ISSN-Online: 2236-6814

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Artigo de Revisao - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Alergia às proteínas do leite de vaca e a atenção primária à saúde: uma revisão narrativa das diretrizes atuais

Cow's milk protein allergy and primary health care: a narrative review of current guidelines

RESUMO

OBJETIVOS: Realizar uma revisão narrativa da literatura sobre as diretrizes atuais para alergia alimentar e disponibilizar algoritmos com as principais recomendações para manejo de alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) em crianças na atenção primária.
MÉTODOS: Foram pesquisadas publicações relevantes nas bases de dados Cochrane Library, MEDLINE, PubMed, Guidelines International Network, National Guidelines Clearinghouse and National Institute for Health e Clinical Excellence (NICE) com utilização das palavras-chaves sobre o tema e os artigos encontrados foram revisados, assim como as recomendações do guia e do consenso nacional de alergia alimentar.
CONCLUSÃO: Diagnóstico e tratamento adequados de APLV em crianças são fundamentais, considerando seu impacto nutricional, emocional e socioeconômico. As diretrizes de prática clínica disponibilizam recomendações baseadas em evidência científica melhorando a qualidade do cuidado, entretanto sua implementação prática é um desafio. Ademais, a escassez de algoritmos que favoreçam a acessibilidade à informação dos extensos conteúdos científicos disponibilizados é uma realidade que torna relevante a proposta de um manejo de APLV na atenção primária que seja mais prático, aplicável e acessível, de modo a consolidar uma prática clínica baseada em evidência científica.

Palavras-chave: Alergia ao Leite, Alergia Alimentar, Diagnóstico, Atenção Primária, Manejo da Doença.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To perform a narrative review of the literature about current guidelines for food allergy and present the main recommendations for Cow’s Milk Protein Allergy (CMPA) management in children at primary health care by algorithms.
METHODS: We searched for relevant publications on the Cochrane Library, MEDLINE, PubMed, Guidelines International Network, National Guidelines Clearinghouse and National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE) using the keywords on this topic. We made a comprehensive review of these publications as well as the recommendations of the Brazilian guide and consensus for food allergy.
FINAL REMARKS: Adequate diagnosis and treatment for CMPA in children is essential, considering its nutritional, emotional and socioeconomic burden. Clinical practice guidelines provide recommendations based on scientific evidence improving quality of care; however, their implementation is challenging due to the lack of practical algorithms applicable and accessible for the management of CMPA in primary care. In addition, the lack of algorithms that favor accessibility to information from the extensive scientific content available is a reality that makes relevant a more practical proposal for a management of CMPA, applicable and accessible in order to consolidate a clinical practice based on scientific evidence.

Keywords: Milk Allergy, Food Allergy, Diagnosis, Primary Care, Disease Management.


INTRODUÇÃO

A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) é uma das alergias alimentares mais observadas na primeira infância1 e pode ser definida como uma reação adversa de caráter imunológico, que ocorre, de forma reprodutível, cada vez que o indivíduo suscetível se expõe às diferentes proteínas do leite de vaca2.

Preocupações com o diagnóstico precoce e oportuno da APLV, bem como com o seu adequado tratamento, vêm sendo destacadas ao longo dos anos, não só pelo impacto nutricional que ocasiona, mas também emocional e socioeconômico3,4. Entretanto, a prática de medicina baseada em evidências (MBE) nesse campo é um desafio particular no que diz respeito à qualidade, clareza, aplicabilidade, dentre outros aspectos do conteúdo publicado nas diferentes diretrizes, o que pode prejudicar a conformidade entre suas recomendações e a prática clínica.

A adesão dos profissionais da atenção primária às diretrizes, bem como as razões para possíveis inconformidades com suas recomendações ainda não são inteiramente conhecidas. Diferentes estudos demonstraram que o conhecimento sobre o manejo de AA entre profissionais de saúde brasileiros pode ser inadequado5-8. Um estudo transversal, foi conduzido entre pediatras brasileiros em 2017 e demonstrou baixa adesão às diretrizes de alergia alimentar. A falta de recursos foi a principal barreira à adesão na percepção dos entrevistados, mas a falta de conhecimento foi destacada pelos autores como uma barreira relevante com impacto nos resultados observados8.

