ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Anemia hemolítica autoimune em paciente com síndrome de Kabuki - um relato de caso em São Paulo e breve discussão sobre correlação entre síndrome de Kabuki e autoimunidade

Autoimmune hemolytic anemia in a patient with Kabuki Syndrome - a case report in São Paulo and a brief discussion about Kabuki Syndrome and association with autoimmunity

RESUMO

A síndrome de Kabuki (SK), descrita pela primeira vez no Japão em 1981, é uma doença rara caracterizada por fácies peculiares, deficiência de crescimento pós-natal, deficiência intelectual e um conjunto de malformações, como anormalidades esqueléticas e viscerais. Na história natural da SK estão presentes eventos imunes anormais e este relato de caso contribui com a compreensão e consolidação de desordens autoimunes hematológicas. Este artigo descreve um relato de caso de um paciente com diagnóstico prévio de síndrome de Kabuki com anemia hemolítica autoimune em um hospital de São Paulo, com resposta e resolução adequadas com terapia com corticosteroides. O artigo também faz uma breve explicação da correlação com autoimunidade, imunodeficiência e síndrome de Kabuki.

Palavras-chave: Genética Médica, Anemia Hemolítica Autoimune, Autoimunidade.

ABSTRACT

Kabuki syndrome (KS), first described in Japan in 1981, is a rare disease characterized by a peculiar facies, postnatal growth de?ciency, intellectual disability and a set of malformations, such as skeletal and visceral abnormalities. In the natural history of KS, abnormal immune events are presents and this case report contribute with the understanding and consolidation of hematologic autoimmune desorders. This article describes a case report of a patient with previous diagnosis of Kabuki syndrome with a autoimmune hemolytic anemia in a hospital of São Paulo, with adequate response and resolution with corticosteroids terapy. The article also makes as a brief explanation of correlation with autoimmunity, immunodeficiency and Kabuki syndrome.

Keywords: Genetics, Medical, autoimmunity, Anemia Hemolytic Autoimmune.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Kabuki (SK), descrita pela primeira vez no Japão em 1981, é uma doença rara caracterizada por fácies peculiares, deficiência de crescimento pós-natal, deficiência intelectual e um conjunto de malformações, como anormalidades esqueléticas e viscerais1,2. A SK presenta uma forte heterogeneidade clínica e biológica, com sintomas raros e diversos (anomalias endocrinológicas, distúrbios autoimunes, obesidade etc.), sendo considerada uma desordem sistêmica3-5.

A incidência de SK é de cerca de 1/32.000 de nascidos vivos. Sobre as mutações genéticas correlacionadas, as do gene da leucemia de linhagem mista 2, KMT2D (anteriormente MLL2) mapeado no cromossomo 12q13.12, são descritas em 55-80% dos pacientes com SK1,2. KMT2D é uma metiltransferase específica para lisina 4 da histona H3 (H3K4) que pertence à família SET1 da superfamília humana da proteína metiltransferase de domínio SET humana.

Enquanto mutações no complexo KMT2D foram identificadas na maioria dos pacientes com SK, alguns pacientes têm mutações no KDM6A, uma desmetilase responsável pela remoção de marcas de metilação derivadas do complexo regressivo Polycomb. Atualmente, foram identificados alguns subtipos genéticos da SK: SK autossômico dominante tipo 1 associado a KMT2D e SK dominante ligada ao X, associada a KDM6A tipo 26,7.

Embora algumas dessas alterações genéticas já sejam conhecidas e descritas, outros potenciais defeitos genéticos permanecem desconhecidos em cerca de 30%1. Na história natural da SK estão presentes eventos imunes anormais e este relato de caso visa contribuir com a compreensão e consolidação de desordens autoimunes, especialmente as hematológicas, correlacionadas com a síndrome.


RELATO DE CASO

O paciente do caso é do sexo masculino e tem 11 anos, faz seguimento com o serviço de genética médica desde os 7 anos de idade, com diagnóstico clínico-laboratorial de síndrome de Kabuki (SK) e exame genético com detecção de mutação no gene MLL2 (KMT2D), muitas vezes descrita como uma das anomalias causadoras desta patologia. Dentro do histórico patológico pregresso, apresentou pneumonias de repetição no primeiro ano de vida, otites médias agudas de repetição, com timpanostomia aos 6 anos, correção cirúrgica de hérnia hiatal e doença do refluxo gastroesofágico aos 2 anos e internações múltiplas por bronquiolite; em nenhum momento, o paciente necessitou de internação em ambiente de terapia intensiva.

