ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Síndrome de Bartter como causa de atraso no crescimento e de surdez neurossensorial

Bartter syndrome as a cause of growth delay and sensorineural hearing loss

RESUMO

A síndrome de Bartter (SB) é uma tubulopatia renal rara, que se apresenta, geralmente, durante a infância, resultado de uma herança genética autossômica recessiva, que compromete a reabsorção tubular de cloreto de sódio. O relato apresenta o caso de um paciente de 1 ano e 6 meses com inúmeras manifestações sugestivas de SB, como hipocalemia, hipercalciúria, alcalose metabólica, poliúria, polidipsia, retardo no crescimento e desenvolvimento e surdez neurossensorial bilateral congênita. O diagnóstico foi confirmado posteriormente após teste genético, classificando o paciente como SB do tipo IV. Destaca-se a importância do conhecimento sobre a síndrome para que a mesma seja incluída no diagnóstico diferencial de tubulopatias de apresentação precoce, minimizando os possíveis impactos que a doença pode trazer à qualidade de vida dos envolvidos.

Palavras-chave: Síndrome de Bartter, Alcalose, Perda Auditiva Neurossensorial, Insuficiência de Crescimento.

ABSTRACT

Bartter syndrome (BS) is a rare renal tubulopathy, which typically becomes apparent during childhood. It is caused by an autosomal recessive inheritance which involves the kidneys’ ability to reabsorb sodium. This report depicts a case of an 18 month-old patient with several manifestations suggesting BS, such as hypokalemia, hypercalciuria, metabolic alkalosis, polyuria, polydipsia, growth delay and congenital bilateral sensorineural hearing loss. The diagnosis was confirmed after a genetic test by classifying the patient as type IV BS. In this context, knowing about BS is crucial to include it in the differential diagnosis of early onset tubulopathies. Therefore, the possible impacts of this condition can be minimized, leading to a better quality of life for the affected.

Keywords: Bartter Syndrome, Alkalosis, Hearing Loss, Sensorineural, Failure to Thrive.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Bartter (SB) é uma tubulopatia renal rara, com incidência anual estimada por Rudin (1988)1 de 1,2 casos por milhão de pessoas, que se apresenta, geralmente, durante a infância, resultado de uma herança genética autossômica recessiva. A raridade é explicada, em parte, pelas mortes perinatais que antecedem o provável diagnóstico2.

As mutações envolvidas na SB provocam comprometimento da reabsorção tubular de cloreto de sódio (NaCl) no ramo ascendente espesso da alça de Henle, explicando as alterações metabólicas características da SB: alcalose metabólica, hipocalemia, hiperreninemia/hiperaldosteronismo associados a níveis pressóricos normais e altos níveis de prostaglandina E23,4.

Clinicamente, o quadro envolve poliúria, polidipsia e atraso no crescimento e desenvolvimento5. Em alguns casos, também estão presentes hipercalciúria, hipomagnesemia e nefrocalcinose2. Adicionalmente, mutações específicas que comprometam os canais de cloreto CIC-Ka e CIC-Kb estão associadas à apresentação pré-natal da SB e surdez neurossensorial bilateral, complicação singular da SB tipo IV5,6.

O tratamento é baseado em suplementação de eletrólitos (cloreto de sódio e cloreto de potássio) e reposição de líquidos, que podem ser associados ao uso de anti-inflamatórios não-esteroidais (AINEs) ou diuréticos poupadores de potássio (DPP)2. O principal AINE utilizado em pacientes pediátricos é a indometacina, que deve ter uso monitorizado por seus efeitos colaterais no trato gastrointestinal e nos rins. Espironolactona ou amilorida, ambos DPP, podem ser úteis na elevação dos níveis séricos de potássio e na reversão da alcalose metabólica, entretanto, são contraindicados em caso de perda de sódio e água muito expressivas7. Se houver hipomagnesemia grave, esta deve ser a primeira a ser corrigida por possuir efeito caliurético2.

Diante do exposto, objetiva-se por meio deste relato de caso, difundir o conhecimento atual sobre a SB, a fim de possibilitar a inclusão como diagnóstico diferencial diante de sinais suspeitos. Desse modo, uma abordagem terapêutica precoce minimiza o impacto biopsicossocial no núcleo familiar envolvido e pode restaurar o ritmo de crescimento do paciente pediátrico.


RELATO DE CASO

Paciente masculino, 2 anos e 8 meses, acompanhado pela otorrinolaringologia por surdez neurossensorial bilateral congênita, encaminhado à pediatria para investigação de polidipsia e poliúria, notadas pelos pais desde, aproximadamente, 1 ano e 6 meses de idade.

A mãe relatou que percebeu o início do quadro de avidez por água quando o filho iniciou recusa alimentar, tanto em quantidade como em variedade, substituindo refeições pelo líquido. A ingestão hídrica diária do paciente era de aproximadamente 20 copos ao dia, associada a 3 despertares noturnos com sede. Além disso, a mãe referiu episódios em que o filho ingeria líquidos não potáveis, como água para limpeza da casa; e inúmeras trocas de fralda por diurese abundante. Negou a presença de febre, polifagia, astenia, vômitos, dor abdominal e dispneia.

