ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Influência de fatores clínicos e socioeconômicos no estado nutricional de pacientes pediátricos com fibrose cística

Influence of clinical and socioeconomic factors on the nutritional state of pediatric patients with cystic fibrosis

RESUMO

OBJETIVO: Verificar a influência de fatores clínicos e socioeconômicos no estado nutricional de pacientes pediátricos com FC atendidos em serviço de referência no Estado do Piauí, além de descrever um perfil geral dos mesmos.
MÉTODOS: Tratou-se de um estudo observacional, transversal, retrospectivo, descritivo com análise secundária dos dados, realizado através de coleta de dados de prontuários de 23 pacientes menores de 16 anos, com fibrose cística confirmada, atendidos em 2018.
RESULTADOS: Houve predominância discreta do gênero masculino e pardos, homozigotos (p=0,05), procedentes do sudeste piauiense, em faixa etária escolar. A idade ao diagnóstico foi de 2,0±3,0anos, com 13% assintomáticos. Os sintomas respiratórios e déficits no crescimento foram as principais manifestações iniciais. 47,8% foram diagnosticados pela triagem neonatal. A maioria apresentou classificação boa e excelente quanto ao escore de Shwachman-Kulczycki, média de 78,5±16,7. A maior parte era eutrófica, com valores adequados de escore-Z. Constatou-se influência do estado nutricional no escore de Shwachman-Kulczycki, sendo este significativamente menor (p=0,037) nos pacientes com déficit nutricional.
DISCUSSÃO: Houve atraso no diagnóstico desses pacientes, com baixa cobertura de realização dos testes de triagem neonatal. Os aspectos socioeconômicos e clínicos não influenciaram sobre o estado nutricional, exceto o escore de gravidade que se demonstrou pior naqueles com déficit nutricional.
CONCLUSÃO: O estado nutricional influenciou no escore de gravidade dos indivíduos, ratificando a importância do adequado manejo e da monitorização nutricional para a melhora da qualidade de vida dos pacientes.

Palavras-chave: fibrose cística, estado nutricional, fatores socioeconômicos, epidemiologia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To verify the influence of clinical and socioeconomic factors on the nutritional status of pediatric CF patients treated at a referral care facility in the State of Piauí and to describe their general profile.
METHODS: This was an observational cross-sectional retrospective descriptive study with secondary data analysis, performed by data from medical records of 23 patients under 16 years of age with confirmed cystic fibrosis, attended at 2018, were collected.
RESULTS: There was a slight predominance of male and brown, homozygous (p=0.05), from southeast Piaui, in school age group. Age at diagnosis was 2.0±3.0 years, with 13% asymptomatic. Respiratory symptoms and growth deficits were the main initial manifestations. 47.8% were diagnosed by neonatal screening. Most had good and excellent score for the Shwachman-Kulczycki score, average of 78.5±16.7. Most were eutrophic, with adequate Z-score values. Influence of nutritional status on the Shwachman-Kulczycki score was noted, and the latter was found to be significantly lower (p=0.037) in patients with nutritional deficit.
DISCUSSION: There was a delay in the diagnosis of these patients, with low coverage of neonatal screening tests. The socioeconomic and clinical aspects did not influence the nutritional status, except for the severity score that was worse in those with nutritional deficit.
CONCLUSION: Nutritional status influenced the severity score, confirming the importance of adequate management and nutritional monitoring for improving the quality of life.

Keywords: cystic fibrosis, nutritional status, socioeconomic factors, epidemiology.


INTRODUÇÃO

Fibrose cística (FC) ou mucoviscidose é uma doença hereditária autossômica recessiva por alteração em uma cadeia de genes pela ausência ou irregularidade na quantidade ou expressão da proteína cystic fibrosis transmenbrane regulator (CFTR). Esta atua na estabilização do íon cloro na membrana das células epidérmicas. No pulmão, gera aumento do muco, culminando em disfunção respiratória, proliferação bacteriana e infecção crônica; nas células pancreáticas, a obstrução dos ductos leva a perda enzimática e dificuldade de absorção de nutrientes1,2.

