, aptos a serem acompanhados fora do ambiente hospitalar. Durante o ano de 2019, atendeu dez crianças na região metropolitana do Rio de Janeiro via equipe multidisciplinar composta por médico, farmacêutico, nutricionista, enfermeiro, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo e assistente social.

No que diz respeito ao campo da AD pediátrica, o PADI IFF é pioneiro, sendo o único nessa modalidade na rede pública do estado do Rio de Janeiro. Ele proporciona desospitalização segura das CDTs, reduz o tempo de permanência hospitalar e garante maior rotatividade de leitos. Também estimula medidas de prevenção para reduzir o risco de infecções e evitar reinternações frequentes, diminui custos do tratamento e articula a rede de cuidado próxima ao domicílio. Em parceria com a rede de saúde do território e o “Programa Melhor em Casa”, presta atenção integral, orienta familiares e comunidade acerca das noções básicas de saúde e de atividades adequadas à boa evolução dos pacientes, viabilizando maior participação familiar no ato de cuidar, humanizando a assistência e facilitando a inserção das CDT em seu núcleo social.


MÉTODOS

Trata-se de estudo quantitativo, descritivo e transversal sobre o perfil clínico-epidemiológico dos pacientes assistidos pelo PADI IFF, tendo como base dados dos prontuários ativos dos pacientes abrangidos pelo programa entre os meses de janeiro a outubro de 2019, perfazendo um total de dez pacientes.

As variáveis de estudo foram: gênero, data de nascimento, data de internação, origem (INSMCA Fernandes Figueira/FIOCRUZ ou externo), residência, diagnósticos baseados em dez grandes categorias de acordo com os sistemas envolvidos e a CID-10, número de internações prévias à AD, dependência de tecnologias, tempo de internação hospitalar antes da AD, reinternações durante a AD, desfecho da AD. As informações foram organizadas em banco de dados eletrônico, utilizando-se planilhas em Microsoft Excel, Windows versão 2013, e submetidas a uma análise descritiva, mediada por tabelas de frequências absoluta e relativa.

Foram obtidos termo de consentimento livre e esclarecido do (a) responsável pelo participante da pesquisa e termo de assentimento informado para crianças até 12 anos e para crianças e adolescentes entre 12 e 18 anos, em consonância à Resolução no 466/2012 e obtida aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do INSMCA Fernandes Figueira/FIOCRUZ.


RESULTADOS

Foram estudados dez pacientes – cinco do sexo feminino (50%) e cinco do sexo masculino (50%). Quatro estão na faixa etária de 28 dias a 2 anos, sendo lactentes (40%), quatro pertencem à faixa de 2 a 6 anos, sendo classificados como pré-escolares (40%), um pertence à faixa de 6 a 10 anos, sendo escolar (10%) e um da faixa de 10 a 18 anos, sendo adolescente (10%). Oito moram no município do Rio de Janeiro (80%) e dois (20%) moram fora do município (na região metropolitana do Rio de Janeiro).

Quanto aos diagnósticos principais e classificação CID-10 (Tabela 1), três pacientes possuem condições neurológicas e/ou neuromusculares, enquadrando-se em malformações congênitas do sistema nervoso (30%), todos com síndrome de Arnold-Chiari tipo II (AC II) - um deles com síndrome de Moebius e outro com AC II associado a síndrome de Edwards. Nas condições cardiovasculares, dois possuem malformações congênitas do aparelho circulatório (20%) - tetralogia de Fallot e isomerismo cardíaco esquerdo com comunicação interatrial (CIA).




Quanto às anomalias congênitas/defeitos genéticos, três são afetadas (30%): uma estando dentro de anomalias cromossômicas não classificadas em outra parte (síndrome de Edwards); duas com defeitos de parede abdominal e diafragma - uma com gastrosquise levando a síndrome do intestino curto; outra com onfalocele corrigida no período neonatal. Um paciente está categorizado em condições gastrointestinais por síndrome do intestino curto (10%).

Oito possuem diagnósticos baseados em condições respiratórias (80%): um com doença pulmonar crônica (DPC) por deficiência de surfactante; um com DPC secundária a bronquiolites e pneumonias de repetição; três com malformações cardíacas levando à insuficiência respiratória crônica (IRC); um com acometimento de sistema nervoso central evoluindo com DPC; dois broncodisplásicos por prematuridade. Cinco pacientes (50%) estão englobados nas condições relacionadas à prematuridade e ao período neonatal: dois classificados na parte de doenças respiratórias por displasia broncopulmonar pela prematuridade (20%); um prematuro extremo (10%); dois com crescimento intrauterino retardado (20%). Três pacientes (30%) são afetados por condições renais e/ou urológicas, por quadro de bexiga neurogênica com necessidade de cateterismo vesical intermitente dado seu diagnóstico principal - síndrome de AC II.

