ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Artrite Reativa após infecção por Giardia lamblia: um relato de caso

Reactive arthritis after Giardia lamblia infection: a case report

RESUMO

A Giardia sp. é um dos parasitas intestinais mais comuns dos seres humanos e, durante os primeiros dois anos de vida, constitui a principal causa de infecções parasitárias intestinais. Além de sintomas entéricos, essa parasitose pode ser gatilho para manifestações extraintestinais, sintomas oftalmológicos, dermatológicos, do aparelho urinário e musculoesqueléticos. Pode-se incluir artrite, que, associada a um quadro pós-enteropático ou geniturinário, podem caracterizar uma Artrite Reativa. Contudo, ressalta-se que relatos de uma associação com artrite pós-infecciosa são relativamente escassos, acreditando-se que a artropatia secundária à giardíase pode estar sendo subdiagnosticada. O objetivo do presente trabalho é relatar um caso sobre sinovite associada à infecção por Giardia sp. Trata-se de uma lactente, de dezoito meses de idade, com quadro de sinovite de quadril aguda à direita, tratada com anti-inflamatório não hormonal por cinco dias, com melhora dos sintomas. Entretanto, após 29 dias, apresentou quadro semelhante na articulação contralateral, tratada novamente com anti-inflamatório não hormonal. Ao exame parasitológico, apresentava positividade para Giardia lamblia, que foi tratada após o diagnóstico, com desaparecimento dos sintomas em cinco dias, mantendo-se assintomática até o momento. É necessário incluir a giardíase no raciocínio etiológico de artrite reativa, principalmente, frente a um quadro recorrente, visto que a clínica dessa doença é inespecífica e sua prevalência, alta em crianças pequenas de países em desenvolvimento.

Palavras-chave: Giardia lamblia, Artrite Reativa, Giardíase, Artrite, Criança.

ABSTRACT

Giardia sp. is one of the most common intestinal parasites in humans and ranks as the main cause of intestinal parasitic infection in infants aged two years and younger. Besides enteric symptoms, this parasitic disease may trigger ophthalmic, dermatologic, urinary tract, and musculoskeletal symptoms. These may include arthritis, which, when occurring secondary to enteropathic arthritis or genitourinary conditions, may cause reactive arthritis. However, reports of associations with post-infectious arthritis are relatively scarce and cases of arthropathy secondary to giardiasis may be underdiagnosed. The aim of the present paper is to report a case of synovitis associated with Giardia sp. infection. An 18-month-old female infant with acute synovitis of the right hip was treated with a non-steroidal anti-inflammatory drug for five days, with improvement of symptoms. However, 29 days later she presented similar symptoms in the contralateral joint and was prescribed a non-steroidal anti-inflammatory drug. The patient had an ova and parasite test performed, which came back positive for Giardia lamblia. The patient became asymptomatic five days after the initiation of treatment. Giardiasis should be included in the roster of conditions that may cause reactive arthritis, especially in cases of recurrence, since the clinical presentation of this condition is nonspecific and prevalence is high among young children in developing countries.

Keywords: Giardia lamblia, Reactive Arthritis, Giardiasis, Arthritis Child.


1 INTRODUÇÃO

A Giardia sp. é um dos parasitas intestinais mais comuns dos seres humanos e constitui a principal causa de infecções parasitárias intestinais nos primeiros dois anos de vida1. A giardíase afeta quase 2% dos adultos e 8% das crianças em países desenvolvidos. Além disso, estimativas demonstram que quase 33% da população nos países em desenvolvimento já foram infectados pelo parasita2. No Brasil, sua prevalência varia de 12,4% a 50%, dependendo do estudo, da região e da faixa etária analisada, predominando em crianças entre zero e seis anos3. No estado do Rio de Janeiro, um estudo feito pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realizou exame parasitológico em 89 crianças menores de quatro anos frequentadoras de uma creche em uma comunidade; a infecção por giárdia foi detectada em quase 50% dos casos4.

Uma característica marcante da giardíase é o espectro de sintomas clínicos que ocorrem em indivíduos infectados [5], podendo variar desde sua forma assintomática à apresentação com diarreia crônica ou grave e distúrbios crônicos pós-infecção, que tipicamente incluem, além de diarreia aquosa, náusea, dor epigástrica e perda de peso6. Essa parasitose também pode causar manifestações extraintestinais. Uma coorte, realizada em 2016, afirmou que 33,8% dos pacientes relataram pelo menos um sintoma extraintestinal, incluindo sintomas oftalmológicos, dermatológicos, do aparelho urinário ou musculoesqueléticos. Ademais, pode-se incluir a artrite, que, associada a um quadro pós-enteropático ou geniturinário, pode ser chamada de Artrite Reativa (ReA)7.