Muitas das crianças nascem assintomáticas, porém o diagnóstico pode ser realizado precocemente pela dosagem de tripsina imunorreativa (IRT), através do teste de triagem neonatal (TTN)³. As principais manifestações referem-se às infecções respiratórias associadas ao processo inflamatório crônico e à má absorção por insuficiência pancreática. Isso desencadeia déficit nutricional secundário, que também implica na piora da função pulmonar4. A desnutrição está associada a uma rápida progressão da doença pulmonar, seja pelo comprometimento da musculatura torácica e da elasticidade pulmonar ou pelo prejuízo no sistema imunológico5.

Segundo o Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC) do Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC)6, entre 2016 e 2017, foram identificados 4.654 pacientes com essa doença no país. O Nordeste ocupou a 3ª posição com 17,2% dos pacientes. Estados Unidos, Canadá e Europa apresentam de 1:2.000 a 1:5.000 casos entre os nascidos vivos de etnia caucasiana, enquanto no Brasil esse número varia de 1:9.000 a 9.500². No Piauí, em 2018, verificou-se cerca de 1:18.000 casos entre os nascidos vivos7.

Solomon et al. (2016)8 afirmam que o crescimento e desenvolvimento adequado dessas crianças precisam ser constantemente monitorados pelo risco de desnutrição, relativa ao inadequado balanço entre uso e demanda de energia, infecções crônicas e ingesta alimentar reduzida. Dessa forma, reconhecer e monitorar as funções nutricional e respiratória, além do estado clínico, é importante para adequar o suporte nutricional e medicamentoso, a fim de evitar demais complicações. Estimar as perdas nutricionais dos pacientes com FC é a principal estratégia para evitar complicações9,10.

O presente estudo teve como objetivo definir o perfil dos pacientes pediátricos com fibrose cística atendidos em serviço de referência no Estado do Piauí, em relação aos aspectos epidemiológicos, clínicos e nutricionais. Identificaram-se dados sobre o diagnóstico da patologia e estado clínico atual dos indivíduos, medidas antropométricas e classificação nutricional, além dos aspectos socioeconômicos, visando promover um manejo direcionado para as deficiências e complicações desses pacientes, com um aumento da sobrevida.


MÉTODOS

Realizou-se um estudo observacional, descritivo, retrospectivo, com abordagem quantitativa e análise secundária dos dados, em um hospital pediátrico no Estado do Piauí, serviço de referência para pacientes com FC. A população constituiu-se por 23 pacientes pediátricos acompanhados com FC confirmada, segundo a presença de pelo menos uma das manifestações clínicas características e no mínimo duas dosagens de cloreto no suor por iontoforese com pilocarpina superior a 60mEq/L, ou a presença de duas mutações conhecidas para FC, através de estudo genético9. Por tratar-se de uma doença não tão prevalente e por ser, em consequência disso, uma população reduzida, a amostra foi por conveniência e correspondeu a todos os 23 indivíduos menores de 16 anos, com FC confirmada, segundo os critérios citados acima, que compareceram às consultas de janeiro a dezembro de 2018.

A coleta de dados ocorreu de outubro a novembro de 2019, através da análise de prontuário, respeitando-se o sigilo dos dados. O registro foi feito em um formulário estruturado a fim de obterem-se informações referentes às condições socioeconômicas, características clínicas e nutricionais dos mesmos.

Os dados socioeconômicos incluíram informações sobre gênero, idade, cor da pele, procedência, bem como dados maternos referentes à idade, escolaridade e renda familiar. A avaliação das características clínicas compreendeu dados sobre o diagnóstico da patologia, tais como realização de triagem neonatal, idade e condições presentes ao diagnóstico e genotipagem. Reuniram, ainda, informações sobre uso de medicações, exacerbações pulmonares, internações e a classificação de gravidade da doença através do escore de Shwachman-Kulczycki11 durante 2018.