Dentre as alterações fenotípicas características da SK, o paciente apresentava fenda palpebral oblíqua e inclinada para cima, deficiência intelectual, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e ponderoestatural leves, nariz curto e bulboso, filtro curto, dentes espaçados, além de alterações ortopédicas como clinodactilia em 4º e 5º quirodáctilos bilaterais, braquidactilia e cifose torácica.

Em solicitação prévia de imunofenotipagem de linfócitos T, B e NK, dosagem de imunoglobulinas, pesquisa de autoanticorpos (antitireoglobulina, antiperoxidase, isohemaglutinina e teste de antiglobulina direto) e resposta vacinal, solicitadas há três anos do ocorrido, não foram encontradas anormalidades dignas de nota. Em últimos exames hematológicos realizados um ano antes do caso, não constavam alterações relevantes.

Aos 11 anos de idade, o paciente apresentou-se a pronto-socorro infantil no estado de São Paulo com queixa aguda de, há 3 dias, início de icterícia aguda e progressiva, colúria, adinamia e anorexia; negava febre, uso de medicação ou vacinação recentes, sangramentos ou hematomas, bem como ausência de episódios similares prévios. Ao exame físico, apresentava-se com icterícia moderada, palidez moderada a acentuada, sem sinais de instabilidade hemodinâmica e sem visceromegalias palpáveis.

Em exames complementares realizados à admissão, apresentou bilirrubina total elevada (7,21mg/dL) com predomínio de bilirrubina indireta (6,89mg/dL), hemoglobina de 5g/dL, hematócrito de 17,6%, VCM 112,1 fl, HCM 31,8 pg, CHCM 28,4 g/Dl, RDW 31,6%, visualização de hemácias em alvo e esquizócitos em esfregaço periférico, leucócitos: 18480/mm³ com 2% mielócitos, 2% metamielócitos, 4% bastonetes e 49% de segmentados, reticulócitos de 37,8% (654.100/mm³), sem trombocitopenia (plaquetas de 229.000/mm³), DHL aumentada com valor de 1536U/L, reticulócitos totais elevados 654.000, ferro sérico normal, saturação de transferrina aumentada (71%), Coombs direto positivo, com pesquisa de anticorpos irregulares positiva IgG indeterminada; exames relativos a ambas as funções renal e hepática estavam normais. Sorologias para doenças infecciosas como hepatites virais agudas e síndromes mono-like negativas.

Em interconsulta com equipe de hematopediatria, foi levantada hipótese diagnóstica de anemia hemolítica autoimune e indicada pulsoterapia com metilprednisolona 30mg/kg/dia por 3 dias. Paciente evoluiu com melhora clínica e laboratorial importante, apresentando em exames realizados após corticoterapia com hemoglobina de 7,7g/dL, hematócrito de 26%, mantendo macrocitose discreta, anisocitose e policromasia evidentes, RDW 26,6% série branca similar a exame anterior, reticulócitos 37%/900.000/mm³, DHL 1303U/L, com queda de bilirrubina total para o valor de 4.43mg/dL e bilirrubina indireta de 3,85md/dL, sem demais alterações laboratoriais relevantes.

O paciente recebeu alta cinco dias após admissão, com orientação de retorno precoce ambulatorial com hematopediatria e seguimento clínico a longo prazo adequado. Posteriormente, o paciente seguiu em uso de prednisolona por cerca de dois meses, evoluindo com níveis hematimétricos similares aos prévios do ocorrido já supracitado.


DISCUSSÃO

A SK é uma síndrome rara e de anomalias múltiplas. Em 2010, o KMT2D foi identificado como o primeiro gene causador da mesma. Com base em relatórios publicados, 55-80% dos casos de SK podem ser explicados por mutações nesse gene. Essa síndrome está associada a anormalidades autoimunes e hematológicas, principalmente púrpura trombocitopênica idiopática (PTI), anemia hemolítica autoimune, leucoplasia, vitiligo e tireoidite1,3.