A artrite reativa é a artrite inflamatória que se manifesta após vários dias, ou até semanas, de uma infecção gastrointestinal ou geniturinária. Os critérios maiores para seu diagnóstico são: presença de oligo ou monoartrite assimétricas, envolvendo extremidades inferiores e com sintomas de enterite ou uretrite precedendo o início da artrite em um intervalo de tempo de 3 dias a 6 semanas8.

Diversos organismos têm sido relatados como etiologia para a artrite reativa, sendo a maioria dos casos associados com infecções por Chlamydia trachomatis, Shigella, Salmonella, Yersinia e Campylobacter9. A infecção por Giardia lamblia, embora seja responsável por uma proporção significativa de infecções entéricas em todo o mundo, tem poucos relatos sobre associação com artrite pós-infecciosa10.

Acredita-se que a artropatia secundária à giardíase, apesar de parecer incomum, pode estar sendo subdiagnosticada. Diante disso, o objetivo do presente trabalho é relatar um caso sobre sinovite associada à infecção por Giardia sp., a fim de contribuir para maiores pesquisas a respeito do tema, bem como auxiliar no diagnóstico precoce e no tratamento da doença.


2 RELATO DE CASO

Lactente, dezoito meses, sexo feminino. Compareceu ao ambulatório de Pediatria com a mãe, apresentando claudicação e dor em articulação coxofemoral direita há três dias. A responsável negou episódios de febre ou sintomas respiratórios associados. Na história patológica pregressa, não houve relatos de diarreia, dor abdominal ou internações prévias. Ao questionar sobre a história social, a família afirmou residir em casa com saneamento básico e ingerir água de mina diariamente. Frutas e verduras eram higienizadas com água e vinagre. Ninguém do núcleo familiar manifestou sintomas gastrointestinais semelhantes ao caso relatado. Ao exame físico, a paciente apresentava-se em bom estado geral, afebril e sem sinais flogísticos, como calor, rubor ou edema, mas permanecia em posição antálgica no repouso, demonstrava dor à deambulação e à rotação externa da articulação referida.

Encaminhada ao ortopedista pediátrico para investigação, foi diagnosticado clinicamente quadro de sinovite transitória de quadril à direita e prescreveu-se Ibuprofeno por cinco dias, cujo uso resultou em desaparecimento dos sintomas. Não foram colhidos exames laboratoriais.

Vinte e nove dias depois, a paciente apresentou sintomas semelhantes na articulação contralateral. Em vista disso, solicitou-se Ultrassonografia da região acometida, que evidenciou espessamento e abaulamento da cápsula ileofemoral, distante cerca de 0,4 cm do colo femoral, com musculatura adjacente sem alteração. Em reavaliação com ortopedista pediátrico, diagnosticou-se sinovite transitória de quadril à esquerda e prescreveu-se, novamente, Ibuprofeno por cinco dias, também ocasionando a melhora dos sintomas. Na ocasião, foram solicitados eletrocardiograma, ecocardiograma, hemograma completo, velocidade de hemossedimentação (VHS), proteína C reativa (PCR), mucoproteína, antiestreptolisina O (ASO), anticorpo antinuclear (ANA), fator reumatoide e ferritina, todos com resultados normais. O antígeno HLA-B27 foi ausente. A única alteração foi encontrada no exame parasitológico, positivo para Giardia lamblia nas três amostras examinadas. Em vista disso, prescreveu-se Benzoilmetronidazol.

Concomitantemente ao início do tratamento medicamentoso, a família passou a ingerir água filtrada e a higienizar verduras e frutas com hipoclorito de sódio. O resultado do exame parasitológico tornou-se negativo para Giardia lamblia e, treze meses após, a criança mantém-se assintomática.


3 DISCUSSÃO

A primeira associação entre Giardíase e artralgia foi descrita em 1977, por Goobar11. Desde então, alguns relatos de caso e série de casos vêm demonstrando essa associação, sendo crianças pequenas, viajantes e indivíduos imunocomprometidos grupos de alto risco12. No relato, o lactente apresentou sinovite de quadril bilateral como única manifestação clínica de giardíase, com o desaparecimento dos sintomas após o tratamento do quadro articular e da giardíase, enfatizando a importância de considerar o diagnóstico etiológico frente a um quadro articular.


