ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Granulomatose com poliangiíte na infância: experiência de um centro de referência terciário no Ceará (BR)

Childhood granulomatosis with polyangiitis: the experience of a tertiary referral center in Ceará, Brazil

RESUMO

A granulomatose com poliangiíte (GPA) é uma vasculite granulomatosa necrosante relacionada ao anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA). É rara na população pediátrica e afeta predominantemente os vasos sanguíneos de pequeno e médio calibre, preferencialmente os rins e o trato respiratório superior e inferior. Trata-se de uma série de casos retrospectiva, realizada através de análise documental de crianças e adolescentes de até 18 anos com diagnóstico estabelecido pelos critérios de EULAR/PReS no período 2014 e 2019. O objetivo foi descrever características clínicas, achados laboratoriais e abordagens terapêuticas, assim como o curso da GPA na infância. Em nossa casuística, a GPA predominou no sexo feminino (80%) e a mediana da idade ao diagnóstico foi de 11,1 anos. A tríade clínica clássica: inflamação granulomatosa, glomerulonefrite necrosante pauci-imune, e envolvimento do trato respiratório superior e inferior, teve alta prevalência e a demora até o diagnóstico ocorreu especialmente naqueles com comprometimento renal ou pulmonar leve. Os achados dos exames laboratoriais: elevação velocidade de hemossedimentação, anemia e hematúria; além das alterações como sinusopatia na tomografia dos seios da face e infiltrados pulmonares, nódulos e cavitação encontrados na tomografia de tórax foram característicos e essenciais para o diagnóstico. O tratamento padrão de todos foi realizado com glicocorticoides e ciclofosfamida. A morbidade foi significativa e sustentada ao longo do curso da doença. Os achados clínicos, laboratoriais e os tratamentos realizados foram consistentes com a literatura e a gravidade doença foi significativa, reforçando a necessidade de reconhecimento precoce, tratamento inicial agressivo e seguimento a longo prazo desses pacientes.

Palavras-chave: Granulomatose com Poliangiíte, Vasculite Associada a Anticorpo Anticitoplasma de Neutrófilos, Pediatria, Glomerulonefrite, Vasculite Sistêmica, Doenças Respiratórias.

ABSTRACT

Granulomatosis with polyangiitis (GPA) is an ANCA-associated necrotizing granulomatous vasculitis. It is rare in the pediatric population and predominantly affects small and medium-sizes blood vessels; it preferentially involves the kidneys and the upper and lower respiratory tract. This retrospective case series looked into the medical charts of children and adolescents aged up to 18 years diagnosed with the condition based on the EULAR/PReS criteria in the period ranging from 2014 to 2019. It describes clinical characteristics, laboratory findings and treatment options, along with the progress of GPA in children. In our series, GPA predominantly affected females (80%) and the median age at diagnosis was 11.1 years. The classic clinical triad comprising granulomatous inflammation, pauci-immune necrotizing glomerulonephritis, and upper and lower respiratory tract involvement, was highly prevalent, and delays in diagnosis occurred particularly in individuals with mild kidney or lung involvement. Laboratory findings included elevated erythrocyte sedimentation rate, anemia, and hematuria; alterations included sinus disease, pulmonary infiltrates, nodules, and cavitation seen on CT scans of the head and chest, all of which are key diagnostic elements. All patients were treated with glucocorticoids and cyclophosphamide. Morbidity remained significant and unchanged throughout the course of the disease. Clinical and laboratory findings and prescribed treatments were consistent with the literature. Given its severity, this disease requires early recognition, aggressive initial treatment, and long-term patient follow-up.

Keywords: Granulomatosis with polyangiitis, Anti-neutrophil cytoplasmic antibody-associated vasculitis, Pediatrics, Glomerulonephritis, Systemic vasculitis, Respiratory Tract Diseases.


INTRODUÇÃO

A granulomatose com poliangiíte (GPA) é uma vasculite necrosante que afeta predominantemente os vasos sanguíneos de pequeno e médio calibres e é geralmente associada ao anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (ANCA)1. Essa condição tem espectro clínico que abrange desde formas localizadas, sem comprometimento renal, até o envolvimento multissistêmico2-4. Embora possa afetar qualquer órgão, é caracterizada principalmente por inflamação granulomatosa do trato respiratório superior e inferior, além de glomerulonefrite necrosante pauci-imune3-9. Estima-se que a incidência de GPA na população pediátrica varie de 0,02 a 6,4 por 100.000 pessoas por ano5. Embora rara, essa doença pode ter desfechos devastadores.

