ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Leishmaniose visceral em paciente pediátrico com recuperação medular pós-tratamento com uso de Filgastrim

A case of Visceral leishmaniasis in a child on platelet recovery after treatment with filgrastim

RESUMO

A leishmaniose visceral (LV) é uma doença crônica infecciosa, sistêmica, causada pelo protozoário tripanossomatídeo do gênero Leishmania que, quando não tratada, evolui para óbito em mais de 90% dos casos. Uma característica da LV é a maior incidência da doença e óbito em crianças menores, pela maior suscetibilidade à infecção e depressão da imunidade observada nesta faixa etária. A LV ainda se mostra como uma doença negligenciada, com alta incidência e alta mortalidade, sendo necessário um grande avanço no seu diagnóstico e tratamento, em especial na população pediátrica. São poucas as drogas disponíveis para o tratamento da LV. A primeira escolha no Brasil é o antimonial pentavalente, N-metil glucamina, que apresenta elevada toxicidade e longa duração. A segunda opção é a anfotericina B nas formas desoxicolato ou lipossomal, drogas com menos efeitos colaterais, porém com uso ainda restrito a uma menor proporção de pacientes. Apresentamos o caso de uma paciente pediátrica com sintomas progressivos por 3 meses, pancitopenia e insuficiência hepática, diagnosticada e tratada com anfotericina B lipossomal. Por manutenção de neutropenia grave, foi realizado teste terapêutico com Filgrastim, evoluindo com boa recuperação medular. A neutropenia é um sinal característico da Leishmaniose, com resolução normalmente rápida após o tratamento. Alguns pacientes mantêm neutropenia grave ainda assim, sendo necessários mais estudos para definir o benefício real do uso de fatores de estimulação de colônias de neutrófilos nestes casos, a fim de reduzir o tempo de internação hospitalar.

Palavras-chave: Leishmaniose, Leishmaniose visceral, Filgrastim, Pediatria.

ABSTRACT

Visceral leishmaniasis (VL) is a chronic systemic infectious disease caused by protozoa of the family Trypanosomatidae, genus Leishmania. Death is the outcome in more than 90% of the cases when the disease is left untreated. One of the characteristics of VL is the higher incidence of disease and death in younger children, due to the greater susceptibility to infection and immune disorder observed in this age group. VL is still a neglected disease, with high incidence and high mortality, which calls for substantial improvements in diagnosis and treatment, especially in the pediatric population. There are few drugs available for the treatment of VL. The first choice in Brazil is N-methyl-glucamine antimoniate, known for its toxicity and long treatment protocol. The second option is liposomal amphotericin B or amphotericin B deoxycholate, which produce fewer side effects, although they are prescribed to fewer patients. This report describes the case of a child with symptoms progressing for three months, in addition to pancytopenia, and liver failure, diagnosed and treated with liposomal amphotericin B. Since the patient remained with severe neutropenia, a therapeutic test with filgrastim was performed and led to good platelet recovery. Neutropenia is a characteristic sign of Leishmaniasis, which usually resolves rapidly once treatment has been initiated. Some patients remain with severe neutropenia, and further studies are needed to define the actual benefit of using granulocyte-colony stimulating factor in order to reduce the length of hospital stay.

Keywords: Leishmaniasis, Leishmaniasis, Visceral, Filgrastim, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A leishmaniose visceral (LV) é uma parasitose de grande importância para a saúde pública mundialmente. Porém, apesar dessa relevância, é a doença tropical mais negligenciada1. Apresenta incidência global estimada de 500.000 novos casos e mais de 50.000 mortes por ano e, no Brasil, atinge todas as regiões2. É de notificação compulsória, endêmica e têm sido registrados surtos frequentes3.

Também conhecida como calazar, é uma doença crônica infecciosa, não contagiosa, sistêmica, que, quando não tratada, evolui para óbito em mais de 90% dos casos3. É causada por um protozoário tripanossomatídeo do gênero Leishmania e a transmissão ocorre através da picada de fêmeas hematófogas de flebotomíneos4.

A infecção pode causar diversas manifestações clínicas que variam de acordo com a resposta imune do hospedeiro. A maioria dos casos são assintomáticos ou com sintomas moderados como diarreia, tosse seca, adinamia, febrícula, sudorese e hepatoesplenomegalia discreta, podendo evoluir ou não para a forma clássica, que se apresenta com febre, hepatoesplenomegalia, com esplenomegalia abundante; perda de peso, tosse, diarreia, dor e distensão abdominal. Na fase tardia, os pacientes podem apresentar edema e ascite3,5-7.

O diagnóstico é baseado no encontro do parasita na medula óssea, baço, fígado ou linfonodos; testes sorológicos; técnicas de biologia molecular e reação em cadeia polimerase. Quando não é possível o diagnóstico laboratorial, o tratamento é baseado nos achados clínico-epidemiológicos3,5,7.

