ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Malformação de Abernethy: uma doença rara

Abernethy Malformation: a rare condition

RESUMO

A malformação de Abernethy é caracterizada por um shunt portossistêmico extra-hepático.
Apresentamos o caso de um menino de 19 meses com sibilos recorrentes e trombocitopenia em investigação há cinco meses, internado por infecção respiratória hipoxêmica. Achados relevantes incluíram hipoxemia, dispnéia, anemia hemolítica, trombocitopenia e elevação das enzimas hepáticas. Manteve oxigênio e corticoide até o 8º dia, quando houve piora clínica e laboratorial. Ele começou com antibióticos e foi internado em nossa UTIP. Foi realizada TC toracoabdominal que revelou: coração aumentado; sinais de hipertensão pulmonar, consolidação bilateral, veia porta direita rudimentar, arterialização da circulação hepática; varizes perigástricas, periesofágicas e periaórticas e esplenomegalia. Dois dias após a internação, agravou-se a hipertensão pulmonar e ele desenvolveu choque cardiogênico refratário. O paciente evoluiu para óbito. A autópsia revelou malformação de Abernethy tipo II.
Embora raros, os shunts hepatossistêmicos podem se manifestar como sibilos recorrentes. Este caso retrata a importância do diagnóstico precoce para realizar o tratamento antes de complicações fatais.

Palavras-chave: Hipertensão Portal, Hipertensão Pulmonar, Cuidados intensivos, Sistema de portal.

ABSTRACT

Abernethy malformation is characterized by an extrahepatic portosystemic shunt. We present the case of a 19-month-old boy with recurrent wheezing and thrombocytopenia under investigation for five months, hospitalized for a hypoxemic respiratory infection. Relevant findings included hypoxemia, dyspneia, hemolytic anemia, thrombocytopenia and elevated liver enzymes. He was placed on oxygen and steroidsuntil the 8th day, when there was clinical and laboratory worsening. He started antibiotics and was admitted to our Pediatric Intensive Care Unit. A thoracoabdominal CT scan was performed and revealed: enlarged heart, signs of pulmonary hypertension, bilateral consolidation, rudimentary right portal vein, arterialization of the hepatic circulation, perigastric, peri-esophageal and peri-aortic varices and splenomegaly. Two days after admission, pulmonary hypertension agravated and he developed refractory cardiogenic shock. He ended up dying. Autopsy revealed type II Abernethy malformation. Although rare, hepatosystemic shunts may manifest as recurrent wheezing. This case portrays the importance of early diagnosis to perform treatment before fatal complications.

Keywords: Hypertension, Portal. Hypertension, Pulmonary. Liver Circulation. Critical Care. Portal System.


INTRODUÇÃO:

A malformação de Abernethy é uma malformação vascular congênita do território esplâncnico resultante da persistência de vasos embrionários, caracterizada pela existência de um shunt portossistêmico extra-hepático.1,2,3,4 É classificada em duas categorias de acordo com a anatomia.5 No tipo I , o mais frequente, há drenagem completa da circulação portal, de forma independente - tipo Ia - ou em um tronco comum - tipo Ib - na veia cava inferior.5 É mais frequente no sexo feminino e frequentemente está associada à presença de tumores benignos e malignos, bem como outras malformações, principalmente cardíacas. A malformação do tipo II, mais frequente no sexo masculino, é caracterizada por circulação hepática hipoplásica com circulação colateral.1,6

A apresentação clínica é variável: a doença pode permanecer assintomática até à idade adulta, mas existem casos descritos em crianças com cerca de 1 ano de idade.2 Os sintomas podem envolver os sistemas hepático, neurológico, pulmonar e metabólico.4,5 Incluem os sintomas associados a shunt portossistêmico, tais como síndrome hepatopulmonar e encefalopatia hepática, e outros associados a malformações coexistentes, incluindo doença cardíaca ou sintomas secundários a lesão intra-hepática.1,2,5

A terapia não é amplamente definida, mas inclui a realização de um novo shunt portossistêmico, fechamento do pré-existente e transplante de fígado.1,2,7


RELATO DE CASO:

Relatamos o caso de um menino de 19 meses com dados familiares irrelevantes e história pessoal de sibilos recorrentes.

Bom estado de saúde até os 14 meses de idade, quando apresentou doença exantemática viral com trombocitopenia (30.000 - 40.000 plaquetas/µL) e hepatoesplenomegalia associada. A plaquetopenia persistiu em avaliações analíticas associadas, mas a hepatoesplenomegalia desapareceu. Nesse período, ele esteve várias no pronto-socorro com diarreia prolongada. A triagem de intolerância ao glúten foi negativa e o teste de IgA foi normal.

