ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Hemangioendotelioma Kapasiforme mediastinal complicado com síndrome de Kasabach-Merrit: relato de caso

A case of mediastinal kaposiform hemangioendothelioma complicated with Kasabach-Merritt syndrome

RESUMO

OBJETIVOS: O objetivo desse trabalho é relatar a apresentação e evolução de caso de criança com diagnóstico de hemangioendotelioma kaposiforme mediastinal complicado pela síndrome de Kasabach-Merrit em unidade de referência em Salvador, Bahia.
RELATO DE CASO: Lactente de dois meses de idade com história de cianose e congestão nasal, apresentando derrame pericárdico ao ecocardiograma. Submetido a múltiplas drenagens pericárdicas. Transferido para unidade de referência em pediatria na cidade de Salvador. Na tomografia computadorizada contrastada foi visualizada massa mediastinal, sendo realizada ressecção cirúrgica. Análise anatomopatológica pós-operatória evidenciou hemangioendotelioma kaposiforme, sendo feita a suspeita de síndrome de Kasabach-Merrit por coagulopatia de consumo. Realizada terapia com corticoide e quimioterapia com vincristina. Paciente evoluiu bem, recebendo alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial, sem reincidência dos sintomas.
COMENTÁRIOS: O HEK é raro e agressivo, com histopatologia benigna. Pode complicar com coagulopatia de consumo, caracterizado pela síndrome de Kasabach-Merrit.

Palavras-chave: Tamponamento Cardíaco, Síndrome de Kasabach-Merritt, Hemangioendotelioma.

ABSTRACT

OBJECTIVES: This paper reports the case of a child diagnosed with mediastinal kaposiform hemangioendothelioma (KHE) and Kasabach-Merritt Syndrome at a referral hospital in Salvador, Bahia, Brazil.
CASE REPORT: A two-month-old with a history of cyanosis and nasal congestion had an echocardiogram with findings consistent with pericardial effusion. The patient underwent multiple pericardial drainage procedures and was eventually sent to a pediatric referral center in the city of Salvador. Contrast-enhanced computed tomography images showed a mediastinal mass, which was resected. Postoperative pathology revealed the patient had a KHE. He was also suspected with Kasabach-Merritt syndrome due to consumption coagulopathy. Corticoid therapy and chemotherapy with vincristine were performed. The patient progressed well and was discharged and placed on outpatient follow-up, without recurrence of symptoms.
COMMENTS: KHE is rare and aggressive, although with a benign histopathology. It can complicate with consumption coagulopathy, characteristically seen in Kasabach-Merritt syndrome.

Keywords: Kasabach-Merritt Syndrome, Cardiac Tamponade, Hemangioendothelioma.


INTRODUÇÃO

Hemangiomas são tumores vasculares considerados os mais comuns da infância, onde, tem-se sua prevalência, em geral, em torno de 2 a 6%¹. Normalmente, são caracterizados pelo seu rápido crescimento após o nascimento e, em 70% dos casos, desaparecem entre cinco e oito anos de idade sem deixar sequelas. Podem ser superficiais ou viscerais¹.

O hemangioendotelioma kaposiforme (HEK), por sua vez, é um subtipo considerado raro2,3. Valores de incidências em grandes centros de referência estimados em 0,07/100.000 crianças por ano4. Ambos os sexos são afetados igualmente. Em torno de 50% dos casos estão presentes ao nascer, enquanto a outra metade tem seu desenvolvimento após período neonatal, mais frequentemente no primeiro ano de vida5.

Em sua maioria, o tumor envolve as extremidades e menos frequentemente o tronco e a região cervicofacial4. Do total, em torno de 10% dos HEK não envolvem a pele. O retroperitônio é o local extracutâneo mais frequente, seguido pelo músculo, osso e cavidade torácica4.

A síndrome de Kasabach-Merritt (SKM) é uma complicação potencialmente fatal que ocorre em aproximadamente 70% dos casos de hemangioendotelioma kaposiforme. O SKM é caracterizado por trombocitopenia profunda e coagulopatia de consumo. Diferente do que se acreditava antes, a SKM é uma complicação do angioma adornado e do HEK, e não de outros hemangiomas infantis ou congênitos mais simples. Esses tumores podem causar dor ou comprometimento funcional, dependendo da área de envolvimento4,6,7.


OBJETIVO

O objetivo desse trabalho é relatar apresentação e evolução de caso de criança com diagnóstico de hemangioendotelioma kaposiforme mediastinal complicado pela síndrome de Kasabach-Merrit em uma unidade de referência em Salvador, Bahia.