Esta série de casos retrospectiva foi realizada através de análise documental de crianças e adolescentes até 18 anos que preencheram pelo menos três dos seis critérios seguintes, no período de 2014 a 2019: 1) histopatologia (inflamação granulomatosa);2) comprometimento das vias aéreas superiores;3) envolvimento laringo-traqueobrônquico;4) envolvimento pulmonar;5) ANCA positivo;6) envolvimento renal. Este trabalho, aprovado pelo comitê de ética e pesquisa, visa descrever as características clínicas, achados laboratoriais e abordagens terapêuticas ao diagnóstico, assim como o curso dessa doença. Os dados foram expressos em números absolutos, frequências/proporções, mediana e intervalo (mínimo-máximo).


RESULTADOS

Foram incluídos quatro pacientes do sexo feminino e um do sexo masculino. A mediana da idade e de tempo para o diagnóstico foram de 11,1 anos (9,1-12,3 anos) e 12,7 meses (1-26,3 meses), respectivamente. A demora na identificação dessa patologia ocorreu especialmente naqueles com comprometimento renal ou pulmonar leve. Todos os pacientes necessitaram de internação hospitalar na apresentação e a mediana da duração da internação foi de 2 meses(1,2-4,2 meses).

O quadro clínico inicial foi agudo em 40% dos pacientes (Tabela 1). O acometimento da via aérea superior no momento do diagnóstico estava presente em todos os pacientes, tendo a sinusopatia como principal manifestação. O envolvimento laringo-traqueobrônquico não foi evidenciado em nenhum paciente e o ANCA foi positivo em apenas dois pacientes no diagnóstico.




Todos os pacientes desse estudo apresentaram comprometimento renal, sendo a presença de hematúria o sinal mais precoce. Três crianças apresentaram taxa de filtração glomerular inferior a 15ml/minuto/1,73m2, dos quais dois apresentaram glomerulonefrite rapidamente progressiva com crescentes e evoluíram para doença renal crônica terminal e necessidade de terapia substitutiva renal. Ambos não recuperaram a função renal e foram submetidos a transplante renal. Imunofluorescência indireta com padrão pauci-imune ocorreu em todos os casos.

Embora apenas três pacientes apresentassem sintomas pulmonares na apresentação, todos tiveram alterações na tomografia computadorizada de tórax: infiltrados pulmonares fixos em três pacientes, nódulos em dois e cavitação em um (Tabela 2).




Envolvimento do sistema nervoso central (SNC) na apresentação estava presente em quatro crianças, tendo a cefaleia como principal queixa. Duas crianças apresentavam sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal e diarreia como sintomas iniciais.

Foi observado elevação acentuada na velocidade de hemossedimentação e anemia no momento do inicial com melhora progressiva com o início do tratamento.

Todos os pacientes receberam como terapia de indução os glicocorticoides na forma de pulsoterapia com metilprednisolona (30mg/kg com um máximo de 1 grama por dia por 3 dias), seguidos de desmame gradual com prednisona via oral na dose de 2mg/kg (até 60mg). No início, quatro pacientes receberam seis ciclos de ciclofosfamida (uma dose de 600mg/m2 administrada no primeiro mês e então 700mg/m2 a cada três semanas por até seis meses), exceto um, que realizou terapia de indução com micofenolato mofetil (500-1.500mg/dia). Além disso, a imunoglobulina intravenosa (2g/kg) e o rituximabe (375mg/m2, uma vez por semana, durante 4 semanas) foram necessários em três e dois pacientes, respectivamente, devido à persistência ou piora da atividade renal.

As indicações para os 5 pacientes que receberam ciclofosfamida foram as seguintes: hemorragia alveolar (N=1); insuficiência renal com TFGe <50mg/dl (N=4).

No seguimento, uma paciente apresentou audiograma demonstrando perda auditiva condutiva. Em um caso foi observado nariz em sela como resultado da destruição de cartilagens nasais.

Três alcançaram remissão com corticosteroides em baixas doses em combinação com agentes poupadores de glicocorticoides, e uma criança alcançou remissão em uso apenas de azatioprina (2mg/kg/dia). Desses, dois pacientes alcançaram a remissão após transplante renal. O tempo para alcançar a remissão foi de 12,3 meses (10-16 meses).

Dois pacientes que não alcançaram remissão e permaneceram em tratamento de manutenção a longo prazo, em razão da persistência de alterações renais.

As cinco crianças necessitaram de readmissões principalmente devido: infecções (N=2), urgência hipertensiva (N=1), mau funcionamento do cateter de diálise (N=2) e transplante renal (N=2).

Nenhum paciente acompanhado apresentou recidiva e nenhum óbito foi registrado.


DISCUSSÃO

A GPA é de rara ocorrência na infância e há poucos casos descritos no Brasil. Os cinco casos diagnosticados em um único centro terciário, em aproximadamente cinco anos, motivaram a realização do estudo. O predomínio de pacientes do sexo feminino em nossa coorte, com uma frequência de 80%, foi similar aos achados de outras séries de casos1-5.