3.1 SINTOMATOLOGIA

A giardíase foi associada a um aumento de 51% dos casos de artrite ou dor nas articulações7, principalmente as de extremidade inferior, como joelho e tornozelo10. Outras articulações também podem ser acometidas, como quadril, punho, ombro e cotovelo11,13. No caso descrito, a articulação acometida foi a de quadril - inicialmente à direita e, posteriormente, à esquerda.

Os sintomas intestinais podem ou não estar associados ao caso e, geralmente, é aceito o intervalo máximo entre a infecção anterior e a artrite de 4 semanas10. Esse período, no caso apresentado, não pode ser definido precisamente, visto que a giardíase só foi diagnosticada após a artrite e não houve sintomas intestinais.


3.2 DIAGNÓSTICO

O diagnóstico etiológico de ReA deve ser baseado em uma história detalhada, o que leva tempo e pode ser dispendioso14. A maior parte dos gatilhos estudados em literatura são virais e cursam com sintomatologia específica, o que facilita o diagnóstico de alguns casos, mas distancia a hipótese de precedentes parasitários de outros15. Em vista disso, deve-se incluir a giardíase no raciocínio etiológico dos diagnósticos diferenciais da artrite reativa, uma vez que a clínica dessa doença é inespecífica e sua prevalência é alta em crianças pequenas de países em desenvolvimento5.

O teste diagnóstico para giardíase consiste na demonstração de cistos e trofozoítos da Giardia lamblia nas fezes10, conforme realizado. Contudo, existe um empecilho nesse teste, pois há alta porcentagem de falsos negativos na pesquisa direta de trofozoítos ou cistos. Com isso, é relevante recorrer a outros métodos diagnósticos que podem não estar acessíveis, como a imunosseparação magnética acoplada à imunofluorescência (IMS-IFA) ou o teste de ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay, em inglês) que possuem maior eficácia comparada ao parasitológico de fezes3. Como foi encontrado o protozoário no exame parasitológico de fezes, não foi necessário recorrer a outros procedimentos diagnósticos no caso.

A respeito do diagnóstico de artrite reativa, a dosagem de VHS e PCR, em sua maioria, são normais, além da negatividade de ANA e fator reumatoide13,14,16. A prevalência de HLA-B27 na artrite reativa é estimada em 30% a 50% e essa frequência aumenta para 60-80% em pacientes mais gravemente afetados8. Ele pode ser medido, pois se correlaciona com a gravidade da doença, mas não é diagnóstico. O antígeno HLA-B27 foi ausente no caso relatado.

Além disso, vale ressaltar que a artrocentese diagnóstica é, por vezes, necessária para excluir casos de artrite séptica15, mas que não foi indicada no caso, visto que a lactente não apresentava febre, nem sinais flogísticos nas articulações acometidas.


3.3 TRATAMENTO E PROFILAXIA

Define-se que, frente a uma artrite reativa refratária ao uso de anti-inflamatório não hormonal, deve-se pesquisar giardíase para confirmação de manifestação extraintestinal devido à sua grande recorrência e, assim, o tratamento antimicrobiano levará à recuperação e à isenção de sequelas5. A terapia a ser oferecida pode incluir o Secnidazol, Tinidazol ou Metronidazol. Alguns trabalhos apontaram que o Albenzadol oferece efetividade análoga à do Metronidazol, além de menos efeitos colaterais e posologias mais simplificadas. No entanto, ainda são necessários mais estudos para essa definição3.

No mais, ressalta-se que a ingestão de água contaminada e alimentos não cozidos são as principais fontes de transmissão da Giardia lamblia e que uma boa higiene das mãos também é necessária para prevenir sua transmissão12.


4 CONCLUSÃO

Apesar de a Giardia lamblia ser um dos parasitas intestinais mais comuns nos seres humanos, com alta prevalência em crianças pequenas de países em desenvolvimento, a variedade de sintomas extraintestinais que podem decorrer dessa infecção, como a artrite reativa, muitas vezes é desconhecida. Em vista disso, faz-se necessária a inclusão da giardíase no raciocínio etiológico da artrite reativa, principalmente quando frente a um quadro recorrente. Ressalta-se também a importância da adoção de medidas de higiene individuais e de medidas sanitárias coletivas, uma vez que a infecção por giardíase é facilitada pelo consumo de água contaminada e de alimentos mal lavados ou não cozidos.


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Data de Submissão: 14/08/2020
Data de Aprovação: 13/04/2021