RELATO DE CASO

Lactente, feminino, dois meses de idade, procedente da Bahia. Admitida em unidade hospitalar do interior da Bahia com cianose e congestão nasal, apresentando em radiografia de tórax do dia 30/03/2020 cardiomegalia e em ecocardiograma do dia 02/04/2020 presença de derrame pericárdio de grande monta e sinais de tamponamento cardíaco. Foi realizada drenagem pericárdica com sucesso, porém, novo derrame foi coletado com necessidade de nova abordagem dois dias depois. Novos derrames foram coletados e no total foram realizadas sete abordagens de drenagem pericárdica. Paciente foi transferida para unidade de referência em pediatria na capital baiana, Salvador, no dia 16/04/2020 estável hemodinamicamente, sem uso de drogas vasoativas, afebril e com uso de cefazolina, devido a cateter duplo-lúmen em saco pericárdico para possível drenagem de urgência.

Paciente evoluiu na internação com plaquetopenia grave variando de 8.000 a 61.000, sendo necessário inúmeras reposições de concentrado de plaquetas; anemia cuja hemoglobina variou de 6,7g/dL a 12,9g/dL, RNI: 1,28 e TTpa: 33,4. Foram realizados ainda biópsia medular sem alterações, alfafetoproteína de 25,7ng/ml; BHCG menor que 2mU/ml; TSH de 5,2uUI/ml; T4L de 1,4pg/ml; vitamina B: 333pg/ml; folato: 9,6ng/ml; imunofenotipagem de sangue periférico: linfócito B 7%; CD4: 66%; CD8: 28%; NK: 15,5%; NKT: 0,5%; Imunoglobulinas normais, HIV e VDRL negativos, sorologias normais. Realizado exame de tomografia computadorizada (Figura 1) contrastada de tórax onde foi visto tumoração em mediastino anterior e superior altamente vascularizado, com infiltração de vasos supracardíacos e derrame pericárdico volumoso. Foi acionada equipe de cirurgia cardiovascular para tentativa de abordagem cirúrgica. Realizado mediastinotomia exploradora no dia 30/04/2020, após dois concentrados de plaquetas, visto que o valor inicial era de 6.000; retirada de 600ml de líquido citrino de derrame pericárdico, pericardiectomia anterior parcial, ressecção do tumor usando clipes 200 e 300, ressecção do timo e da massa tumoral em bloco. Durante procedimento, percebeu-se infiltração à esquerda, atingindo nervo frênico, onde, nesse momento, interrompeu-se a dissecção do tumor.


Figura 1. Tomografia computadorizada contrasta de tórax. À esquerda eixo coronal e à direita eixo transversal. Salvador, 2020.



Paciente evoluiu no oitavo dia de pós-operatório com novo derrame pericárdico com repercussão hemodinâmica e pneumotórax bilateral, sendo realizado nova drenagem pericárdica associada a drenagem torácica bilateral em selo d’água. Demais exames de imagem de controle sem alterações. Paciente realizou no pós-operatório três sessões de pulsoterapia com metilprednisolona com intervalo de 2 dias entre as aplicações e iniciou colchicina diariamente a partir do dia 02/05/2020.

Material anatômico foi encaminhado para equipe de anatomopatologia, a qual concluiu tratar-se de hemangioendotelioma kaposiforme associado à síndrome de Kassabah-Merrit por conta da coagulopatia associada (Figura 2). Iniciou no dia 09/05/2020 tratamento com prednisolona e vinscristina. Evoluiu clinicamente e hemodinamicamente estável, com melhora gradual dos valores séricos de plaquetas, que estabilizaram em torno de 300.000. Manteve medicações diárias, colchicina uma vez ao dia por 3 meses, predinisolona 1ml oral duas vezes ao dia e a vincristina uma vez por semana no próprio hospital. Paciente recebeu alta no dia 22/05/2020 estável e com acompanhamento semanal com a onco-hematologia do hospital. No momento, em acompanhamento regular, sem novos episódios de tamponamento cardíaco e com plaquetas em ascensão (Gráfico 1).


Figura 2. Lâminas da anatomia patológica confirmando HEK. Salvador, 2020.




Gráfico 1. Contagem de plaquetas pelo tempo de internação. Salvador, 2020.



COMENTÁRIOS

O hemangioendotelioma kaposiforme (HEK) é um tumor raro, porém bastante agressivo1,8. O primeiro caso descrito em literatura foi em 1993, por Zukerberg et al.9, sendo que após dez anos apenas 100 casos foram descritos1. A real prevalência atualmente ainda é discutível e estima-se, em grandes centros, que a incidência ocorra em torno de 0,07/100.000 crianças nascidas4. O HEK tem características histológicas benignas, porém seu comportamento é maligno, podendo iniciar seu crescimento nos primeiros meses de vida até aproximadamente 18 meses. Entre 70% a 80% dos casos regridem até os cinco anos de idade1,8. Não há preferência de idade1.

Quanto à localização, o HEK envolve as extremidades, tronco e a região cervicofacial4. Por volta de 10% envolve estruturas extracutâneas, sendo o retroperitônio o local mais frequente, seguido por músculo, osso e cavidade torácica4.

