ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 1

Melioidose em adolescente com diabetes mellitus tipo 1 com coinfecção por COVID-19: Relato de caso clínico

An adolescent with type 1 diabetes and coinfection with melioidosis and COVID-19: a case report

RESUMO

Melioidose é uma infecção rara e potencialmente fatal, emergente no Brasil e endêmica no Ceará, causada pela bactéria Burkholderia pseudomallei,que demanda alto índice de suspeição clínica para seu diagnóstico. Pode se manifestar de forma aguda, crônica ou latente e, em geral, nos pacientes sintomáticos há sepse com ou sem pneumonia. Diabetes mellitus é o principal fator de risco conhecido. Apresentamos o caso de um adolescente diabético, diagnosticado com melioidose septicêmica e com coinfecção por COVID-19.

Palavras-chave: Melioidose, Adolescente, Burkholderia pseudomallei, COVID-19.

ABSTRACT

Melioidosis is a rare and potentially fatal infection, emerging in Brazil and endemic in Ceará, caused by the bacterium Burkholderia pseudomallei, which requires a high index of clinical suspicion for its diagnosis. It can manifest acutely, chronically or latently and, in general, in symptomatic patients there is sepsis with or without pneumonia. Diabetes mellitus is the main known risk factor. We present the case of a diabetic adolescent diagnosed with septicemic melioidosis and co-infection with COVID-19.

Keywords: Melioidosis, Adolescent, Burkholderia pseudomallei COVID-19.


INTRODUÇÃO

Melioidose é uma doença infecciosa causada por um bacilo gram-negativo, não formador de esporos, descrito pela primeira vez em 1911, e conhecido atualmente como Burkholderia pseudomallei. Pode ser encontrado em solos e em superfícies aquáticas, predominantemente em regiões tropicais e subtropicais. É endêmico no norte da Austrália e em parte do Sudeste Asiático, afetando animais e seres humanos¹. Além disso, apresenta casos esporádicos na América Central e do Sul².

A infecção por B. pseudomallei pode ser adquirida por inoculação através da pele, inalação ou ingestão da bactéria e se manifestar de forma aguda, crônica ou latente, sendo considerados com melioidose apenas os pacientes que desenvolvem sintomas. Na maioria dos imunocompetentes há apenas doença subclínica. Naqueles que desenvolvem a doença, em geral, há sepse com ou sem pneumonia³. O fator de risco mais significativo é o diabetes mellitus (DM), apesar de existirem outros, como talassemia, doença renal crônica, doença pulmonar crônica, alcoolismo, cirrose hepática e imunossupressão4.

Pode acometer qualquer faixa etária, porém é menos comum em crianças. Sua incidência pode ser maior do que é registrada, devido às dificuldades no diagnóstico e à subnotificação4. Na faixa etária pediátrica a mortalidade é menor quando comparada aos adultos, está menos associada a imunossupressão de base e ocorrem mais quadros de infecções localizadas5.

No Brasil, é considerada uma doença emergente desde 2003, quando houve o primeiro caso confirmado por cultura, sendo a Região Nordeste considerada zona endêmica6. Além do Ceará, apenas outros dois estados têm casos confirmados no Brasil: Mato Grosso e Alagoas7. Em 2005, o Ceará declarou a melioidose como doença de notificação compulsória8.


CASO CLÍNICO

Paciente masculino, 16 anos, procedente do interior do Ceará, portador de DM tipo 1. Há 20 dias da admissão, iniciou tosse seca, evoluindo após 14 dias com mialgia, prostração e febre. Procurou a emergência do hospital de sua cidade de origem, tendo sido encaminhado a hospital pediátrico terciário. Apresentava taquidispneia, hipossaturação, desidratação e ausculta pulmonar com crepitações bibasais. Iniciado tratamento para pneumonia adquirida na comunidade com ceftriaxona, oxacilina, azitromicina e oseltamivir além de medidas terapêuticas para cetoacidose diabética. O paciente foi intubado e encaminhado à unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP).

Foi levantada hipótese de COVID-19, devido à síndrome respiratória aguda grave no contexto da pandemia à época. Exames laboratoriais da admissão revelaram leucopenia, plaquetopenia, gasometria arterial com acidose metabólica grave, proteína C reativa (PCR), transaminases, desidrogenase lática e ferritina elevadas.

O teste rápido para COVID-19 foi negativo, mas sorologia e teste molecular foram positivos. Radiografia (RX) (Figura 1A) e tomografia (TC) de tórax (Figuras 1B e 1C) mostraram nódulos do espaço aéreo de distribuição difusa por ambos os pulmões, confluindo para consolidações nos campos pulmonares inferiores. Após 24 horas, evoluiu para choque refratário, com necessidade de uso de drogas vasoativas.