Conhecimento e aplicabilidade das recomendações são pontos críticos a serem considerados, especialmente na atenção primária. Nos últimos anos, vivenciamos um fluxo enorme de informações acerca de recomendações relacionadas ao diagnóstico e tratamento da APLV, muitas amplamente disponibilizadas, mas não exatamente acessíveis, uma vez que muitas são extensas e pouco práticas para um profissional generalista. A partir de uma revisão das principais recomendações vigentes, publicadas em diretrizes internacionais e, em conformidade com o consenso brasileiro, este artigo delineia as diferentes apresentações clínicas e pontua de forma simplificada o diagnóstico e tratamento da APLV para profissionais da atenção primária.


MÉTODOS

Trata-se de uma revisão narrativa das principais diretrizes para diagnóstico e tratamento da APLV. Publicações relevantes foram pesquisadas nas bases de dados Cochrane Library, MEDLINE, PubMed, Guidelines International Network, National Guidelines Clearinghouse and National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE) com utilização das palavras-chaves sobre o tema e os artigos encontrados foram selecionados e revisados, juntamente com as recomendações do guia e do consenso nacional de alergia alimentar.

A seleção foi fundamentada na publicação de Ruszczyński et al. (2016)9 que revisaram sistematicamente a qualidade de 15 diretrizes veiculadas para APLV e demonstraram que os escores de qualidade para cada domínio avaliado variaram entre os diferentes documentos. Dentre as diretrizes analisadas nesse estudo, as dez com maior pontuação e melhor qualidade foram utilizadas como base para essa revisão9.

As diretrizes MAP (Milk Allergy in Primary Care guideline)10 e iMAP (International Milk Allergy in Primary Care)11, foram incluídas por fornecerem algoritmos simples e acessíveis para médicos na atenção primária. Tais documentos não foram resultado de análises de novas evidências, mas sim a apresentação de recomendações de diretrizes vigentes através algoritmos de uso fácil para auxiliar profissionais de saúde no atendimento de crianças com sintomas sugestivos de APLV11. No Brasil, as recomendações para tratamento da alergia alimentar e, em especial da APLV, estão disponíveis em guias e consensos que não preenchem os critérios metodológicos necessários para serem classificados como diretrizes (do inglês, guidelines), mas, mesmo assim, foram utilizadas por sua relevância na prática clínica em nosso país12-14.

Diagnóstico de APLV

Crianças são expostas precocemente às proteínas do leite de vaca (LV) pela dieta materna (se amamentadas), pela ingestão de fórmula infantil ou durante a introdução dos alimentos sólidos1. Portanto, não é de surpreender que o LV seja considerado o principal responsável pelas alergias alimentares na infância, com prevalência estimada entre 0,5% a 3% no primeiro ano de vida1. No Brasil, Gonçalves et al. (2016)15 verificaram que 23,5% dos pais relataram alergias alimentares em seus lactentes, mas apenas 1,9% foram confirmados pelos testes de provocação oral, sendo o LV a principal causa da alergia alimentar.

A APLV pode ser classificada quanto à sua resposta imunológica em: mediada por imunoglobulina da classe E (IgE), não-mediada por IgE ou mista (quando ocorre uma resposta com componentes da mediada por IgE e não-mediada por IgE)16. A categorização dos sintomas quanto ao mecanismo imunológico envolvido é importante para auxiliar no manejo diagnóstico (Tabela 1).




Na reação mediada por IgE, os sinais e sintomas são de início rápido, minutos a duas horas após exposição ao alérgeno16. Nas não-mediadas por IgE, são tipicamente crônicos e ocorrem horas e até dias após a ingestão de proteínas do LV, como resultado de repetidas exposições17.

Como observado na Tabela 1, os sinais e sintomas do paciente suspeito de APLV é diversificado e atinge vários sistemas do organismo18. Nas reações IgE mediadas, destacam-se os sintomas dermatológicos (sendo a urticária o representante mais prevalente)19 e nas não-mediadas por IgE, os gastrointestinais (cólica, constipação e vômitos)17. Embora cada doença tenha sinais e sintomas únicos, eles podem se sobrepor e variar em gravidade17. Não é incomum o envolvimento de mais de um órgão20.

Os sintomas, em sua maioria, surgem em idade precoce, frequentemente, quando a criança está amamentando, o que complica ainda mais o diagnóstico, visto que existe uma coincidência temporal com os transtornos gastrointestinais funcionais que podem apresentar sinais e sintomas semelhantes (alteração do hábito intestinal, refluxo, constipação e cólica) e ocorrem em até 31% dos lactentes21.