O exame físico da consulta pediátrica evidenciou peso de 8,445 quilogramas (kg) (peso baixo para idade), perímetro cefálico de 48 centímetros (cm) (adequado para idade), estatura de 83cm (comprimento adequado para idade) e IMC de 12,3kg/metro² (magreza acentuada). Outros achados foram atraso na fala, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor (ainda não andava) e face triangular com fronte ampla, olhos fundos e orelhas proeminentes.

Os antecedentes gestacionais da mãe revelaram presença de polidrâmnio não investigado durante a gestação, parto prematuro via cesárea sem causa aparente com idade gestacional de 33 semanas e pais não consanguíneos.

Ao nascimento, o peso do paciente foi de 1990 gramas, classificando-o como adequado para a idade gestacional e baixo peso; a estatura, 45cm; o perímetro cefálico, 32cm; e boletim Apgar 6 e 7, no primeiro e quinto minuto, respectivamente. O paciente manifestou importante desconforto respiratório ao nascer, sendo necessário uso de CPAP durante 48 horas e internação em unidade de terapia intensiva neonatal. Ainda, evoluiu com icterícia com necessidade de fototerapia. Recebeu alta hospitalar após 29 dias.

Ao rastreamento do recém-nascido, foi detectada alteração no exame de emissões otoacústicas evocadas (“teste da orelhinha”) e, após investigação complementar pela otorrinolaringologia, diagnosticou-se surdez neurossensorial bilateral congênita.

Diante do quadro clínico, aventou-se as seguintes hipóteses diagnósticas: diabetes insipidus nefrogênica, acidose tubular renal e desnutrição crônica secundária a tubulopatia. Foram solicitados balanço hídrico, gasometria venosa, eletrólitos, urina tipo 1 e de 24 horas, radiografia de mão e punho, eletrocardiograma e dosagem sérica de renina e aldosterona. Por conseguinte, a poliúria foi confirmada, assim como constatadas presença de alcalose metabólica, hipocalemia, hipocloremia, urina alcalina com baixa densidade e hipercalciúria. Não foi evidenciado glicosúria, raquitismo ou alterações dentárias.

Assim, as duas primeiras hipóteses diagnósticas foram excluídas e, considerando as alterações encontradas nos exames complementares, associadas ao atraso pôndero-estatural e antecedentes perinatais, o diagnóstico clínico de SB foi sugerido como causa da tubulopatia e de seus desdobramentos patológicos.


COMENTÁRIOS

A SB abrange um conjunto de alterações tubulares renais, causadas por mutações em seis diferentes genes, cujo resultado é a falha na reabsorção de cloreto de sódio na porção espessa da alça de Henle4. Diante disso, fisiopatologicamente, observa-se leve depleção de volume extracelular e consequente ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona3.

Com o aumento da produção de angiotensina II, há potencialização da atividade da ciclooxigenase-2 (COX-2) na mácula densa, comprometendo ainda mais a perda urinária de sódio pela produção excessiva de prostaglandina E2 (PGE2)7. Ainda, o aporte de sódio em excesso nas porções tubulares distais promove a espoliação de potássio e hidrogênio, e a diminuição da reabsorção de cloreto reduz a excreção renal de bicarbonato, promovendo sua retenção metabólica2,7. Assim, justificam-se as alterações metabólicas características da SB.

Clinicamente, a SB é dividida em formas antenatal (tipos I, II e IV) e clássica (tipo III), as quais apresentam um padrão de herança genética autossômico recessivo6. Os outros dois tipos da síndrome, tipos V e VI, possuem diferentes padrões de herança: autossômico dominante e ligado ao X recessivo, respectivamente4.

Em cada tipo da SB, há mutações em genes distintos e, portanto, os fenótipos apresentam variações. No tipo I, a mutação é no gene SLC12A1; no tipo II, gene KCNJ1; no tipo III, gene CLCNKb; no tipo V, gene CASR; e, no tipo VI, gene CLCN54. No tipo IV, os genes envolvidos são BSND e CLCNKa-CLCNKb, ambos responsáveis pela funcionalidade dos canais CLC-Ka e CLC-Kb5,6.

Os canais comprometidos no tipo IV são expressos nos rins e na orelha interna e, dessa forma, as mutações resultam no fenótipo singular da SB tipo IV: manifestações perinatais de polidrâmnio e prematuridade, surdez neurossensorial bilateral congênita, poliúria com grave perda de sal e alterações hidroeletrolíticas6. No caso descrito, apesar de inicialmente não apresentarem causa aparente, as complicações perinatais foram importantes para a sugestão do diagnóstico clínico de SB, uma vez que as outras alterações foram notadas tardiamente.

