ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Mutação no gene scn1a e suas diferentes expressões fenotípicas - comparação de dois casos

Scn1a mutations and their different phenotypic expressions - comparison of two cases

RESUMO

INTRODUÇÃO: A mutação em heterozigose no gene SCN1A tem um espectro amplo de desordens epilépticas, variando de quadros autolimitados até encefalopatias epilépticas, como a síndrome de Dravet (SD). O controle de crises é importante para evitar morte súbita e morbidade associada às crises prolongadas, devendo-se evitar fármacos bloqueadores de canal de sódio.
OBJETIVOS: Relatar dois casos com mutação no gene SCN1A associada à síndrome de Dravet, ressaltando a importância do teste genético para o diagnóstico, prognóstico e escolha correta das medicações antiepiléticas.
RELATO DE CASO: Caso 1: paciente masculino iniciou crises convulsivas aos 4 meses após vacina. A partir desse momento, passou a apresentar crises generalizadas prolongadas e, com os anos, outras semiologias ictais. Evoluiu com déficit intelectual grave e epilepsia de difícil controle com exacerbação após infecções e uso de fármacos bloqueadores do canal de sódio. Caso 2: paciente feminina apresentou crise aos 26 dias de vida e depois aos 13 meses, quando passou a apresentar crises generalizadas muito prolongadas desencadeadas por variações pequenas de temperatura e euforia/irritabilidade. Aos 2 anos apresentou estado de mal epiléptico muito prolongado, evoluindo com encefalopatia hipóxico-isquêmica, além de epilepsia de difícil controle.
DISCUSSÃO: Os dois pacientes apresentam mutação no gene SCN1A associada à síndrome de Dravet, e as histórias clínicas revelam pontos similares e discrepantes entre si. As mais significativas contribuições do teste genético são a identificação dos fatores precipitantes, maior atenção para a possibilidade de evolução desfavorável e o direcionamento ideal para escolha dos anticonvulsivantes, evitando-se fármacos bloqueadores de canais de sódio.

Palavras-chave: Mutação com Perda de Função, Epilepsia, Canal de Sódio Disparado por Voltagem NAV1.1.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Heterozygous mutations in the SCN1A gene are linked to a wide spectrum of epileptic disorders, ranging from self-limited conditions to epileptic encephalopathies, such as Dravet Syndrome. Seizure control is important to prevent both sudden death and morbidity associated with prolonged seizures. Current evidence suggests that sodium-channel blockers should be avoided.
OBJECTIVES: To report on two cases of patients with a mutation in the SCN1A gene associated with Dravet Syndrome, emphasizing the importance of genetic testing for the diagnosis, prognosis, and correct choice of antiepileptic medications.
CASE REPORT: Case 1: male patient with onset of seizures at four months old following vaccination. After this, he developed prolonged generalized seizures and, over time, other types of seizures. He also developed a severe intellectual deficit and drug-resistant epilepsy exacerbated by infections and use of sodium-channel blockers. Case 2: female patient with first episode of seizure at 26 days. At 13 months, she developed prolonged generalized crises exacerbated by small temperature variations and euphoria or irritability. Aged two, she had an episode of prolonged status epilepticus. As a result, she developed hypoxic-ischemic encephalopathy and drug-resistant epilepsy.
DISCUSSION: The two patients have a mutation in the SCN1A gene associated with Dravet syndrome and their clinical history reveal similar and discrepant points. The most significant contributions of genetic testing are the identification of precipitating factors, greater attention to the possibility of unfavorable evolution, and guidance for choosing anticonvulsants, including avoidance of sodium-channel blockers.

Keywords: Loss of Function Mutation, Epilepsy, NAV1.1 Voltage-Gated Sodium Channel.


INTRODUÇÃO

O gene SCN1A (cromossomo 2q24.3) é responsável pela produção da subunidade alfa (NaV1.1) do canal de sódio voltagem dependente neuronal tipo 1. A mutação em heterozigose deste gene pode ocasionar disfunção do canal, acarretando perda de excitabilidade em neurônios inibitórios GABAérgicos e, por conseguinte, hiperexcitabilidade cortical e epilepsia1.

O espectro das desordens epilépticas relacionadas à mutação é amplo2, variando de quadros autolimitados e responsivos a terapias antiepilépticas (ex.: convulsões febris), até encefalopatias epiléticas, como a síndrome de Dravet. Assim, não é frequente a correlação entre o tipo de mutação no gene SCN1A com um fenótipo convulsivo específico, mas sabe-se que variantes nonsense e missense no sensor de voltagem estão relacionadas a quadros graves3-6.