História clínica e exame físico na APLV

A história clínica continua sendo a “pedra angular” do diagnóstico da APLV com unanimidade entre as diferentes diretrizes internacionais e recomendações nacionais14. Informações sobre idade de início e natureza dos sintomas, frequência da manifestação, tempo entre ingestão e início dos sintomas, quantidade necessária, método de preparação, reprodutibilidade, influência de fatores externos na manifestação (por exemplo, exercício, alterações hormonais, fatores emocionais), diário alimentar, registros prévios de peso e de comprimento, detalhes da alimentação prévia (duração da amamentação, idade de introdução da fórmula infantil e dos sólidos e tipo de fórmula introduzida), respostas às dietas de restrição e intervenções terapêuticas instituídas devem estar relatadas19. História pessoal e/ou familiar (pais ou irmãos) de doença atópica, como dermatite atópica, asma, rinite alérgica ou alergia alimentar, também devem ser referenciadas17.

A anamnese detalhada auxiliará o pediatra a distinguir quais sintomas podem estar relacionados à APLV e qual mecanismo está envolvido, como demonstrado no tópico anterior. Na Figura 1, descreve-se que a APLV deve ser particularmente considerada se há:


1) Histórico familiar de doença alérgica14;
2) Sintomas persistentes que afetam diferentes sistemas orgânicos em lactentes (um ou mais sintomas descritos na Tabela 1)14;
3) Dermatite atópica moderada a grave, doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) ou outros sintomas gastrointestinais persistentes (incluindo cólica e constipação), em lactentes, sem resposta às intervenções terapêuticas10,17.



Figura 1. Suspeita de alergia às proteínas do leite de vaca - mecanismo imunológico envolvido.
Fonte: Modificado e adaptado de Venter et al. (2013)10.
APLV = Alergia às proteínas do leite de vaca; DRGE = Doença do refluxo gastresofágico.



Exames complementares na APLV

A indicação de exames complementares varia de acordo com o mecanismo imunológico envolvido, a gravidade e a evolução da doença. De acordo com as diretrizes, não devem ser solicitados antes de ser obtida uma história clínica detalhada, focada nos sintomas e sinais da APLV.

Caso a história clínica seja sugestiva de alergia mediada por IgE, o médico poderá solicitar as dosagens séricas de IgE específicas in vitro. A detecção de IgE específica para leite ou suas frações proteicas em uma criança indica sensibilização, portanto a interpretação do exame deve ser amparada na história clínica. Estes exames, se bem indicados e efetuados pelo método de ImmunoCap®, apresentam altas taxas de sensibilidade e especificidade13.

Valores de corte para níveis de IgE sérica específica para LV e frações, que minimizaria a chance de realização de testes de provocação oral, foram identificados em diferentes populações, com resultados divergentes, não sendo possível estabelecer valores universais22. No Brasil, devido à heterogeneidade das populações estudadas, diferentes pontos de corte foram estabelecidos. Para crianças entre 1 e 18 anos de idade, o ponto de corte foi de 11kU/L23. Em pacientes anafiláticos, de 3,06kU/L (especificidade: 98% e VPP: 95%)24. Em menores de 3 anos, com sintomas de APLV IgE mediada, o ponto de corte foi 5,17kU/L (especificidade: 90% e VPP: 88%)25.

Na APLV não mediada por IgE, não há evidências de que qualquer biomarcador, incluindo IgE específicas para leite e frações, tenha validade clínica no diagnóstico e, embora alguns biomarcadores tenham sido estudados em pesquisas, as diretrizes são unânimes em não recomendar pesquisá-los na prática clínica até o momento17. A dieta de exclusão da genitora com posterior reintrodução do LV, após melhora clínica, é o melhor instrumento diagnóstico26. De acordo com as diretrizes, exames para detecção de elementos anormais nas fezes (sangue oculto, leucócitos) e outros marcadores fecais como a alfa 1-antitripsina e calprotectina, em utilização isolada, não têm valor definido tanto para diagnosticar como para descartar APLV em pacientes com manifestações inespecíficas27.

Endoscopias e biópsias do trato gastrintestinal podem ser indicadas para diagnosticar APLV e fazer diagnóstico diferencial. Na prática clínica, porém, a endoscopia só deve ser realizada quando houver forte suspeita de um diagnóstico alternativo ou sintomas persistentes (por exemplo, vômitos e/ou diarreia)27. Pacientes com esofagite eosinofílica são os potenciais candidatos para a realização de várias endoscopias, não só para diagnóstico como também para o seguimento (Tabela 2).




