Relato de Caso
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Ano 2022 -
Volume 12 -
Número
4
Anomalia de Pelger-Huët: um relato de caso pediátrico
Pelger-Huët anomaly: a pediatric case report
Caroline Mundel1; Irides Aparecida Cavalari1; Ana Paula Vieira2; Franciele Ani Follador1; Guilherme Welter-Wendt1; Lirane Elize Defante-Ferreto1
RESUMO
A anomalia de Pelger-Huët (APH) é uma condição benigna hereditária, geralmente autossômica dominante, caracterizada por granulócitos bilobulados ou completamente não segmentados, com agregação excessiva de cromatina que pode ser confundida com células banda. A APH é uma patologia ainda pouco investigada na literatura médica, especialmente em países em desenvolvimento. Erros no diagnóstico da APH podem causar erros na interpretação dos leucogramas. No presente caso, um paciente pediátrico (6 anos) procurou assistência médica devido a um quadro de febre associada à diarreia. O hemograma completo indicou importante desvio à esquerda, o que levantou suspeitas de APH. A doença foi confirmada com um novo hemograma completo, seguido da investigação familiar para a anomalia. O irmão mais novo e a mãe tinham APH. O pai e o irmão mais velho eram negativos para a anomalia, indicando transmissão genética autossômica dominante.
Palavras-chave:
Células sanguíneas, Leucócitos, Anomalia de Pelger-Huët, Neutrófilo.
ABSTRACT
The Pelger-Huët anomaly (PHA) is a benign, hereditary, usually autosomal dominant condition characterized by bilobulated or completely non-segmented granulocytes and excessive chromatin aggregation that can be mistaken for band cells. PHA is a condition still poorly investigated in the medical literature, especially in developing nations. Errors in diagnosing PHA might cause wrong interpretation of leukograms. In this case, a pediatric patient (age 6) sought medical assistance due to a fever associated with diarrhea. After complete blood cell count (CBC), which showed an important left shift, PHA was suspected. The disease was confirmed with a new CBC and then followed by the family investigation for this anomaly. The younger brother and the mother were found to have the PHA. The father and the older brother were negative for the disease, thus indicating an autosomal dominant genetic transmission.
Keywords:
Pelger-Huet Anomaly, Blood Cells, Leukocytes, Neutrophil.
INTRODUÇÃO
A anomalia Pelger-Huët (APH) é uma manifestação congênita, hematológica, caracterizada por segmentação incipiente do núcleo dos neutrófilos, com cromatina nuclear grosseira. Foi descrita pela primeira vez pelo médico holandês Karl Pelger em 1928 e reconhecida como uma característica autossômica Mendeliana dominante pelo pediatra G. Huët em 1932. Pelger observou alterações no esfregaço de sangue periférico de dois pacientes gravemente acometidos por tuberculose disseminada. O médico associou um prognóstico reservado a esta morfologia, dado que os pacientes estudados logo sucumbiram à doença. Ao atender uma menina de 7 anos com tuberculose grave, Huët observou um desvio à esquerda com morfologia neutrofílica semelhante à descrita anteriormente por Pelger. Para sua surpresa, a paciente respondeu favoravelmente ao tratamento e se recuperou plenamente. Durante as consultas de seguimento, o esfregaço de sangue periférico continuou a mostrar neutrófilos hipossegmentados. Huët deduziu que o desvio à esquerda possivelmente não representasse uma resposta à infecção, mas sim uma associação genética.
A forma heterozigota da APH é assintomática e não tem relevância clínica, enquanto a forma homozigota é rara e pode ser letal 1. A pseudo APH pode ocasionalmente ser observada em casos de leucemia granulocítica, doenças mieloproliferativas, em algumas infecções e após exposição a certos medicamentos. A presença de achados morfológicos característicos nos esfregaços de sangue de outros membros da família é essencial para estabelecer a origem hereditária da APH. Sua correta identificação consiste em diferenciar entre o “desvio à esquerda”, comum em algumas infecções, e a condição hereditária 2-4. Embora seja conhecida como uma variante morfológica dos leucócitos, a APH pode às vezes ser confundida com outros distúrbios hematológicos com alterações leucocitárias semelhantes. Assim, a anomalia pode induzir o médico a interpretar equivocadamente os resultados laboratoriais, possivelmente levando a tratamento desnecessário. Por esta razão, nosso objetivo é relatar o caso de um paciente pediátrico com APH e a investigação familiar da anomalia. Na discussão, apresentamos uma breve revisão da literatura. Também ilustramos a importância da investigação familiar para um diagnóstico clínico preciso.