A mediana da idade ao diagnóstico na presente casuística foi de 11,1 anos, sendo similar aos dados de outras séries pediátricas recentemente publicadas3-5,10,11. A mediana do tempo até o diagnóstico foi de 12,7 meses, período superior aos dados disponíveis em cinco estudos anteriores, que foram de três a cinco meses (1,5-8 meses)3-5,10,11. A implicação dessa disparidade entre o início e o diagnóstico, pode indicar dificuldades decorrentes de sua apresentação inespecífica e o início insidioso em 60% dos pacientes da presente casuística. Soma-se a isso também a baixa positividade (40%) do ANCA que ocorreu provavelmente à nossa dificuldade em realizar o teste através de ELISA. Embora a presença deste anticorpo não seja obrigatória, é muito útil para corroborar o diagnóstico12-14.

Em nossa série, as crianças com GPA apresentaram envolvimento multissistêmico, embora um estudo de 1993 sugira que o GPA infantil se apresente mais frequentemente como doença localizada ou limitada11. Não é totalmente clara a razão para a alta prevalência de doença generalizada no presente estudo, porém, é provável que isso ocorra devido ao fato de nosso hospital ser um centro de referência em reumatologia pediátrica do Estado.

Com relação à apresentação de características clínicas na presente série, o envolvimento do trato respiratório superior continuou sendo a maior característica em crianças com GPA, dados consistentes com a literatura1,7-10. Estudos anteriores observaram que a forma pediátrica complica mais frequentemente com estenose subglótica10,14. Embora nenhum paciente do presente estudo tenha apresentado envolvimento laringo-traqueobrônquico, a estenose subglótica pode estreitar as hipóteses diagnósticas quando comparada a outras manifestações do trato respiratório.

A doença renal presente em 100% dos pacientes do estudo, foi superior ao que se observou nos registros publicados1-6. Em nossa experiência, o comprometimento renal raramente foi completamente reversível.

As biópsias renais foram cruciais para o diagnóstico de GPA, pois mostraram glomerulonefrite pauci-imune em todos os pacientes. Além disso, forneceram informações prognósticas importantes, tendo havido rápida progressão para doença renal em estágio terminal dos pacientes com glomerulonefrite com presenta de crescentes.

O envolvimento pulmonar foi tão comum quanto a doença renal em nossos pacientes. Os achados dos estudos de imagem em nossa população, foram comparáveis aos relatados em outras séries pediátricas, porém com uma proporção maior de achados anormais de imagem em comparação com os relatados5,14. Enfatiza-se então a importância de obter uma tomografia computadorizada de tórax em qualquer paciente com doença persistente das vias aéreas.

As manifestações gastrointestinais e neurológicas foram comuns nesta coorte e frequentemente precederam o diagnóstico de GPA, concordando com os recentes trabalhos publicados3,5.

Alterações laboratoriais, exceto a ausência de positividade do ANCA em 60%, foram comuns em nossos pacientes, alterações essas bem descritas.

As estratégias de tratamento foram condizentes com as recomendações do EULAR e SHARE (Single Hub and Access point for paediatric Rheumatology in Europe) para terapia de indução com os corticosteroides, sendo o medicamento mais prescrito6-8. Embora novos estudos venham dar preferência ao rituximabe, devido a mesma resposta terapêutica que a ciclofosfamida com efeitos colaterais menores, em nosso estudo não houve essa predileção15. Quanto ao tratamento de manutenção da remissão foi observado que as recomendações internacionais de doses e a duração do tratamento foram seguidas.

O impacto na morbidade em nossa coorte foi significativo tanto na apresentação quanto durante o seu curso, como evidenciado pela necessidade de hospitalização no momento do diagnóstico (100%), pelas frequentes readmissões hospitalares, alta prevalência de doença renal crônica (60%), deformidades do nariz em sela (20%) e perda auditiva (20%).

A maioria das crianças conseguiu alcançar remissão pelo menos uma vez e seguem recebendo tratamento e acompanhamento ambulatorial. A ausência de recaída ou morte foi divergente da maioria dos estudos publicados que tiveram maior duração, tornando necessário um tempo maior de acompanhamento1-5.


CONCLUSÃO

As crianças com GPA frequentemente apresentaram a forma sistêmica da doença, sendo essencial garantir um diagnóstico oportuno, uma vez que nossos dados enfatizam uma alta morbidade com envolvimento multissistêmico. Os riscos de danos crônicos em órgãos confirmam a gravidade e a dificuldade de tratamento da doença, reforçando a necessidade de reconhecimento precoce, tratamento inicial agressivo e seguimento a longo prazo desses pacientes.


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1. Hospital Geral de Fortaleza, Pediatria - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Hospital Geral de Fortaleza, Reumatologia Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:

Camila Emidio Bastos
Hospital Geral de Fortaleza
R. Riachuelo, 900
Papicu, Fortaleza/CE, 60175-205
E-mail: camilaebastos@gmail.com

Data de Submissão: 05/10/2020
Data de Aprovação: 18/11/2020