De acordo com publicações e relatos anteriores, as citopenias autoimunes associadas à SK geralmente têm um curso crônico e recidivante. A terapia convencional (imunoglobulinas intravenosas e corticoesteroides) destas condições é frequentemente marcada pela falta de resposta da autoimunidade e/ou efeitos colaterais da terapia3,4.

Alguns estudos descobriram uma alta prevalência de manifestações imunológicas na SK e, em alguns estudos relatados, a incidência de manifestações autoimunes foi de 25,6% em adultos acometidos com a SK, em comparação com 7,6 a 9,4% na população adulta em geral4,5,8.

A PTI é rara na população em geral, com incidência geral inferior a 1/10.000, enquanto mais de 20 casos em pacientes com SK foram descritos até o momento. Além disso, em vários deles, a PTI teve um curso crônico ou recidivante mais grave e, em alguns pacientes, foi complicado pela pancitopenia. Em pelo menos quatro pacientes, tal comorbidade foi considerada ameaçadora à vida, mal controlada pela terapia convencional e requeria esplenectomia ou anticorpo monoclonal anti-CD206,9,10.

A SK também é caracterizada por disfunção imunológica. Tais pacientes apresentam um risco aumentado de otite média recidivada devido à falta de anticorpos, perda de células da memória e baixa resposta à vacina. São encontradas anormalidades quanto às imunoglobulinas como hipogamaglobulinemia com deficiência de IgA, bem como perturbam a diferenciação da célula B terminal, o que resultará ainda mais em imunodeficiência humoral e autoimunidade. Ambos os mecanismos podem explicar infecções respiratórias bacterianas recorrentes, especialmente otite e pneumonia em pacientes com SK1,5.

A falta de infecções virais oportunistas ou complicadas indica que defeitos graves das células T e/ou NK não fazem parte da síndrome. Em uma coorte de pacientes com SK do Brasil, foi relatado que quatro em sete pacientes apresentavam manifestações alérgicas (três rinite e uma asma, acompanhadas em três casos por dermatite atópica)5.

Devido à semelhança dos defeitos imunológicos na SK e nos distúrbios variáveis comuns da imunodeficiência ou imunodeficiência comum variável (IDCV), é possível que os níveis de imunoglobulina em uma criança com SK possam inicialmente ser normais, mas posteriormente se tornarem anormais. A taxa de qualquer doença autoimune em indivíduos com SK com IDCV foi de 28% versus 9% sem manifestações imunológicas. Essa observação está relacionada ao fato de a IDCV estar frequentemente associada à AID na literatura, o que nos levou a supor que indivíduos com SK com IDCV deveriam ser supervisionados ainda mais cuidadosamente para manifestações autoimunes4,8,9.

Nosso paciente desenvolveu anemia hemolítica autoimune e demonstrou uma importante melhora com corticoides. Testes anteriores para a triagem de doenças autoimunes foram negativos apenas alguns anos antes da ocorrência, o que corrobora a ideia de que tais morbidades podem ocorrer até mais tarde na infância, e avaliações hematológicas e imunológicas devem ser realizadas de maneira seriada para diagnosticar esses pacientes precocemente. Além disso, tais fatos podem sugerir que a frequência real de alterações imunológicas é comumente subestimada.

O manejo geral desses pacientes deve incluir avaliação clínica específica, com atenção especial a infecções auriculares, brônquicas ou digestivas repetidas, linfoproliferação, e sintomas de doenças autoimunes, principalmente citopenias, com avaliação imunológica apropriada desde o diagnóstico4,11.

Por fim, é notória a importância de relatos de caso similares para melhor compreender os mecanismos envolvidos em fenômenos autoimunes correlacionados a SK. Os autores desse relato entendem que a ausência de imagens do paciente pode ser um fator limitante para a análise do caso supracitado.


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1. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. Hospital Universitário - USP, Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. Universidade Federal do Tocantins, Pediatria - Palmas - Tocantins - Brasil

Endereço para correspondência:

Aline Barbosa Lopes
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Av. Dr. Arnaldo, nº 455, Cerqueira César, Pacaembu - SP. Brasil
CEP: 01246-903
E-mail: aline.blopes@hc.fm.usp.br

Data de Submissão: 08/08/2020
Data de Aprovação: 18/09/2020