Quanto ao número de diagnósticos, duas crianças possuem apenas uma condição clínica de base (20%), cinco possuem duas (50%), três possuem pelo menos três (30%). Dessas três crianças, duas possuem três diagnósticos e uma possui cinco diagnósticos (Figura 1).


Figura 1. Número de diagnósticos.



Todos dependem de tecnologias. Quanto ao tipo dependência, todos possuem ostomias. Oito deles têm GTT (80%), cinco têm TQT (50%) e um tem ileostomia (10%). Dentro do grupo das crianças ostomizadas, seis possuem apenas uma ostomia (60%) e quatro apresentam mais de uma ostomia (40%). Nove pacientes (90%) são dependentes de oxigenoterapia e de VM. Dentro destas tecnologias, 55,5% dos pacientes são dependentes de ambas. Em relação à oxigenoterapia domiciliar, oito pacientes são dependentes de oxigênio (80%). Três desses pacientes (30%) necessitam de assistência ventilatória invasiva e dois necessitam da não invasiva (20%). Quanto à DVP, dois pacientes possuem este dispositivo (20%). Quanto ao cateterismo vesical, três pacientes (30%) precisam deste tipo de tecnologia. Individualizando-se cada dispositivo, os mais utilizados foram a GTT e a oxigenoterapia – 80% dos pacientes são dependentes de cada uma delas. Em se tratando do número de tecnologias médicas utilizadas por cada paciente, cinco fazem uso de duas (50%) e os outros cinco (50%) dependem de pelo menos três tecnologias para manutenção de suas funções vitais (Tabela 2).




Sete pacientes (70%) nasceram no INSMCA Fernandes Figueira. Seis pacientes (60%) permaneceram internados desde o nascimento neste local até a data da alta domiciliar para o PADI IFF após estabilidade clínica. Apenas uma criança nascida na instituição teve alta da maternidade para casa, porém retornou para internação por pneumonia/bronquiolite. Esta internação foi prolongada até a alta para o programa. Os outros três pacientes não nascidos no INSMCA Fernandes Figueira internaram na instituição por pneumonia.

Considerando o número de internações antes da alta via PADI IFF (Tabela 3), oito pacientes tiveram 1 a 2 internações (80%). Destes, seis pacientes (60%) tiveram apenas uma internação, aquela que correspondeu a internação desde o nascimento. Dois tiveram duas internações (20%). Um paciente teve entre 3 a 5 internações (10%) e um paciente teve mais de cinco internações (10%). Quanto à duração de internação antes da alta, cinco pacientes (50%) permaneceram internados por mais de 12 meses. Três (30%) permaneceram internados por 6 a 12 meses e dois permaneceram internados por menos de 6 meses (20%).




Quanto ao número de reinternações após a alta hospitalar, quatro pacientes nunca reinternaram (40%). Três apresentaram 1 a 2 reinternações (30%), dois apresentaram 3 a 5 reinternações (20%) e apenas um apresentou mais de 5 reinternações (10%). Entre os motivos das reinternações, estavam: quadros respiratórios (pneumonia, bronquiolite, pneumotórax), quadros gastrointestinais (gastroenterite), quadros urinários (infecção do trato urinário), febre a esclarecer, convulsão febril e realização de GTT. A maioria das internações se deu por doenças infecciosas agudas, destacando-se as de causa respiratória. Dos pacientes analisados, dois haviam recebido alta da atenção domiciliar no período do estudo (20%).


DISCUSSÃO

Evidenciou-se que no grupo assistido pelo PADI IFF não houve predomínio de um gênero em relação a outro, que maioria era lactente e pré-escolar e residente do município do Rio de Janeiro. Mariani et al. (2016)7, em seu estudo sobre o perfil de crianças, adolescentes e seus cuidadores assistidos por um programa de atenção domiciliar no munícipio de Belo Horizonte, revelou que sua amostra era predominante do sexo masculino, diferentemente do PADI IFF. Por outro lado, a faixa etária contemplada era de 0 a 6 anos, semelhante à população PADI IFF.