A grande maioria dos casos de HEK, podem complicar com síndrome de Kasabach-Merrit (SKM), podendo chegar até 70% dos casos4. Esta consiste em uma coagulopatia por consumo, podendo existir plaquetopenia franca e seus sintomas como petéquias e sangramentos, bem como anemia hemolítica micro angiopática4,6,7. No caso descrito, a criança apresentou quadro de plaquetopenia severa, sendo necessárias várias transfusões com concentrado de plaquetas. A mesma não evoluiu com coagulopatia intravascular disseminada, outra apresentação comum e grave da SKM4,6-8.

O curso clínico do paciente pode ser variado a depender da localização do hemangioendotelioma, e da presença ou não de coagulopatia. Pode haver evoluções graves com instabilidade hemodinâmica e insuficiência respiratória, bem como apresentações de hepatoesplenomegalia por sequestro1,8. Há relatos de derrame pericárdico associado à anemia, mesmo quando não há acometimento torácico conjunto1. No caso descrito nesse trabalho, o paciente apresentava a tumoração em mediastino, com compressão de vasos da base, bem como pulmão. A localização predispôs ao surgimento de derrame pericárdico intenso e remitente, com necessidade de múltiplas drenagens.

O diagnóstico do HEK é feito pela histopatologia8. O tumor se apresenta como vários nódulos mal definidos, os quais se separam entre si por tecido conjuntivo que penetram a derme e o tecido subcutâneo, além de possuir pequenos capilares cobertos de células epiteliais fusiformes e aglomerados de células epiteliais de aspecto epitelióide8. Particularmente se vê hemossiderina, corpos hialinos intracitoplasmáticos nas células fusiformes e vacúolos no citoplasma eosinofílico das células epitelioides8.

O tratamento do HEK com SKM é constituído de terapia corticosteroide, que normalmente se faz inicialmente com metilpredinisolona 1mg/kg/dia, seguido por prednisona ou prednisolona diariamente1,8,10. Em casos em que não há remissão da coagulopatia com as medidas, há relatos com a inserção de interferon alfa, um imunomodulador que limita a angiogênese8. Além desses, outros quimioterápicos como vinscritina e sacrolimus apresentam resultados positivos em relatos e séries de casos8,11. Porém, sacrolimus normalmente é utilizado como última escolha, após todas as outras tentativas11. No caso deste trabalho, após a pulsoterapia com metilpredinisona, foi iniciado a vincristina semanal e mantido prednisolona diário para o paciente, com boa resposta ao tratamento.

O tratamento definitivo do HEK é a retirada cirúrgica do mesmo, o que provavelmente evita novos surtos de coagulopatia8. No caso do paciente em questão, por ser um tumor mediastinal, foi necessário equipe de cirurgia cardiovascular, sendo realizada ressecção delicada do tumor, separando-o dos grandes vasos mediastinais. Não foi necessário utilizar circulação extracorpórea, e foram utilizados vários clipes de numeração 200 e 300 para ter sucesso na remoção do tumor.

Após as medidas clínicas e cirúrgicas, o paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial, sem evidências de sintomas ou retorno da massa mediastinal. Não houve mais relato de derrame pericárdico.


REFERÊNCIAS

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8. Mamede PD, Silva KCKB, Cunali VCA. Hemangioendotelioma Kaposiforme associado a Sindrome de Kassabach Merritt - relato de caso. Resid Pediátr. 2016;6(3):131-3.

9. Zukerberg LR, Nickoloff BJ, Weiss SW. Kaposiform hemangioendothelioma of infancy and childhood. An aggressive neoplasm associated with Kasabach-Merritt syndrome and lymphangiomatosis. Am J Surg Pathol. 1993 Abr;17(4):321-8.

10. López V, Martí N, Pereda C, Martín JM, Ramón D, Mayordomo E, et al. Successful management of Kaposiform hemangioendothelioma with Kasabach-Merritt phenomenon using vincristine and ticlopidine. Pediatr Dermatol. 2009 Mai/Jun;26(3):365-6.

11. Rodríguez ZN, Benavides JP. Sirolimus (rapamicina) en pacientes con hemangioendotelioma kaposiforme: caso clínico. Rev Chil Pediatr. 2013 Out;84(5):537-44.










1. Hospital Martagão Gesteira, UTI pediátrica - Salvador - Bahia - Brasil
2. Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, Residência de Cirurgia Cardiovascular - São Paulo - SP - Brasil
3. Hospital Martagão Gesteira, Cirurgia Cardíaca e Cardiopediatria - Salvador - Bahia - Brasil
4. Hospital Martagão Gesteira, Cirurgia Pediátrica - Salvador - Bahia - Brasil
5. Hospital Martagão Gesteira, Hematologia - Salvador - Bahia - Brasil

Endereço para correspondência:

Luanna Ribeiro Campos dos Santos Novais

Hospital Martagão Gesteira, UTI pediátrica
Salvador - Bahia - Brasil. R. José Duarte, 114 - Tororo
Salvador/BA, 40050-050
E-mail: luannaribeiro_ssa@hotmail.com

Data de Submissão: 01/10/2020
Data de Aprovação: 12/10/2020