RELATO DE CASO
Os dados do presente estudo foram obtidos através da revisão dos prontuários médicos mantidos em uma clínica pediátrica particular no Brasil. O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (aprovação número 2.788.001). O caso relata o ocorrido com J.C.G.A., um paciente do sexo masculino com 6 anos e 9 meses de idade, nascido de uma segunda gravidez. Em 2018, o paciente foi trazido ao consultório médico para a investigação de uma febre associada à diarreia com duração de dois dias, apresentando muco nas fezes. O paciente nasceu por cesárea, pesava 3.150g, tinha 44cm de comprimento, perímetro cefálico de 38cm, APGAR 10 - 10. Seus pais eram saudáveis, não consanguíneos. Os marcadores de crescimento e desenvolvimento do paciente estavam dentro dos percentis normais para sua idade. No momento da consulta, seu peso e altura eram de 22.750g e 119 cm, respectivamente.
O paciente se apresentou em bom estado geral e o exame físico não revelou nenhuma particularidade. Foi solicitado um hemograma ambulatorial. Após o resultado do exame, no qual foi encontrado um desvio à esquerda significativo (aumento das células banda), foi iniciado tratamento para gastroenterite aguda com sulfametoxazol 400mg + trimetoprim 80mg 7,5ml por via oral, a cada 12 horas durante cinco dias. De acordo com a sugestão do laboratório e a suspeita de APH, o hemograma foi repetido após dois dias (Tabelas 1 e 2). Após a confirmação do diagnóstico de APH, a investigação familiar teve prosseguimento. Foram solicitados hemogramas para os pais e irmãos do paciente. Os resultados identificaram que o pai do paciente não tinha a doença e que a mãe apresentava 25% de neutrófilos hipossegmentados, o que é compatível com APH. O irmão mais velho não foi afetado pela doença e o irmão mais novo apresentou 20% de neutrófilos hipossegmentados, o que também é compatível com a doença.
DISCUSSÃO
A APH é caracterizada por granulócitos bilobulados ou completamente não segmentados. A cromatina é madura e densa 5. A forma heterozigota da APH serve como marcador para mutação do Receptor da Lâmina B. Presume-se que pacientes com a anomalia sejam clinicamente normais em relação a função neutrofílica 4. É importante chegar a um diagnóstico preciso nos casos de APH, uma vez que a patologia pode frequentemente distorcer os resultados de laboratório, levando a erros na interpretação do leucograma. De fato, a hipossegmentação leucocitária pode ser confundida com o desvio à esquerda encontrado em infecções bacterianas, ou mesmo em casos de sepse. O presente caso demonstra a importância de se obter o histórico familiar completo de ambos os progenitores, dado que a transmissão da doença ocorre de forma autossômica dominante. No paciente estudado, hipossegmentação neutrofílica foi identificada nos exames laboratoriais, sendo inicialmente atribuída a processo infeccioso. Portanto, a avaliação completa da história do paciente, o exame clínico efetivo e os dados laboratoriais são essenciais para um diagnóstico preciso.
Experimentos realizados em granulócitos com APH em relação a suas atividades fagocitárias, metabólicas e bactericidas – bem como sua motilidade e resposta a estímulos quimiotáticos – revelam comportamento equivalente ao observado em granulócitos normais 6. Entretanto, Johnson et al.7 observaram uma maior incidência de infecção local em portadores de APH. Isto pode estar relacionado à capacidade reduzida de migrar através de pequenos vasos sanguíneos. No presente estudo de caso pediátrico, não houve sintomas associados a comprometimento da função dos granulócitos, tais como aumento da infecção.