Quanto aos diagnósticos, a maioria são relacionados a condições respiratórias (60%). Aquelas ligadas ao período neonatal e à prematuridade equivalem a 50%. As condições neurológicas, genéticas e renais/urológicas equivalem em prevalência (30%). Mariani et al. (2016)7 descreveram, ainda, que os agravos principais eram de etiologia neurológica, seguidos de respiratória, genética e, por fim, neoplásica. Essa diferença, porém, talvez possa ser justificada por diversos motivos – o artigo de referência não inclui as condições relacionadas ao período neonatal como classificação de diagnóstico de internação, não se podendo dizer que não há esse tipo de acometimento no programa de Belo Horizonte; o INSMCA Fernandes Figueira não contempla oncologia como especialidade; o acometimento renal/urológico citado no nosso perfil não aparece como diagnóstico principal, mas secundário à condição de base – AC II com bexiga neurogênica secundária a mielomeningocele – talvez por isso esteja em maior prevalência quando comparado com o artigo em questão.

Vernier e Cabral (2006)8, em seu trabalho sobre a caracterização de crianças com necessidades especiais de saúde e de seus cuidadores de um Hospital Federal do Rio Grande do Sul, classificou os diagnósticos em afecções perinatais e adquiridas. Dentro das perinatais, encontram-se as de origem congênita (malformações, síndromes genéticas) e as adquiridas (prematuridade, hipóxia neonatal, infecção neonatal). A maioria das crianças dependentes de cuidados especiais eram afetadas por causas perinatais (58,5%). No estudo do PADI IFF, as malformações neurológicas, cardíacas, gastrointestinais e síndromes genéticas são classificadas à parte das condições relacionadas ao período neonatal, estando setorizadas por sistemas, com base no CID-10. A partir do momento em que agrupamos essas condições dentro das causas neonatais/perinatais, essa parcela passa a corresponder a 90% do grupo. Pode-se inferir que as doenças que acometem as crianças assistidas estão relacionadas, majoritariamente, a causas perinatais, destacando-se as malformações congênitas, se classificarmos de forma semelhante ao programa de AD do Rio Grande do Sul. Essa informação corrobora com o aperfeiçoamento do cuidado intensivo neonatal e o avanço tecnológico na área cirúrgica na correção das malformações congênitas.

As etiologias respiratórias presentes englobam: DPC causadas por alterações genéticas (deficiência de surfactante); DPC secundárias a pneumonias/bronquiolites de repetição; IRC por distúrbios neurológicos; doença pulmonar secundária a cardiopatias congênitas; broncodisplasia da prematuridade. Esta última, no estudo, está classificada em uma categoria distinta (condições relacionadas a prematuridade/período neonatal). Verifica-se, então, que as doenças respiratórias teriam prevalência de 80% dentre os pacientes assistidos se considerarmos a broncodisplasia pela prematuridade dentro das condições respiratórias, não a classificando dentro de condições ligadas ao período neonatal.

Em relação ao número de diagnósticos, 80% possui pelo menos duas condições clínicas de base, dado similar à literatura quando comparado ao grupo de Mariani et al. (2016)7, no qual a maioria também possuía mais de um diagnóstico. Os diagnósticos principais das crianças na atual análise muitas das vezes envolvem diagnósticos secundários e comorbidades associadas, conferindo complexidade a esse perfil de paciente. Incluída na população de estudo, por exemplo, está uma paciente que teve crescimento intrauterino restrito, com anomalia cromossômica (síndrome de Edwards), associada a uma malformação do sistema nervoso central (AC II). Neste caso, a criança também possui comunicação interatrial e interventricular corrigidas cirurgicamente (secundária ao Edwards), mielomeningocele e bexiga neurogênica (associada ao AC II), além de DPC.

Glendinning et al. (2001)9 cita que no final da década de 80, estimava- se que nos Estados Unidos havia cerca de 100.000 crianças dependentes de tecnologia. No Reino Unido, a estimativa era, no início do ano 2000, de cerca de 6.000 crianças. No Brasil, Drucker (2007)10 refere que não há registros sobre a prevalência dessas crianças, mas a partir de experiências pontuais se infere a existência de um número significativo destas crianças.

Todos são dependentes de tecnologias médicas, justamente por se tratar de um programa que tem como critério de inclusão essa dependência. Todos necessitam de pelo menos duas para manutenção de suas funções vitais de forma a compensar alguma perda funcional. Tal fato pode ser justificado pelos diagnósticos complexos e comorbidades associadas, com acometimento de mais de um sistema.

Quanto ao tipo de tecnologia, todos são ostomizados. A GTT possui prevalência de 80%. A malformações congênitas de etiologia neurológia (levando ao atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, dificultando alimentação por via oral) e as internações prolongadas (proporcionando períodos de nutrição parenteral ou por sonda, sem que haja um estímulo contínuo da via oral), podem contribuir para essa elevada prevalência. Em relação à TQT, a prevalência é de 50%. Verifica-se que todos com TQT possuem condições neurológicas e/ou DPC, estando envolvidos com história entubação prolongada e desmame ventilatório difícil.