Após as avaliações destacadas anteriormente, encaminhar ao especialista para que seja dado, quando necessário, seguimento na investigação e elucidação diagnóstica (Figura 1). A revisão das diretrizes ressaltou alguns aspectos relevantes em diagnóstico:

O Prick test é um método de detecção de IgE específica in vivo, executado por especialista. Pode ser realizado com extratos do LV total e/ou de suas proteínas (α- lactalbumina, β-lactoglobulina e a caseína), além do LV fresco28 e é considerado positivo quando o diâmetro médio da pápula for maior ou igual a 3mm em relação ao controle negativo19. Sua positividade se relaciona à sensibilização ao alimento, sem indicar alergia alimentar25. Em situações como história de anafilaxia prévia ou condições que possam alterar a resposta cutânea, os testes in vivo são contraindicados29.

O teste de provocação oral (TPO) é considerado o exame padrão-ouro no diagnóstico de APLV e consiste em administrar o leite de vaca de forma gradual e progressiva, por equipe capacitada e em ambiente controlado para atendimento de reações potencialmente fatais30.

Diagnostico diferencial

Quando do acometimento do trato digestivo, considera-se fundamental descartar malformações, distúrbios metabólicos, causas infecciosas, neurológicas ou parasitárias, devendo ser dado o maior destaque a essa última pela sua grande prevalência em nosso país.

Habitualmente, entre pacientes e médicos, há uma confusão entre intolerância à lactose e APLV, o que pode resultar em restrição alimentar desnecessária ou reações evitáveis31. A intolerância à lactose é uma reação não imunológica causada pela deficiência da enzima lactase, diferente da APLV que é uma reação imunológica às proteínas do leite de vaca. A lactose, carboidrato predominante no leite, é um dissacarídeo constituído pelos monossacarídeos glicose e galactose. A absorção intestinal da lactose requer hidrólise em seus monossacarídeos, pela enzima lactase, presente na borda em escova do intestino delgado32. Quando há falta da lactase, sintomas incluindo dores abdominais, distensão, flatulência e diarreia podem ocorrer e serem confundidos com APLV33. Sua ocorrência é incomum, na forma primária, em menores de 2-3 anos, quando outras etiologias devem ser pesquisadas32.

Tratamento da APLV

As recomendações vigentes estão apresentadas nas Figuras 2 e 3. Destaca-se que a exclusão do alérgeno ainda é a melhor opção de tratamento da APLV. No entanto, a eliminação de alimentos que contribuem com nutrientes essenciais, principalmente na infância, pode levar ao desenvolvimento de agravos nutricionais e predispor dificuldades alimentares3. Portanto, um bom manejo nutricional, seja na indicação criteriosa do(s) alimento(s) a ser(em) excluídos(s), seja na escolha de uma fórmula substituta, ou na suplementação de micronutrientes, é fundamental.


Figura 2. Manejo da alergia às proteínas do leite de vaca não IgE mediada.
Fonte: Modificado e adaptado de Venter et al. (2013)10.
APLV = Alergia às proteínas do leite de vaca.


Figura 3. Manejo da alergia às proteínas do leite de vaca mediada por IgE.
Fonte: Modificado e adaptado de Franco et al. (2019)25.
APLV = Alergia às proteínas do leite de vaca; TPO = Teste de provocação oral.



Na APLV, a manutenção do aleitamento materno, principalmente no primeiro semestre de vida, é primordial34. Mães devem ser encorajadas a continuar a amamentação e evitar restrições lácteas em sua dieta, a menos que a criança tenha sintomas que indiquem essa necessidade22. Se a criança, em aleitamento materno exclusivo, apresenta sintomas que sugerem APLV, é recomendável que a mãe inicie dieta de eliminação do LV e derivados, por período estabelecido (2 a 4 semanas), e faça suplementação de cálcio (1.000mg/dia)22 associado à vitamina D (600-1.000UI/dia)3. Com a adequada dieta de restrição materna, observa-se, em média, melhora dos sintomas no lactente nas formas IgE entre 3 e 6 dias e nas não IgE mediadas em até 14 dias. Após melhora clínica, deve-se proceder à reintrodução do leite de vaca na dieta materna para confirmação ou exclusão do diagnóstico (Figuras 2 e 3)26.

Na impossibilidade de manter o aleitamento materno, seja por ausência de resposta à dieta de eliminação materna, seja por outros fatores, é recomendado o uso de fórmulas infantis. A escolha da fórmula ideal para o tratamento é uma decisão que deve basear-se na idade da criança, na apresentação clínica, na composição nutricional e na alergenicidade residual da fórmula hipoalergênica proposta (Figura 2).