Assim, os sinais e sintomas apresentados pelo paciente são sugestivos da SB tipo IV: surdez neurossensorial bilateral congênita e alterações metabólicas, associadas a polidipsia, poliúria, atraso no crescimento e desenvolvimento e fácies típica. Esses achados vão ao encontro de outros casos descritos na literatura de pacientes com a mesma mutação genética (p.G47R)8. Entretanto, no caso relatado, notou-se também nefrocalcinose de início precoce por meio de ultrassonografia de rins e vias urinárias, complicação mais frequente em outros tipos de SB2.

Posteriormente, para o diagnóstico definitivo, foram feitos testes genéticos, que revelaram mutação em homozigose p.G47R no gene BSND. Existem pelo menos treze mutações possíveis nesse gene, de severidade variável, sendo a mutação p.G47R, classificada como sentido trocado (missense mutation), relacionada a fenótipos renais mais leves8.

A terapêutica foi iniciada assim que o diagnóstico clínico foi feito, sendo utilizado tratamento preconizado pela literatura atual: suplementação de cloreto de potássio e uso de indometacina. Também foi iniciado uso de hidroclorotiazida, com boa tolerância e aceitação dos medicamentos. Ainda, o paciente recebeu implante coclear unilateral em orelha esquerda aos 19 meses, com posterior acompanhamento pela fonoaudiologia. Ressalta-se também o aconselhamento genético realizado com os responsáveis, que culminou com a decisão de laqueadura tubária.

Na SB, o tratamento curativo do defeito tubular primário é alcançado apenas por meio de transplante renal, contudo, a adesão correta ao tratamento clínico ao longo da vida garante um bom prognóstico2. Espera-se a retomada do crescimento e desenvolvimento mesmo em casos associados à desnutrição grave, como o relatado, embora o ritmo seja mais lento. Além disso, no caso em questão, por se tratar de SB tipo IV e por estar associada à nefrocalcinose, há maior risco de desenvolvimento de doença renal crônica a longo prazo6.

Ressalta-se também o impacto econômico para a família e para o sistema de saúde, visto que os portadores desta patologia são suscetíveis a frequentes desequilíbrios volêmicos, distúrbios eletrolíticos e ácido-básicos, culminando em internações de repetição. Há, também, a necessidade de um acompanhamento multidisciplinar ambulatorial próximo e cuidadoso, associado à monitorização frequente de exames laboratoriais e do estado nutricional.

Desse modo, apesar de ser uma doença crônica, de tratamento não curativo, a inclusão da SB como diagnóstico diferencial diante de pacientes com sinais clínicos sugestivos é de importância ímpar, uma vez que o manejo eficaz visa a recuperação e a otimização do crescimento pôndero-estatural, além de permitir um adequado desenvolvimento neuropsicomotor.

Portanto, destaca-se a importância do diagnóstico precoce com tratamento e acompanhamento adequados como principal meio de prevenção de um prognóstico ruim e irreversível para desenvolvimento e crescimento do paciente pediátrico. Ademais, o acompanhamento multidisciplinar (pediatria, aconselhamento genético, fonoaudiologia e nefrologia), pode permitir uma melhor qualidade de vida ao paciente.


REFERÊNCIAS

1. Rudin A. Bartter’s syndrome. A review of 28 patients followed for 10 years. Acta Med Scand. 1988;224(2):165-71.

2. Emmett M, Ellison DH. Bartter and Gitelman syndromes. Waltham: UpToDate; 2020.

3. Bokhari SRA, Zulfiqar H, Mansur A. Bartter syndrome. Bethesda: StatPearls Publishing; 2020.

4. Howles SA, Thakker RV. Genetics of kidney stone disease. Nat Rev Urol. 2020 Jun;17:407-21. DOI: http://dx.doi.org/10.1038/s41585-020-0332-x

5. Li J, Hu S, Nie Y, Wang R, Tan M, Li H, et al. A novel compound heterozygous KCNJ1 gene mutation presenting as late-onset Bartter syndrome: case report. Medicine. 2019 Ago;98(34):e16738.

6. Fulchiero R, Seo-Mayer P. Bartter syndrome and Gitelman syndrome. Pediatr Clin North Am. 2019 Fev;66(1):121-34.

7. Mrad FCC, Soares SBM, Silva LAWM, Menezes PVA, Simões-e-Silva AC. Bartter’s syndrome: clinical findings, genetic causes and therapeutic approach. World J Pediatr. 2020;17:31-9. DOI: http://dx.doi.org/10.1007/s12519-020-00370-4

8. Lee HS, Cheong HI, Ki CS. A case of antenatal Bartter syndrome with sensorineural deafness. J Pediatr Endocrinol Metab. 2010 Out;23(10):1077-81.










1. Universidade de Brasília, Faculdade de Medicina - Brasília - DF - Brasil
2. Hospital Universitário de Brasília, Departamento de Pediatria - Brasília - DF - Brasil

Endereço para correspondência:

Lorena Lago de Menezes
Universidade de Brasília. UnB
Brasília/DF – 70297-400.
lorenalago.m@hotmail.com

Data de Submissão: 09/09/2020
Data de Aprovação: 14/10/2020