Da parte respiratória, a maioria necessita de oxigenoterapia domiciliar (80%). Isso está de acordo com a maior prevalência de condições respiratórias no grupo assistido pelo PADI IFF: dos pacientes com condições respiratórias crônicas, todos são dependentes de oxigênio suplementar. O grupo é heterogêneo: estão não somente aqueles com condições respiratórias de causa pulmonar intrínseca ou secundária à prematuridade, mas também aqueles com doenças neurológicas que evoluíram para IRC e os com cardiopatia congênita. Quanto à VM, 50% dos pacientes a utilizam. Destes, 60% fazem uso da ventilação invasiva, enquanto 40% utilizam a não invasiva. Comparativamente, Alencar et al. (2018)11 evidenciaram que no grupo assistido pelo “Programa Melhor em Casa” da cidade de Curitiba, 62,5% dos pacientes são dependentes de oxigenoterapia e 68% utiliza a ventilação invasiva.

Quanto à origem, a maioria nasceu no INSMCA Fernandes Figueira. Apesar de a maioria das crianças possuir uma única internação previamente à AD, esta corresponde, em 60% dos casos, a uma internação com origem ao nascimento. Até a alta para a AD, a maior parte dessas hospitalizações se prolongaram por pelo menos 12 meses. Esse dado pode ser justificado pela alta prevalência das condições perinatais/neonatais, principalmente malformações congênitas e síndromes genéticas. Justamente estas crianças com internações prolongadas são as de maior complexidade clínica. Nesse sentido, é imprescindível pensar no plano terapêutico desde o período neonatal, aventando-se possibilidade de uma AD futura.

Após a alta para seguimento com a AD, 40% não apresentou novas internações. Bernadá et al. (2019)12 descreveram que em um programa de AD pediátrico no Uruguai houve redução no número de consultas de emergências e internações, assim como diminuição no tempo de internação. Alencar et al. (2018)11 também evidenciaram uma baixa incidência de re-hospitalizações. Esses dados refletem o impacto da desospitalização pela AD.

As reinternações foram, em sua maioria, relacionadas a infecções respiratórias, gastrointestinais e urinárias. As respiratórias foram as mais comuns, justificadas pela prevalência das condições respiratórias de base das crianças. Por outro lado, a tecnologia, ao mesmo tempo em que acaba compensando a perda de uma função vital, garantindo alta hospitalar, também contribuiu para reinternações: pielonefrites por cateterismo vesical frequente; pneumotórax de repetição no cronicamente ventilado; internação para realização de gastrostomia.

Durante o estudo, duas crianças receberam alta do PADI IFF (20%). Esta deu-se em função dos seguintes fatores: manutenção da estabilidade clínica em domicílio, não necessidade dos dispositivos tecnológicos, autonomia do cuidado, acesso às terapias de reabilitação disponíveis na rede básica de saúde e acompanhamento especializado em hospital terciário. O PADI IFF possibilitou que não houvesse reinternações em 40% dos casos. Sem o programa, as hospitalizações se perpetuariam por mais tempo, impossibilitando a permanência da criança em ambiente familiar e em seu meio social, dificultando a autonomia do cuidado.

Foram identificadas crianças com múltiplos diagnósticos, dependentes de tecnologias médicas e com histórico de internações prolongadas. Visto que a maioria destas internações tem sua origem no período neonatal, torna-se necessário o planejamento do processo de desospitalização destes pacientes potencialmente crônicos, desde a unidade de terapia intensiva neonatal até a alta hospitalar para a AD. O PADI IFF é uma opção segura para os pacientes pediátricos com condições crônicas e dependentes de tecnologia que, mesmo após estabilização do quadro clínico de base durante a internação, ainda tenham a necessidade de recursos especiais e de cuidados por equipe multiprofissional. Ele objetiva a promoção e manutenção da estabilidade clínica da criança, além de humanizar a assistência. É necessário, portanto, maior enfoque a este tipo de cuidado em saúde, capacitação de profissionais e criação de políticas que incentivem este tipo de prática neste novo contexto da pediatria.


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Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (INSMCA Fernandes Figueira/FIOCRUZ), Programa de Assistência Domiciliar Interdisciplinar (PADI) - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Raquel Gomes Lot
Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira
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Rio de Janeiro/RJ, 22250-020
E-mail: raquelglot@gmail.com

Data de Submissão: 01/09/2020
Data de Aprovação: 26/10/2020