O estado nutricional dos pacientes foi definido de acordo com as medidas antropométricas de peso e estatura, realizadas durante o último atendimento anual. Foram, então, classificadas com base nos programas WHO Anthro e WHO Anthro Plus da Organização Mundial de Saúde12,13, obtendo-se valores de escore-Z do peso para idade (P/I), estatura para idade (E/I), peso para estatura (P/E) em menores de 5 anos, e índice de massa corpórea (IMC) para idade (IMC/I). Embora a faixa entre escores-Z -1 a -2 seja classificada como “eutrófico”, segundo a OMS12,13, neste estudo, para definir presença de déficit nutricional, considerou-se índices menores que escore-Z -1, devido à importante relação do estado nutricional com o prognóstico da função pulmonar, critério também adotado em outros trabalhos14,15. Também se obteve valores de percentil para classificação nutricional, uma vez que, segundo as recomendações de Turck et al. (2016)16, a meta de estado nutricional adequada para esses pacientes corresponde a valores de P/E, em menores de 2 anos, e IMC/I, a partir de 2 anos, superiores ou iguais ao percentil 50.

Os dados foram expostos em planilhas do Microsoft Office Excel 2019® e, em seguida, transferidos para o programa estatístico IBM SPSS Statistics® 21.0 e processados em tabelas e gráficos. Os dados foram expressos como frequências e percentuais para variáveis qualitativas e em medidas de tendência central e dispersão para variáveis quantitativas. Testou-se a normalidade dos dados utilizando o teste de Shapiro-Wilk para as variáveis quantitativas. Após isso, foi utilizado o teste t-Student com intervalo de confiança de 95%, para as variáveis que seguem normalidade e o teste de Mann-Whitney para as variáveis que não seguem normalidade. Testou-se a associação entre as variáveis categóricas por meio do teste exato de Fisher, pois algumas caselas apresentaram valores menores que 5. Os dados foram considerados significativos com valores de p abaixo de 0,05.

Este estudo foi realizado em consonância com a Resolução nº 466/2012 do Ministério da Saúde, com aprovação do mesmo pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal do Piauí (CEP-UFPI), CAAE: 18722219.0.0000.5214.


RESULTADOS

Dos 23 pacientes com FC acompanhados no serviço, todos compareceram a, no mínimo, uma consulta durante o ano de 2018 e foram incluídos no estudo. Observou-se que 52,2% (n=12) eram do gênero masculino e 47,8% (n=11) do gênero feminino, com mediana de idade de 3,8 anos (intervalo interquartil: 2,4-9,6 anos). A maioria dos indivíduos era da cor parda (11/47,8%), procedentes da região sudeste do Piauí (12/56,5%). Com relação aos dados maternos, a média de idade das mães foi 31±7 anos, com escolaridade de 12±4 anos de estudo, tendo apenas 21,7% (n=5) das mesmas iniciado ou concluído o ensino superior, e 82,6% (n=19) tinham renda de 1-3 salários mínimos.

A média de idade dos pacientes no momento do diagnóstico foi de 2,0±3,0anos, chegando a uma idade máxima de 15 anos. Apenas 13% dos pacientes eram assintomáticos ao diagnóstico, sendo as manifestações clínicas mais frequentes os sintomas respiratórios persistentes (16/69,5%) e déficits no crescimento ou desnutrição (15/65,2%) (Tabela 1).




Apenas 11 indivíduos (47,8%) obtiveram seu diagnóstico através do TTN. Com relação à genotipagem, há predomínio de indivíduos homozigotos (16/69,6%) (p=0,05). Ao longo de 2018, os pacientes realizaram cerca de 3,4±1,4 consultas e utilizaram em média 4 medicações contínuas, sendo a pancreatina (22/95,6%), alfa-dornase (21/91,3%) e polivitamínicos (21/91,3%) as principais. 47,8% dos indivíduos (n=11) apresentam exacerbações pulmonares durante o ano de acompanhamento e cerca de 30,4% (n=7) necessitaram internação. A avaliação sobre a gravidade do estado atual dos pacientes foi realizada através do escore de Shwachman-Kulczycki11, com pontuação média de 78,5±16,7, sendo a maioria dos pacientes classificados como bom (9/39,1%) ou excelente (7/30,4%) (Tabela 1). Não ocorreu nenhum óbito durante o seguimento anual.