Para tratamento da LV, no Brasil, utiliza-se o antimonial pentavalente como primeira escolha. A segunda opção é a anfotericina B em suas duas formas: desoxicolato ou lipossomal7.

Esse trabalho tem como objetivo descrever um caso de LV em paciente pediátrica, diagnosticada e tratada em hospital universitário brasileiro, além de mostrar o uso off-label do Filgastrim para resolução de neutropenia grave pós-tratamento da LV, evidenciando a necessidade de mais estudos para definir concretamente em quais casos da doença o uso dessa medicação pode ser benéfico.


RELATO DE CASO

Paciente E.I.L.A., feminina, 8 anos, natural de Cacule/BA, procedente de São José do Rio Preto/SP. Admitida na emergência em 14/07/2020, com história de aumento progressivo do volume abdominal de início há 3 meses, letargia, colúria e perda ponderal de 5kg no período. Negava febre, vômitos, perda de apetite, alterações gastrintestinais. Havia mudado de Cacule/BA para São José do Rio Preto/SP em janeiro/2019, moradora de área urbana em ambas as cidades. Relato de presença de vários cachorros na vizinhança (sem contato), um com doença desconhecida.

US abdome realizado na emergência evidenciou hepatomegalia (LHD 17,1cm e LHE 12,3cm) e esplenomegalia (longitudinal 20,5cm), ectasia de veia porta e discreta quantidade de líquido livre na cavidade. Apresentava pancitopenia (hemoglobina 7,7; leucócitos totais 1380 com 21% de segmentados; plaquetas 94.000), AST 700, ALT 271, Fosfatase alcalina 400, Albumina 1,81, Globulina 7,19, Bilirrubina total 1,75, Bilirrubina direta 1,62, teste rápido para Leishmaniose positivo, sorologias IgM e IgG positivos para Leishmaniose. Realizado aspirado de medula óssea, que evidenciou formas amastigotas de Leishmania sp.

Optado por tratamento com Anfotericina B Lipossomal 4mg/kg/dia por 5 dias, devido quadro de insuficiência hepática. Após término do tratamento, mantinha neutropenia grave (leucócitos 1.180 com 10,2% de segmentados). Optado por teste terapêutico com Filgrastim 5mcg/kg/dia por 2 dias. Hemograma após teste terapêutico evidenciou hemoglobina 7,6; leucócitos 2.500 com 40% de segmentados; plaquetas 118.000, saindo do quadro de neutropenia grave. Recebeu alta no dia seguinte (23/07/2020) afebril, ainda com pancitopenia e função hepática alterada, sem intercorrências, com retorno ambulatorial com equipe de Infectologia.


COMENTÁRIOS

Espécies diferentes do protozoário Leishmania causam a doença. Podemos citar a Leishmania donovani como causadora da doença na África e Ásia e Leishmania infantum (conhecido como Leishmania chagasi na América do Sul) na Europa, Norte da África e América Latina3. Inicialmente a LV foi descrita como uma endemia rural. Contudo, a partir da década de 1980, passou por urbanização e expansão territorial. É classificada como uma zoonose, mas acomete o ser humano quando este se envolve no ciclo de transmissão do parasito. Assim, passa a ser designada antropozoonose, sendo o cão doméstico o principal reservatório do agente etiológico1,8. O flebotomíneo Lutzomyia longipalpis é o vetor de maior importância epidemiológica no estudo da LV8.

Uma característica importante da doença é que ela apresenta maior o risco para crianças mais jovens. Sabe-se que a imunidade se desenvolve com a idade, e, desta forma, a incidência da doença e do óbito em crianças menores têm relação com a maior suscetibilidade à infecção e com a depressão da imunidade observada nesta faixa etária7.

O Ministério da Saúde (MS) constantemente estabelece estratégias para controle da doença, o que não parece reduzir de forma eficaz o número de casos e óbitos pela parasitose. Entre 2003 e 2012 a média anual de casos foi de 3.565 e a incidência de 1,9 por 100.000 habitantes. Também nesse período a letalidade média foi de 6,9%3. A notificação do MS, no período 1994 a 2002, quantificou 48.455 casos, sendo 66% no Nordeste9. Indivíduos não tratados, crianças desnutridas, infectados pelo HIV ou em uso de drogas imunossupressoras são grupos de risco, com alta letalidade nesses pacientes7.

A LV é uma síndrome clínica espectral e a desnutrição é um fator de extrema importância, pois se desenvolve com a progressão da doença. Em casos oligoassintomáticos envolvendo febre associada à tosse persistente, diarreia por mais de três semanas e hepatoesplenomegalia discretas, o diagnóstico é de difícil conclusão devido a confusão com outros processos infecciosos9. O quadro pode ter evolução insidiosa ou manifestar-se de forma mais abrupta com sinais de gravidade, como no caso da paciente deste relato. As principais causas imediatas de óbito envolvem infecções, hemorragias, anemia grave, baixa idade e desnutrição7.