O controle de crises é muito importante para evitar morte súbita inexplicável em epilepsia (SUDEP) e porque, nos fenótipos mais graves, ocorrem crises prolongadas que levam à injúria permanente7,8. Entre os tratamentos mais indicados estão: clobazam, topiramato, ácido valproico, levetiracetam, fenobarbital, estiripentol (não liberado no Brasil), canabidiol e dieta cetogênica9,10. Aquelas cujo mecanismo de ação é bloquear os canais de sódio (ex.: lamotrigina, carbamazepina e fenitoína) devem ser evitadas2.

Este artigo objetiva relatar dois casos de encefalopatias epiléticas relacionadas à mutação no gene SCN1A, ressaltando a sua importância para o diagnóstico, prognóstico e escolha correta das medicações antiepiléticas.


RELATO DE CASO

Na Tabela 1 é possível encontrar os marcadores clínicos resumidos de ambos os casos, assim como suas respectivas mutações.




Caso 1:

Escolar, 11 anos, gênero masculino, iniciou aos 4 meses crise tônico-clônica generalizada (TCG), associada à febre alta após vacina tetravalente. A partir de então, as crises TCG tornaram-se frequentes (4x/semana) e de duração prolongada (15-20 minutos). A introdução de ácido valproico e fenobarbital não trouxe benefício relevante, sendo necessária a substituição do primeiro por carbamazepina aos 2 anos, obtendo-se melhora parcial na frequência e duração das crises. Na evolução, surgiram outros fenótipos ictais, com crises mioclônicas e mioclônico-astáticas associadas a crises focais com generalização secundária, sendo necessário introduzir lamotrigina como terceira droga ao esquema.

Aos 6 anos, em esquema de politerapia anticonvulsivante (carbamazepina, lamotrigina, fenobarbital e ácido valproico) e controle parcial da epilepsia, apresentou síndrome comportamental caracterizada por agitação motora e agressividade, e diante desse cenário clínico, com um eletroencefalograma (EEG) lentificado e sem atividade ictal, optou-se pela suspensão gradual da carbamazepina.

Aos 7 anos o paciente apresentou recrudescência das crises TCG, com aumento da frequência, duração, predomínio dos episódios durante o sono e intensificação durante a febre. A introdução de levetiracetam nessa época trouxe resposta terapêutica parcial das crises e do comportamento.

Entre 8-9 anos, as crises mioclônicas tornaram-se diárias e deflagravam as crises TCG, sendo necessário aumento das doses de lamotrigina e ácido valproico.

A lamotrigina foi retirada após o resultado do teste genético identificando a variante Chr2:166.848.051G>A em heterozigose no gene SCN1A (definindo um códon de parada na tradução proteica).

Aos 11 anos, o paciente faz uso de fenobarbital, ácido valproico, levetiracetam e clobazam, com remissão completa das crises mioclônicas e apenas alguns escapes de crises focais e TCG.

Em relação ao desenvolvimento neuropsicomotor, aos 13 meses passou-se a observar atraso para as condutas cognitiva, linguagem e relação pessoal-social. Atualmente, é evidente a deficiência intelectual grave.

Na história familiar havia relato de dois tios paternos e dois primos paternos com epilepsia.

Ao exame físico observa-se uma síndrome atáxica desde o início do acompanhamento (4 anos), cuja etiologia pode estar relacionada à própria encefalopatia epilética e também à hipoplasia de vermis cerebelar evidente na ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio.

Os EEG realizados ao longo dos anos apresentavam lentificação difusa e predomínio de ondas agudas bilaterais em região frontal.

Caso 2:

Pré-escolar, 4 anos, gênero feminino, sem intercorrências gestacionais e perinatais, apresentou crises aos 26 dias de vida caracterizadas por cianose central, hipotonia e olhar fixo fugazes (<1 min), seguido, após 15 minutos, de crise TCG. Na ocasião, a triagem para infecção de sistema nervoso central, EEG e ultrassonografia transfontanela foram normais.

Com 1 ano, em vigência de febre, a paciente apresentou crise TCG por mais de 40 minutos, cessando apenas com uso de medicação intravenosa. Após este evento, as crises tornaram-se quinzenais, de ocorrência durante o sono, e caracterizadas por versão ocular, roncos e hipertonia. Aos 18 meses apresentou evento semelhante de duração prolongada e, a partir desse momento, surgiram crises TCG durante o dia, deflagradas por irritabilidade/euforia e hipertermias discretas (37 e 37,5 ºC).