A classificação do estado nutricional, baseada nos valores de escore-Z do P/I, E/I e IMC/I12,13, estão contidos na Tabela 2. Evidenciou-se que a maior parte dos indivíduos se encontra com valores adequados de escore-Z do P/I, E/I e IMC/I.




Cerca de metade dos pacientes (11/47,8%) faziam uso de suplementos alimentares. Apesar disso, 16 pacientes apresentaram déficit nutricional (escore-Z de P/I, P/E, E/I, IMC/I menores que -1)14,15. Houve significância estatística (p=0,03) entre os pacientes que atingiram e os que não atingiram a recomendação nutricional sugerida por Turck et al. (2016)16. Observou-se que 82,6% (n=19) dos pacientes encontravam-se fora das recomendações nutricionais, tendo apenas 17,4% (n=4) dos pacientes atingido a meta do estado nutricional.

Observou-se a influência do estado nutricional no escore de Shwachman-Kulczycki11, sendo a pontuação média nos indivíduos com déficit nutricional significativamente inferior (p=0,037) que naqueles sem tal deficiência (Tabela 3).




Não se evidenciou significância estatística entre o estado nutricional deficiente com as características socioeconômicas e os demais aspectos clínicos avaliados (Tabelas 3 e 4).




DISCUSSÃO

Os dados socioeconômicos dos pacientes pediátricos com FC no Piauí são semelhantes aos encontrados pelo GBEFC17, no relatório de 2017, em que constatou que 52% dos pacientes eram do gênero masculino e 48% do feminino, havendo predomínio de indivíduos da cor branca e parda5,18. As crianças e adolescentes com idade de até 15 anos, correspondiam a 59,2% do total17. Observa-se uma característica peculiar da procedência dos casos, em que mais da metade dos pacientes são oriundos do Sudeste Piauiense. Com relação aos dados maternos, um estudo realizado no Nordeste brasileiro14 evidenciou dados semelhantes quanto à idade e escolaridade materna dos pacientes com FC. Entende-se que um maior grau de instrução materna facilita adesão ao tratamento, promovendo uma melhora do estado nutricional. A renda familiar também poderia influenciar o estado clínico e nutricional, já que favorecem o acesso a serviços de saúde e medicamentos, porém este estudo não constatou significância entre essas vaiáveis. O adequado estado nutricional encontrado na maioria desses pacientes pode ser justificado pela frequência regular ao atendimento na rede pública de saúde, representado por uma média anual aproximada de três consultas, bem como o fornecimento das principais medicações pelo sistema público de saúde.

Devido à possibilidade de diagnóstico ainda no período neonatal1, a média de idade ao diagnóstico desses pacientes pode ser considerada alta (2 anos), porém foi inferior à média nacional, que evidenciou idade ao diagnóstico de quase 6 anos17. Ainda assim, menos da metade dos indivíduos obtiveram seu diagnóstico através do TTN. No Brasil17, no período de 2009 a 2017 foram diagnosticados 2.441 casos de fibrose cística, dos quais 49,7% foram diagnosticados por triagem neonatal. Nos anos 2016 e 2017, a triagem neonatal já foi responsável por mais de 60% dos novos diagnósticos, estando, portanto, inferior à porcentagem nacional.

Há evidências de que os pacientes diagnosticados com FC a partir do TTN beneficiam-se de intervenção precoce, iniciando mais cedo o seguimento com tratamento medicamentoso e nutricional, além de acompanhamento com testes de função pulmonar5. Nesse mesmo estudo, Lumertz et al. (2018)5 encontraram melhores valores do escore de Shwachman, com significância estatística, e tendência a maiores médias do escore-Z para o IMC nos pacientes com diagnóstico pelo TTN.