Quanto ao diagnóstico laboratorial, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a anemia ocorre em 98% dos casos diagnosticados no Brasil; é multifatorial, podendo originar-se do bloqueio de produção da medula, sequestro esplênico, hemólise, hemorragia e carência de ferro. A leucopenia e neutropenia ocorrem pelo hiperesplenismo, além de hipoplasia ou depressão medular e hemofagocitose. Concluindo o quadro de pancitopenia, encontra-se a plaquetopenia como fator preditor de hemorragia grave, uma das principais causas de óbito7.

Os testes sorológicos utilizados para o diagnóstico são a imunofluorescência indireta, teste de aglutinação direta e ELISA; além disso, utilizam-se técnicas de biologia molecular, reação em cadeia polimerase e o teste rápido. Entretanto, os testes diagnósticos apresentam sensibilidade e especificidade variáveis entre si e seus custos devem ser avaliados na prática clínica3,5,7. A microscopia é o padrão ouro devido à elevada especificidade. As formas amastigotas podem ser visualizadas em esfregaços teciduais de linfonodo, medula óssea ou baço10.

Há poucas classes de drogas disponíveis para tratamento da LV no Brasil. No final da década de 40 o antimonial pentavalente foi introduzido no país e somente nos anos 80 introduziu-se a anfotericina B desoxicolato, seguido de formulações lipídicas como a anfotericina B lipossomal, que apresenta alta eficácia e baixa toxicidade11,12. Atualmente o tratamento preconizado pela OMS é o antimonial pentavalente, Nmetil glucamina; como segunda linha tem-se a anfotericina B desoxicolato, que na presença de critérios de gravidade passa a ser a droga de escolha. Por fim, a Anfotericina B lipossomal é utilizada em pacientes com insuficiência renal ou hepática, sepse ou comorbidade grave9.

O tratamento medicamentoso salva muitos pacientes, contudo alguns podem apresentar resistência à ação medicamentosa e recidiva do quadro após a terapêutica; tais fatores levam a uma dificuldade no manejo destes. Além disso, as drogas disponíveis constituem arsenal restrito. Temos apenas três opções terapêuticas, sendo que o antimonial é uma droga bastante tóxica e, no entanto, tem sido o pilar do tratamento há décadas9.

Ainda quanto à terapêutica, nota-se que a paciente do relato manteve quadro de neutropenia grave mesmo após o tratamento. Diante disso, a equipe médica optou por iniciar uso off-label do Filgrastim. Trata-se de um fator estimulante de colônias de granulócitos (G-CSF) humano, que atua sobre as células progenitoras hematopoiéticas capazes de formar o neutrófilo, estimulando a proliferação e diferenciação das mesmas10. A medicação é utilizada principalmente na insuficiência transitória da medula óssea após quimioterapia13. Além disso, é usada em algumas causas de neutropenia, como neutropenia congênita grave, neutropenia cíclica e AIDS, não sendo indicada como uso rotineiro em todas as neutropenias, pois a maioria se resolve apesar desse tratamento14. Na LV, indica-se o uso em pacientes com neutropenia grave, com complicações infecciosas e sem resposta à terapêuticas iniciais15. Não há estudos específicos sobre redução do tempo de internação hospitalar em pacientes que mantêm apenas neutropenia grave após o tratamento da LV. Neste caso apresentado, a equipe obteve êxito na redução do tempo de neutropenia grave, possibilitando, associada à estabilidade do quadro, alta hospitalar.

É de extrema importância o diagnóstico rápido da LV, a fim de reduzir a morbimortalidade, ainda alta em nosso país, principalmente na faixa etária pediátrica. O negligenciamento da LV está relacionado prioritariamente à escassez de novos medicamentos para seu tratamento. Por fim, enfatizamos a necessidade de estudos para avaliar o benefício do uso de Filgastrim na redução do tempo de internação hospitalar em pacientes que mantêm neutropenia grave após o tratamento da LV, de forma a avaliar o impacto no sistema de saúde e redução na morbidade dos doentes.


REFERÊNCIAS

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15. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Leishmaniose visceral grave: normas e condutas. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2006.










1. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Residência de Pediatria - São José do Rio Preto - SP - Brasil
2. Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Medicina - Goiânia - GO - Brasil
3. Hospital da Criança e Maternidade de São José do Rio Preto, Pediatria - São José do Rio Preto - SP - Brasil
4. Universidade Federal de Goiás, Residência de Ginecologia e Obstetrícia - Goiânia - Goiás - Brasil

Endereço para correspondência:

Claudia Ferreira Gonçalves
Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
Av. Brg. Faria Lima, 5416 - Vila São Pedro
São José do Rio Preto/SP, 15090-000
E-mail: claudiafgoncalves@hotmail.com

Data de Submissão: 11/10/2020
Data de Aprovação: 25/02/2021