Avaliado por cardiologista pediátrico, foi diagnosticada comunicação interauricular do tipo seio venoso, dilatação atrial e ventricular direitas e estenose pulmonar discreta no anel valvular/supravalvar. A Síndrome de NOONAN foi considerada e uma avaliação genética foi realizada, mas nenhum dimorfismo foi destacado. O teste de matriz (array) foi normal.

Dez dias antes da internação (19/12), iniciou quadro de tosse e congestão nasal, sem outros sintomas. No terceiro dia de doença, foi diagnosticado com bronquiolite não hipoxêmica e otite no pronto-socorro pediátrico, recebendo alta hospitalar com salbutamol e amoxicilina. Cerca de uma semana depois (28/12), apresentou piora clínica com falta de ar, prostração e recusa alimentar. À admissão apresentava-se pálido, com olhos fundos, polipnéico (Frequência respiratória ~ 30cpm), com tiragem torácica, sopro sistólico III/VI e estertores subcrepitantes à ausculta cardíaca e pulmonar. Apresentava também esplenomegalia (2-3cm abaixo do rebordo costal esquerdo) e fígado (3-4cm abaixo do rebordo costal direito), adenopatias cervicais e inguinais infracentimétricas bilaterais e pequenas lesões petequiais espalhadas pelos membros e face.

Os exames de sangue mostraram anemia hemolítica, trombocitopenia, leucocitose leve com predominância de neutrófilos e proteína C-reativa negativa (tabela 1). A radiografia de tórax estava normal. A ultrassonografia abdominal mostrou fígado homogêneo de tamanho normal, com veias hepáticas permeáveis, convergindo para veia cava inferior e arterialização da circulação hepática. Não foi possível identificar a veia porta. Não foram encontradas alterações morfoestruturais pancreáticas e o tamanho do baço estava no limite superior (eixo longitudinal de 8 cm), sem lesões focais. Outros exames para investigação posterior são apresentados na tabela 2.







Iniciou oxigenioterapia e corticoterapia oral em altas doses (prednisolona 4mg/kg/dia).

Durante a internação, houve melhora clínica com diminuição progressiva da oferta de oxigênio suplementar, desconforto respiratório e apirexia sustentada. Recebeu 6 dias de corticoterapia, quatro dos quais em alta dose.

No oitavo dia, o paciente apresentou piora clínica e laboratorial, com início de febre, piora do desconforto respiratório e prostração e, portanto, foi transferido para nossa Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). A radiografia de tórax permaneceu normal. A ultrassonografia abdominal foi semelhante à anterior. Havia uma pequena quantidade de fluido puro na bolsa de Morrison.

Ecocardiograma com dinâmica septal sugestiva de hipertensão ventricular direita com dilatação das cavidades direitas e gradiente valvar pulmonar preservado (20mmHg).

A angiotomografia computadorizada (angio-TC) de tórax e abdome mostrou dilatação aneurismática do tronco pulmonar (26 mm); pequena consolidação basal bilateral; coração aumentado, fígado homogêneo de tamanho normal; veias hepáticas patentes de tamanho normal convergindo para a veia cava inferior; sem veia porta no hilo, mas uma veia porta rudimentar com origem no hilo superior veia mesentérica em direção ao fígado direito; circulação arterial hepática proeminente; a veia esplênica e a veia mesentérica superior unem-se a um tronco comum que ascende como um shunt portossistêmico extra-hepático com varizes periaórticas, periesofágicas, perigástricas e esplenomegalia homogênea (Figuras 1 e 2). Não houve embolia pulmonar ou cavernoma portal.


Figura 1. TC axial mostrando veia porta rudimentar (1/a) e sinais de hipertensão portal (2/b) e pulmonar (3/c).




Figura 2. - Peças de necrópsia revelando hipoplasia da veia porta, vascularização pulmonar, malformações intra-abdominais e intra-hepáticas, alterações vasculares por hipertensão pulmonar grave (arteriopatia pulmonar plexogênica), cor pulmonale crônico, varizes esofágicas e atrofia do córtex cerebral. Legenda: BD: ducto biliar; HA: artéria hepática; IVC: veia cava inferior; PV: veia porta; SMA: artéria mesentérica superior; MSV: veia mesentérica superior; SV: veia esplênica.