A maior parte desses pacientes (20/87%) já apresentavam manifestações da doença no momento do diagnóstico, sendo as mais frequentes os sintomas respiratórios persistentes e déficits no crescimento ou desnutrição, como constatado também pelo GBEFC17. Essas manifestações são explicadas pela desregulação do CFTR, as secreções intraluminais tornam-se densas e o aumento da produção de muco acarreta obstrução, inflamação nos órgãos, ocasionando a sintomatologia19.

Assim como no estudo de Rosa et al. (2018)20, houve predomínio estatisticamente significante de indivíduos homozigotos. Esses indivíduos geralmente apresentam sintomas respiratórios precoces, função pulmonar diminuída, insuficiência pancreática e atraso no crescimento.

Por tratar-se de uma doença multissistêmica, verificou-se uma prescrição famacoterapêutica diversa, sendo utilizadas uma média de quatro medicações contínuas, número inferior ao encontrado em outro estudo18, em que observaram uma média de uso de 6,5 remédio/paciente. No mesmo trabalho, a terapia alimentar e metabólica foi descrita como o principal quesito no tratamento, seguida por drogas para desordem respiratória, assim como foi evidenciado nos pacientes estudados, que fizeram uso principalmente da pancreatina, polivitamínicos e alfadornase, respaldado pelos principais sintomas da FC19. No Brasil17, a alfadornase é prescrita para mais de 70% dos pacientes, pois há evidência de que sua utilização reduz o risco de morte, melhora a função pulmonar e reduz exacerbações21.

Ocorreram exacerbações pulmonares em quase metade dos indivíduos com FC, o mesmo observado pelo GBEFC17, em que 49,3% apresentaram ao menos uma exacerbação em 2017. Um estudo retrospectivo e documental22 evidenciou que as causas respiratórias foram as principais responsáveis pelas internações e a queixa clínica mais frequente foi a tosse persistente e as recorrências de internações por bronquiectasia, insuficiência pancreática e pneumonia.

O escore de Shwachman11, publicado pelo mesmo, juntamente com Kulczcki, em 1958, serve como estimativa da evolução da doença, o qual abrange os seguintes domínios: atividade geral, nutrição, exame radiológico e avaliação física. Cada área citada é pontuada entre cinco e 25 pontos, sendo o escore estratificado e considerado como grave quando a soma é igual ou inferior a 40 pontos e como excelente quando apresenta 86 ou mais pontos. Lumertz et al. (2018)5 destacam que esse escore é uma ferramenta de avaliação clínico-radiológica consagrada e utilizada não só nos serviços que acompanham pacientes com FC, mas também como medida de desfecho de pesquisas.

A avaliação de gravidade através do escore de Shwachman-Kulczycki revelou pontuação média de 78,5±16,7, sendo a maioria classificada como bom ou excelente, dado semelhante ao encontrado em outros estudos10,14 que também descreveram boas condições clínicas nessa casuística, com média de 81,8±14,2 e 86,9±17,9, respectivamente. No Brasil, os pacientes com idade de até 15 anos, em sua maioria, apresentaram média de escore de Shwachman-Kulczycki classificada como bom e excelente, porém com uma tendência a redução do escore com o passar da idade15,17, uma vez que há aumento das necessidades nutricionais devido ao crescimento e infecções pulmonares mais frequentes em faixas etárias superiores14. Essas boas condições clínicas podem ser justificadas pelo acompanhamento regular e por se tratarem, em sua maioria, de lactentes, pré-escolares e escolares, que se encontram eutróficos, assim como verificado em outros estudos14,15. Adde (2015)23 percebeu que a conduta nutricional contribuiu de forma significativa na diminuição dos índices progressivos da FC, relacionada à deterioração da função pulmonar, melhorando a qualidade de vida dos pacientes. No entanto, quando esses indivíduos foram avaliados conforme a presença de déficit nutricional estabelecida pelo valor de qualquer escore-Z <-1, encontraram-se valores semelhantes a outros estudos14,15, com quase 70% apresentando tal deficiência.