É importante notar que, embora a APH tenha sido reconhecida como uma variante morfológica dos leucócitos, a anomalia pode às vezes ser confundida com outros distúrbios hematológicos com alterações leucocitárias semelhantes. Um relato recente descreveu a dificuldade na interpretação de um caso de APH em um recém-nascido com suspeita de sepse com taquipneia. A anomalia só foi reconhecida após a obtenção do histórico familiar, que mostrou que o pai, um avô e um tio da criança tinham APH 8. Outro estudo descreveu o caso de um recém-nascido com desvio à esquerda no qual foram realizados testes invasivos e antibioticoterapia endovenosa por suspeita de sepse neonatal 9. Arnand et al. 10 também relataram um caso em que um paciente com APH foi diagnosticado equivocadamente como distúrbio mieloproliferativo, levando a um procedimento de medula óssea.
Na avaliação do esfregaço de sangue em fenótipos heterozigotos, as células Pelger-Huët podem ser identificadas por sua característica clássica. Os lobos (que variam de 2 a 5) se apresentam simetricamente como “pince-nez” ou “halteres”, ligados por um fino filamento de cromatina. Eles são geralmente arredondados com cromatina nuclear espessa, densamente aglomerada e totalmente madura 11. Uma pequena população de até 4% de neutrófilos é caracterizada por núcleo não-lobulado ou em forma de amendoim (células de Stodtmeister). O tamanho geral dessas células, o aspecto do citoplasma e a coloração dos grânulos no citoplasma se assemelham aos de neutrófilos maduros normais. Na APH homozigota predominam as células de Stodmeister, constituindo cerca de 95% do total de neutrófilos 4.
Em situação de heterozigose, esta anomalia é considerada uma alteração benigna sem significado clínico, portanto sem tratamento específico. Entretanto, a APH homozigota está associada a anomalias esqueléticas e mortalidade intrauterina precoce 12. Portanto, é importante que o aconselhamento genético seja realizado para portadores de APH heterozigota devido à chance de homozigose em crianças e possível letalidade desta condição1. A forma adquirida, às vezes chamada pseudo APH, pode ser ocasionalmente observada em casos de leucemia granulocítica, doenças mieloproliferativas, algumas infecções e em reação a alguns medicamentos. Neste caso, as células apresentam núcleos ovais, característicos de casos de homozigose 2 Os núcleos celulares na pseudo APH observados em neoplasias mieloproliferativas e síndromes mielodisplásicas podem ser diferenciados da APH congênita a partir da acentuada heterogeneidade das lobulações nucleares, que não são simétricas. Outros achados de mielodisplasia também estão presentes, incluindo hipogranulação e aumento da relação entre granulócitos nucleares/citoplasmáticos, com cromatina nuclear não tão condensada e escura como nos casos de APH 4. No estado heterozigoto, a APH serve como marcador para mutação do Receptor de Lâmina B sem sintomas adversos. Pacientes com esta anomalia são clinicamente normais em relação à função neutrofílica 1.
Embora seja conhecida como uma variante morfológica dos leucócitos, a anomalia aqui estudada pode ocasionalmente ser confundida com outros distúrbios hematológicos com alterações leucocitárias semelhantes. O conhecimento das alterações morfológicas clássicas observados nos granulócitos em casos de APH pode ajudar a evitar equívocos na interpretação da morfologia dos granulócitos e a diferenciar entre APH, reação leucemoide, neoplasia mieloproliferativa e síndrome mielodisplásica.
REFERÊNCIAS
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1. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Medicina - Francisco Beltrão - PR - Brasil
2. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Nutrição - Francisco Beltrão - PR - Brasil
Endereço para correspondência:
Guilherme Welter-Wendt
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
R. Universitária, 1619 - Universitário
Cascavel - PR,Brasil. CEP: 85819-110
E-mail: guilherme.wendt@unioeste.br
Data de Submissão: 24/08/2020
Data de Aprovação: 30/09/2020