Figura 1. A. Radiografia em anteroposterior (AP): nódulos mal definidos de distribuição difusa por ambos os pulmões, confluindo para consolidações nos campos pulmonares inferiores. B. Reconstrução coronal com janela de pulmão em plano anterior: múltiplos nódulos do espaço aéreo nos lobos superiores, lobo médio e língula. C. Reconstrução coronal com janela de pulmão plano posterior: nódulos do espaço aéreo nos lobos superiores confluindo para consolidações lobares nos lobos inferiores, aspecto bem semelhante ao descrito na radiografia. D. Radiografia em AP: consolidação residual no terço inferior do pulmão direito com pneumatoceles de permeio. Também existem pneumatoceles no terço inferior do pulmão esquerdo. Dreno torácico à esquerda com pequena lâmina de derrame pleural e enfisema subcutâneo. E. Reconstrução coronal com janela de pulmão em plano posterior: múltiplos nódulos com atenuação em vidro fosco, destacando-se verdadeiro abscesso no LIE. F. Reconstrução coronal com janela de pulmão em plano anterior: múltiplos nódulos com atenuação em vidro fosco difusamente, destacando-se cavitação/necrose de nódulos no LM e uma lâmina de pneumotórax à esquerda. Na evolução radiológica/tomográfica nota-se atenuação dos nódulos do espaço aéreo para pequenas opacidades centrolobulares em vidro fosco, resolução das consolidações dos LLII e desenvolvimento de nódulos cavitados.



Devido à gravidade, foi levantada a hipótese de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) e iniciados dexametasona, albendazol e piperacilina-tazobactam pela possibilidade de infecção por Pseudomonas aeruginosa, por se tratar de paciente com diabetes. Realizou ecocardiograma transtorácico, que mostrou disfunção leve de ventrículo esquerdo. Isso, associado aos exames laboratoriais e ao quadro clínico sugestivos de SIM-P, levou à opção por realizar tratamento com imunoglobulina humana venosa.

Após quatro dias de tratamento, persistiu com picos febris diários e foi escalonado antimicrobiano para meropenem. Neste período, apresentava pancitopenia em hemograma e PCR elevada. Realizou mielograma, que evidenciou histiócitos com atividade hemofagocítica. Foram associados vancomicina e amicacina, além de fluconazol por lesões cutâneas axilares sugestivas de infecção fúngica. Apresentou derrame pleural bilateral com necessidade de drenagem torácica bilateral devido empiema e pneumotórax hipertensivo.

Realizou novos exames de imagem para programação cirúrgica, que evidenciaram lesões cavitadas bilaterais (Figuras 1D, 1E e 1F). Foi submetido a decorticação pulmonar por videotoracoscopia, com inserção de dois drenos torácicos à direita, e extubado após 14 dias. Fez uso de meropenem por 14 dias, evoluindo afebril após cinco dias de tratamento, com recrudescência da febre após suspensão da medicação.

Foi aventada a possibilidade de infecção fúngica (coccidioidomicose), por história prévia de caça a tatu duas semanas antes do início dos sintomas, o que justificou a prescrição de anfotericina B. Houve piora laboratorial, com anemia, leucocitose e elevação de PCR, solicitada hemocultura e iniciados levofloxacino e amicacina. Havia também relato de banho de açude em período próximo ao da caça a tatu. A hemocultura revelou Burkholderia pseudomallei, o que levou à suspensão das medicações e reinício de meropenem.

Após 48 horas, permaneceu com febre, tendo sido associado sulfametoxazol-trimetoprim (SMZ-TMP). Paralelo a isso, passou a se queixar de dor para deambular e em quadril esquerdo. Realizou ressonância magnética, sendo evidenciada osteomielite. Foi submetido a abordagem cirúrgica em quadril esquerdo, evoluindo clinicamente bem e afebril após 48 horas da associação de SMZ-TMP, com programação de tratamento com antibioticoterapia endovenosa por oito semanas e manutenção de SMZ-TMP por seis meses. Paciente permaneceu em acompanhamento ambulatorial multidisciplinar e realizou imagens de controle (RX e TC de tórax) após cerca de 12 meses, que mostraram discretas alterações cicatriciais (Figura 2). Atualmente, encontra-se assintomático.


Figura 2. A. Radiografia em anteroposterior (AP): dentro da normalidade. B. Reconstrução coronal anterior exibindo bandas parenquimatosas cicatriciais no lobo médio. C. Reconstrução coronal posterior exibindo bandas parenquimatosas cicatriciais entremeadas por discretas bronquiectasias de tração no lobo inferior esquerdo.