O guideline de cuidados nutricionais para crianças e adultos com FC publicado por Turck et al. (2016)16 mostrou que os critérios antropométricos mais regularmente utilizados para avaliar o estado nutricional nesse público de pacientes, por se associarem à função pulmonar e à sobrevida, são os indicadores peso-para-estatura (P/E) e índice de massa corporal-para-idade (IMC/I). Na época atual, recomenda-se que crianças e adolescentes com FC devem manter o IMC/I ≥ percentil 50. O “Relatório do Registro de Pacientes” com FC6 ainda avalia que 45,3% crianças não atingiram os parâmetros nutricionais requeridos ao tratamento16. Hauschild et al. (2018)10 também constataram que 65,8% pacientes estudados apresentaram percentil <50, apesar de este fato não ter tido associação com o comprometimento da função pulmonar. Na presente pesquisa, observou-se que, apesar da maioria ser eutrófica, mais de 80% encontravam-se fora das recomendações nutricionais16, número este estatisticamente significante e superior aos dados nacionais6. As infecções respiratórias repetidas associadas à inflamação crônica e à má absorção desencadeiam um déficit nutricional, interferindo no prognóstico pulmonar. A perda de massa muscular e, por consequência, a redução da força e resistência dos músculos respiratórios, compromete a função do diafragma. O prejuízo da função pulmonar favorece infecções recorrentes, o que aumenta a demanda energética, desencadeando piora do quadro pulmonar4.

No estudo de Pinto et al. (2009)14, a média do escore de Shwachman-Kulczycki foi significativamente maior nos indivíduos sem déficit nutricional, não tendo constatado significância estatística para as demais variáveis socioeconômicas e clínicas, assim como neste trabalho. Esse dado corrobora a influência do estado nutricional na determinação desse índice de gravidade. Um outro estudo que avaliou o estado nutricional de pacientes com FC15 também não evidenciou associação entre o estado nutricional e a renda familiar, apesar de haver descrição de piora do estado nutricional em pacientes com condições econômicas desfavoráveis14. Apesar de não haver significância entre as demais variáveis clinicas e socioeconômicas pesquisadas, em detrimento ao estado nutricional, faz-se importante essa mensuração para estimar o prognóstico dos pacientes, pois, segundo estudo de Hauschild et al. (2018)10, que avaliou a correlação do estado nutricional com a função pulmonar, os pacientes classificados em falência nutricional mostraram um risco relativo de 5,00 para o comprometimento da função pulmonar após os 36 meses da pesquisa. Aqueles classificados abaixo do percentil 50, apresentaram risco relativo de 4,61 para o desfecho. Esse estudo10 concluiu que o estado nutricional esteve correlacionado ao comprometimento da função pulmonar, sendo o estado nutricional o fator de risco determinante na qualidade respiratória dos pacientes com FC. Estimar perdas nutricionais dos pacientes com FC no decorrer da doença é a principal estratégia para evitar complicações. Medidas para recuperação e manutenção do estado nutricional devem ser inseridas precocemente9,10.

A maioria dos indivíduos com déficit nutricional não foi diagnosticada precocemente através pelo TTN, apesar de terem apresentado uma idade ao diagnóstico com média inferior − revelando o fato de terem iniciado mais precocemente manifestações da doença, o que possibilitou diagnóstico clínico, e, consequentemente, gerou comprometimento mais precoce do estado nutricional. O contrário foi observado por Pinto et al. (2009)14, em que os pacientes com déficit nutricional apresentaram uma idade ao diagnóstico superior aos sem déficit nutricional, podendo-se explicar tal situação por uma instituição de terapêutica mais tardia.