A maioria das crianças com APLV melhora com o uso da fórmula extensamente hidrolisada (FeH). Em geral, as diretrizes sugerem o uso de fórmula de aminoácidos (FAA), como tratamento de primeira linha, apenas para apresentações mais graves de APLV, como: (1) sintomas não totalmente resolvidos com a FeH; (2) faltering growth (declínio do traçado da curva de peso/idade ou peso/estatura após três verificações sucessivas); (3) múltiplas eliminações dietéticas; (4) doenças gastrointestinais graves; (5) esofagite eosinofílica; (6) FPIES; (7) dermatite atópica grave, quando criança em aleitamento materno exclusivo; (8) histórico de anafilaxia14,17,22,34-38.

A fórmula da soja contém fitatos, que podem afetar a absorção de nutrientes, e isoflavonoides em quantidades que tornam esta fórmula inadequada para uso em crianças com menos de seis meses de idade22. Não é recomendada como primeira escolha pelas sociedades internacionais34-38. No Brasil, porém, está indicada como primeira opção em crianças com mais de 6 meses com alergia mediada por IgE14. Também pode ser indicada se as FeH não forem aceitas/toleradas ou se o maior custo das FeH for um fator que impeça a acessibilidade ou ainda se houver fortes preferências dos pais (por exemplo, dieta vegana)22. Bebidas à base de soja não devem ser utilizados para tratamento de APLV em crianças14,38.

Fórmulas hidrolisadas de arroz surgiram como uma possibilidade pela segurança alergológica, já que são constituídas a partir do arroz, proteína pouco alergênica39. Entretanto, sua segurança nutricional vem sendo estudada, o que limita, por enquanto, sua utilização na prática clínica14.

Fórmulas parcialmente hidrolisadas não são consideradas hipoalergênicas, portanto, não devem ser utilizadas para o tratamento da APLV22. Fórmulas isentas de lactose contém proteínas intactas de leite de vaca, sendo assim, não devem ser utilizadas no tratamento de APLV22. Além da bebida à base de soja, não se recomenda também o uso de outras bebidas vegetais (arroz, nozes, aveia ou similares), como substitutos de fórmulas, no tratamento de crianças, haja vista as inadequações nutricionais para a faixa etária e o alto risco de desnutrição grave ao utilizá-las14.

Leite de outros mamíferos (cabra, ovelha, búfala) não devem ser utilizados como substituto do leite de vaca pela semelhança quanto à estrutura proteica e chance de reatividade cruzada14. A possibilidade de reação cruzada entre LV e carne bovina é inferior a 10%6 e relaciona-se à presença de albumina sérica bovina, por isso a carne de vaca não deve ser excluída da alimentação da criança a não ser que haja certeza de que seu consumo esteja relacionado com uma piora dos sintomas14.

A introdução da alimentação complementar em crianças com APLV deve seguir os mesmos princípios preconizados para crianças saudáveis. Não há restrição à introdução de alimentos contendo proteínas potencialmente alergênicas (ovo, peixe, castanhas, amendoim) a partir do sexto mês, estejam os lactentes em aleitamento materno ou em uso de fórmula infantil. O atraso na introdução de alguns alimentos alergênicos pode inclusive prejudicar o desenvolvimento de tolerância oral40. Deve-se evitar apenas a introdução simultânea de dois ou mais alimentos fontes de proteína38.


CONCLUSÃO

A APLV é uma doença em evolução com grande impacto na saúde da criança, o que torna fundamental seu diagnóstico e tratamento adequados. Diferentes diretrizes de prática clínica têm sido publicadas para aprimorar a abordagem em crianças com suspeita ou diagnóstico de APLV, disponibilizando recomendações baseadas em evidência científica. A restrição do LV na dieta ainda é considerada a melhor forma de tratar e de prevenir reações potencialmente graves, portanto sua recomendação é unânime entre as diretrizes. Destaca-se a atenção que deve ser dada à substituição inadequada do LV que pode acarretar deficiências nutricionais ou influência negativa nas práticas alimentares com prejuízos imediatos e/ou tardios para os lactentes. Diretrizes de alta qualidade, aliadas a algoritmos claros e aplicáveis, bem como a intervenções educacionais eficazes, podem ser capazes de consolidar uma prática clínica embasada em evidências científicas por profissionais da atenção primária, minimizando repercussões negativas da doença a curto e médio prazo.


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1. Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Pediatria - Aracaju - Sergipe - Brasil
2. Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Departamento de Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Carlos Tourinho Lapa Filho
Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe
R. Cláudio Batista - Dom Luciano
Aracaju/SE - Brasil. CEP: 49060-108
E-mail: carlos800@gmail.com

Data de Submissão: 29/12/2020
Data de Aprovação: 16/02/2021