DISCUSSÃO

A melioidose é uma doença infecciosa emergente, rara e de difícil diagnóstico. A forma pulmonar é mais comumente adquirida por inalação4. Testes diagnósticos para confirmação são necessários e a cultura é considerada o exame padrão-ouro. A bactéria, apesar de crescer na maioria dos meios de cultura utilizados nos laboratórios, pode não ser reconhecida e pode ser confundida com outras bactérias, além de ser considerada também como uma fonte de contaminação³.

No caso descrito, houve crescimento do microrganismo em amostras de sangue e de urina desde a admissão, porém, houve atraso no diagnóstico, devido ter sido identificada como outras bactérias (Burkholderia cepacia e Pseudomonas aeruginosa). O teste molecular positivo para COVID-19 mascarou o diagnóstico e, devido à gravidade clínica, foi conduzido como SIM-P. Após o resultado das culturas, foi enviado material para o Laboratório Central de Saúde Pública (LACEN) para confirmação por meio de técnica de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) pelo VITEK, conforme protocolo do estado do Ceará, o que corroborou o diagnóstico.

A melioidose não responde aos antimicrobianos comuns utilizados no tratamento de infecções adquiridas na comunidade, sendo necessário tratamento com agentes específicos, como ceftazidima ou meropenem. Além disso, para sua completa resolução, é necessário tratamento prolongado por via oral para erradicação da bactéria9. Estudo recente com 20 casos confirmados ou suspeitos de melioidose em pacientes pediátricos no Ceará observou elevada taxa de mortalidade, sintomatologia grave e considerável exposição ambiental. Isto nos faz sugerir que a melioidose nesta faixa etária pode ser mais grave no Brasil, diferindo das descrições já relatadas na literatura mundial8.


CONCLUSÃO

Neste caso apresentamos uma doença infecciosa pouco reconhecida no nosso meio, a melioidose, porém emergente em nosso país e endêmica na Região Nordeste. Faz-se necessário, portanto, elevado grau de suspeição clínica em pacientes que apresentam quadro de pneumonia grave de aparente origem da comunidade que não respondem aos antimicrobianos usuais e que possuem fatores de risco, além de exposição ambiental.

Tal suspeita é importante a fim de coletar material biológico e enviar a laboratórios habilitados no diagnóstico preciso, para que possamos iniciar terapêutica precoce apropriada, visando reduzir a morbimortalidade de uma entidade ainda tão pouco identificada.


REFERÊNCIAS

1. Gassiep I, Armstrong M, Norton R. Human Melioidosis. Clin Microbiol Rev. 2020;33(2):e00006-19.

2. Rolim DB, Vilar DC, Sousa AQ, Miralles IS, de Oliveira DC, Harnett G, et al. Melioidosis, northeastern Brazil. Emerg Infect Dis. 2005;11(9):1458-60.

3. Wiersinga WJ, Currie BJ, Peacock SJ. Melioidosis. N Engl J Med. 2012;367(11):1035-44.

4. Foong YW, Tan NW, Chong CY, Thoon KC, Tee NW, Koh MJ. Melioidosis in children: a retrospective study. Int J Dermatol. 2015;54(8):929-38.

5. Sanderson C, Currie BJ. Melioidosis: a pediatric disease. Pediatr Infect Dis J. 2014;33(7):770-1.

6. Brilhante RS, Bandeira TJ, Cordeiro RA, Grangeiro TB, Lima RA, Ribeiro JF, et al. Clinical-epidemiological features of 13 cases of melioidosis in Brazil. J Clin Microbiol. 2012;50(10):3349-52.

7. Rolim DB, Lima RXR, Ribeiro AKC, Colares RM, Lima LDQ, Rodríguez-Morales AJ, et al. Melioidosis in South America. Trop Med Infect Dis. 2018;3(2):60.

8. Lima RXR, Rolim DB. Melioidosis in Children, Brazil, 1989-2019. Emerg Infect Dis. 2021;27(6):1705-8.

9. Ceará. Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. Guia de Vigilância da Melioidose. Fortaleza: Secretaria da Saúde do Estado do Ceará; 2017.










1. Hospital Infantil Albert Sabin, Médica Residente de Pneumologia Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Hospital Infantil Albert Sabin, Pneumologia Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil
3. Hospital Infantil Albert Sabin, Radiologia - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:

Diane Gomes Pontes
Hospital Infantil Albert Sabin
Rua Tertuliano Sales, 544 - Vila União
Fortaleza - CE, Brasil. CEP:60410-794
E-mail: diane.pontes@gmail.com

Data de Submissão: 12/12/2022
Data de Aprovação: 28/01/2023