CONCLUSÃO

Os pacientes pediátricos com FC acompanhados no Piauí apresentam características socioeconômicas, clínicas e nutricionais, em sua maioria, semelhantes aos dados nacionais. Apesar da limitação do estudo, devido à amostra reduzida, constatou-se que os aspectos maternos não influenciaram sobre o estado nutricional desses indivíduos, bem como as demais características socioeconômicas. Houve atraso no diagnóstico, bem como baixa cobertura de realização de TTN para o diagnóstico de FC. Apesar disso, os mesmos realizaram acompanhamento regular com uso de terapia alimentar, metabólica e respiratória, o que proporcionou um estado nutricional satisfatório, embora a maioria não tenha atingido a recomendação nutricional para adequado manejo da doença. O estado nutricional influenciou no escore de gravidade dos indivíduos, ratificando a importância do adequado manejo e monitorização nutricional para melhora do prognóstico pulmonar e qualidade de vida dos pacientes.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Programa Nacional de Triagem Neonatal. Fibrose cística. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017; [acesso em 2019 Fev 15]; p. 45-46. Disponível em: http://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/programa-nacional-da-triagem-neonatal/fibrose-cistica-fc

2. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Tratado de pediatria. 4ª ed. Barueri: Manole; 2017.

3. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Triagem neonatal biológica: manual técnico. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016; [acesso em 2019 Fev 14]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/triagem_neonatal_biologica_manual_tecnico.pdf

4. Haack A, Novaes MRCG. Multidisciplinarycare in cysticfibrosis: a clinical-nutritionreview. Nutr Hosp [Internet]. 2012 Mar/Abr; [citado 2019 Fev 14]; 27(2):362-71. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22732957

5. Lumertz MS, Moura A, Pinto LA, Camargos PAM, Marostica PJC. Comparação entre a evolução de pré-escolares com fibrose cística identificados por triagem neonatal ou por sintomatologia clínica. Sci Med [Internet]. 2018 Abr/Jun; [citado 2019 Fev 15]; 28(2):1-6. Disponível em: https://doaj.org/article/17eafffde5cf459f9fb31d295590f4d7

6. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBCFC). Registro brasileiro de fibrose cística (REBRAFC) - 2016 [Internet]. Brasil: GBCFC; 2016; [acesso em 2019 Fev 14]. Disponível em: http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2016.pdf

7. Costa PCHS. Análise dos primeiros cinco anos do programa de triagem neonatal em fibrose cística no estado do Piauí [dissertação]. Teresina: Universidade Federal do Piauí (UFPI); 2018.

8. Solomon M, Bozic M, Mascarenhas MR. Nutritional issues in cystic fibrosis. Clin Chest Med [Internet]. 2016 Mar; [citado 2019 Fev 16]; 37(1):97-107. Disponível em: https://www.chestmed.theclinics.com/article/S0272-5231(15)00148-3/abstract

9. Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, Ribeiro AF, Riedi CA, Procianoy EFA, et al. Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. J Bras Pneumol [Internet]. 2017; [citado 2019 Fev 15]; 23(3):219-245. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpneu/v43n3/pt_1806-3713-jbpneu-43-03-00219.pdf

10. Hauschild DB, Rosa AF, Ventura JC, Brbosa E, Moreira EAM, Ludwig Neto N, et al. Associação do estado nutricional com função pulmonar e morbidade em crianças e adolescentes com fibrose cística: coorte de 36 meses. Rev Paul Pediatr [Internet]. 2018; [citado 2019 Fev 12]; 36(1):31-38. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rpp/v36n1/0103-0582-rpp-2018-36-1-00006.pdf

11. Shwachman H, Kulczycki LL. Long term study of one hundred five patients with cystic fibrosis. Am J Dis Child [Internet]. 1958 Jul; [citado 2018 Fev 15]; 96(1):6-15. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/article-abstract/498945

12. Organização Mundial de Saúde (OMS). WHO Anthro Software for assessing growth and development of the world’s children. Geneva: OMS; 2011.