Esses achados foram posteriormente interpretados como shunts portossistêmicos extra-hepáticos congênitos (CEPS) tipo 2, em que uma veia porta intra-hepática está intacta, mas parte do fluxo portal é desviado para uma veia sistêmica por meio de um shunt látero-lateral.

Considerando a gravidade clínica, apesar dos parâmetros inflamatórios negativos, iniciou antibioticoterapia com ceftriaxona (100mg/kg/dia) e azitromicina (10 mg/kg/dia).

Foi instituída terapia de suporte com transfusões (concentrados de hemácias e plaquetas) e oxigênio.

O quadro clínico continuou piorando com hipoxemia grave persistente, sem melhora com ventilação mecânica invasiva (ventilação convencional e oscilatória de alta frequência). Nesse momento havia disfunção sistólica bilateral e hipertensão pulmonar grave (~150mmHg) com dilatação importante das cavidades direitas e compressão das esquerdas ao ecocardiograma. Iniciou iloprosta endovenosa (2mcg/kg), nitroglicerina cutânea e óxido nítrico (40ppm), com discreta melhora.

Em poucas horas evoluiu com hipotensão refratária, piora da disfunção ventricular esquerda e progressão para falência de múltiplos órgãos. Após vários episódios de bradicardia extrema requerendo suporte avançado de vida, o paciente evoluiu para óbito.

Foi realizada necrópsia e encontrada hipoplasia da veia porta compatível com Malformação de Abernethy tipo II (fig. 2). Outros achados incluíram malformações vasculares pulmonares, intra-abdominais e intra-hepáticas, alterações vasculares por hipertensão pulmonar grave (arteriopatia pulmonar plexogênica), cor pulmonale crônico, varizes esofágicas e atrofia do córtex cerebral.


DISCUSSÃO

No presente caso, a doença se apresentou como uma síndrome hepatopulmonar, com hipertensão portal e pulmonar. No momento da admissão, a síndrome hepatopulmonar provavelmente foi desencadeada pelo episódio de infecção viral que culminou em hipertensão pulmonar grave, isquemia cardíaca e óbito. Retrospectivamente, os episódios prévios de dispneia e hipoxemia recorrentes provavelmente foram devidos, como relatado em outros casos5, à síndrome hepatopulmonar. Isso resulta da tríade: doença hepática, hipoxemia arterial e vasodilatação pulmonar.5 É importante ainda referir que a trombocitopenia persistente surge provavelmente no contexto de hipertensão portal, posteriormente confirmada pela presença de varizes esofágicas. Abernethy é uma das raras doenças em que podemos encontrar hipertensão portal sem cirrose hepática, o que atrasa o diagnóstico.

O diagnóstico é geralmente feito por imagiologia, principalmente a ecografia abdominal e angio-TC. No entanto, a angiografia digital é o padrão-ouro.5,7

O tratamento depende do tipo de malformação, manifestações clínicas e complicações existentes.5,7 Pode envolver fechamento de shunt portossistêmico, especialmente no tipo II, permitindo assim o desenvolvimento de circulação hipoplásica ou transplante de fígado.1,5 Embora o momento ideal para isso não esteja claramente definido, estudos mostram que mesmo na ausência de sintomas o tratamento precoce está associado à redução de complicações pulmonares e ótimo desenvolvimento psicomotor.5.6.7 No caso descrito, tratamentos prévios com fechamento da derivação sistêmica, segundo a literatura, levaram ao desenvolvimento da circulação hipoplásica e diminuíram as complicações da síndrome hepatopulmonar. Por outro lado, embora não existam sinais e sintomas de encefalopatia hepática, a autópsia descreveu sinais de atrofia cerebral provavelmente no contexto de doença do sistema nervoso central secundária a shunt hepatossistêmico.


CONCLUSÃO

As derivações hepatossistêmicas congênitas são raras, e a apresentação clínica é variável, portanto, o diagnóstico é um desafio. Elas podem se manifestar como sibilos recorrentes, uma entidade comum em crianças. Porém a CEPS deve ser considerada na presença de aspectos atípicos como a trombocitopenia deste caso. O diagnóstico precoce com reconhecimento oportuno da doença e terapia talvez pudesse ter evitado a evolução fulminante nesse paciente.


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Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE, Pediatria - Amadora - Lisboa - Portugal

Endereço para correspondência:

Maria Maria Mendes.
Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca. IC19, 2720-276
Amadora, Portugal
E-mail: mariamariadamendes@gmail.com

Data de Submissão: 28/08/2020
Data de Aprovação: 26/10/2020