13. Organização Mundial de Saúde (OMS). The WHO child growth standards [Internet]. Geneva: OMS; 2007; [acesso em 2019 Fev 16]. Disponível em: http://www.who.int/childgro wth/standards/en/

14. Pinto ICS, Silva CP, Britto MCA. Perfil nutricional, clínico e socioeconômico de pacientes com fibrose cística atendidos em um centro de referência no nordeste do Brasil. J Bras Pneumol [Internet]. 2009 Fev; [citado 2019 Fev 15]; 35(2):137-43. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpneu/v35n2/v35n2a06.pdf

15. Neri LCL, Bergamaschi DP, Silva Filho LVRF. Avaliação do perfil nutricional em pacientes portadores de fibrose cística de acordo com faixa etária. Rev Paul Pediatr [Internet]. 2019 Jan; [citado 2019 Fev 14]; 37(1):58-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rpp/v37n1/0103-0582-rpp-2019-37-1-00007.pdf

16. Turck D, Braegger CP, Colombo C, Declercq D, Morton A, Pancheva R, et al. ESPEN-ESPGHAN-ECFS guidelines on nutrition care for infants, children, and adults with cystic fibrosis. Clin Nutr [Internet]. 2016; [acesso em 2018 Fev 19]; 1-21. Disponível em: http://www.espen.org/files/ESPEN-Guidelines/2__ESPEN-ESPGHAN-ECFS_guidelines_on_nutrition_care_for_infants_children_and_adults_with_cystic_fibrosis.pdf

17. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística. registro brasileiro de fibrose cística (REBRAFC) – 2017 [Internet]. 2017; [acesso em 2019 Dez 14]. Disponível em: http://portalgbefc.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Registro2017.pdf

18. Alves SP, Frank MA, Bueno D. Medicamentos utilizados em população pediátrica com fibrose cística. Einstein [Internet]. 2018 Out; [citado 2019 Fev 15]; 16(4):eAO4212. Disponível em: https://journal.einstein.br/pt-br/article/medicamentos-utilizados-em-populacao-pediatrica-com-fibrose-cistica/

19. Li L, Somerset S. Digestive system dysfunction in cystic fibrosis: challenges for nutrition therapy. Dig Liver Dis [Internet]. 2014 Out; [citado 2019 Fev 14]; 46(10):865-74. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1590865814004241

20. Rosa KM, Lima ES, Machado CC, Rispoli T, Silveira V, Ongaratto R, et al. Características genéticas e fenotípicas de crianças e adolescentes com fibrose cística no Sul do Brasil. J Bras Pneumol [Internet]. 2018; [citado 2019 Dez 10]; 44(6):498-504. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpneu/v44n6/pt_1806-3713-jbpneu-44-06-00498.pdf

21. Ribeiro JD, Ribeiro MAGO, Ribeiro AF. Controvérsias na fibrose cística: do pediatra ao especialista. J Pediatr (Rio J) [Internet]. 2002 Dez; [citado 2019 Dez 02]; 78(Supl 2):S171-S86. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jped/v78s2/v78n8a08.pdf

22. Almeida MA, Santiago LRS, Lima JFL, Moura MFM, Maia NMM. Perfil clínico-demográfico e fisioterapia em pacientes com fibrose cística em um hospital pediátrico de Fortaleza. Ver Multidisc Nord Mineir [Internet]. 2018; [citado 2019 Fev 15]; 1:231-47. Disponível em: http://www.unipacto.com.br/revista-multidisciplinar/arquivos_pdf_revista/revista2018 _1/15.pdf

23. Adde FV. Nutrição em fibrose cística: tão importante quanto o manejo da doença pulmonar. Rev Paul Pediatr [Internet]. 2015; [citado 2019 Fev 15]; 33(1):1-2. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4060/406039566001.pdf










1. Universidade Federal do Piauí, Hospital Infantil Lucidio Portela - Teresina - PI - Brasil
2. Centro Universitário UNINOVAFAPI, Curso de Medicina - Teresina - PI - Brasil
3. Hospital Infantil Lucidio Portela, Ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica - Teresina - PI - Brasil

Endereço para correspondência:

Mariana Mundin da Rocha
Universidade Federal do Piauí
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella - Ininga, Teresina - PI
CEP: 64049-550
E-mail: mayllaaraujo@hotmail.com

Data de Submissão: 29/08/2020
Data de Aprovação: 14/09/2020