Aos 2 anos e 4 meses, na troca de carbamazepina por ácido valproico, houve exacerbação das crises com mudança de semiologia (versão ocular vertical, lateralização cefálica repetitiva e arresponsividade), de longa duração (1 hora), abortadas apenas com medicação venosa.

Aos 2 anos e 6 meses, em vigência de infecção do trato urinário (ITU), a paciente apresentou crise TCG com duração de 5 horas, evoluindo com quatro paradas cardíacas, quatro meses de internação em UTI para controle do estado de mal epilético e realização de gastrostomia por encefalopatia hipóxico-isquêmica sequelar. A politerapia com levetiracetam, fenobarbital, oxcarbazepina e clobazam resultou em controle total das crises nesta ocasião.

Aos 4 anos, surgiram crises focais motoras clônicas em cabeça (lateralização) e membro superior direito 8-10 vezes/dia associadas a múltiplas mioclônicas.

O esquema terapêutico foi alterado após teste genético que identificou a variante Chr2:166.895.946C>T em heterozigose no gene SCN1A. Encontrando-se, no momento, em uso de levetiracetam, topiramato, clobazam e baclofeno mantendo crises focais diárias (3-5 vezes/dia).

Até 2 anos e 6 meses, o desenvolvimento neuropsicomotor evidenciava discreto atraso nas condutas pessoal-social, linguagem e cognitiva. Após as paradas cardiorrespiratórias, evoluiu com encefalopatia hipóxico-isquêmica, sobressaindo as síndromes piramidal e extrapiramidal distônica e coreoatetótica com regressão cognitiva completa.

Na história familiar havia relato de um meio-irmão paterno com epilepsia.

Os eletroencefalogramas (EEGs) revelavam ondas agudas de alta voltagem em surtos generalizados aos 2 anos e atividade paroxística durante o sono aos 3 anos.

A RNM de crânio com 3 anos revelou atrofia cerebral, dilatação do sistema ventricular ex vacuo, alteração de sinal em globos pálidos e tálamo esquerdo, além de redução do pico de N-Acetil-Aspartato inferindo perda neuronal.


DISCUSSÃO

A mutação do gene SCN1A possui herança autossômica dominante, mais frequentemente decorrente de evento mutacional “de novo”, porém, mais raramente, pode ser herdada de um dos genitores, que pode apresentar a variante em mosaico (somático ou gonadal).

Há diversos fenótipos relacionados a esta mutação, mas o principal é a síndrome de Dravet, cuja prevalência varia de 1:15.000-1:40.9003,4. Mutações no gene SCN1A podem estar presentes em até 70-85% na síndrome de Dravet. Trata-se de encefalopatia epiléptica farmacorresistente, com crises prolongadas, relacionadas ou não à febre e vacinação, iniciadas entre 5-8 meses, com neurodesenvolvimento normal até o início das crises. Com a evolução temporal, ocorre mudança na semiologia das crises: ausências atípicas, focais, mioclônicas e “obtundation status” (alteração de consciência com redução de tônus postural e mioclonias), seguido de regressão do desenvolvimento (principalmente de linguagem e cognitivo) associado a distúrbio comportamental e ataxia9,10. Hipertermia (febre, esforço físico, calor, banho quente), vacinação, fotossensibilidade e uso de fármacos antiepiléticos que atuam sobre o canal de sódio precipitam novas crises. O EEG com fotoestimulação geralmente mostra desencadeamento de atividade epileptiforme9,10.Os dois pacientes relatados apresentam mutação no gene SCN1A associada à síndrome de Dravet, pois apresentam as características principais presentes na síndrome clássica, mas há também algumas discrepâncias se comparadas aos dados da literatura.

São congruentes à síndrome a piora das crises com hipertermia, vacinação, farmacorresistência, multiplicidade de fenótipos ictais, duração prolongada das crises, história familiar de epilepsia e regressão do neurodesenvolvimento, especialmente nas condutas pessoal-social e linguagem. Claramente nota-se descontrole de crises com carbamazepina e lamotrigina no caso 1, atingindo-se o melhor controle com politerapia — ácido valproico e clobazam, que são considerados de primeira linha no tratamento da síndrome de Dravet9,10.

Contudo, em ambos os casos, observa-se o início bastante precoce de crises, aos 4 meses e aos 26 dias de vida, momento anterior ao descrito na literatura. Além disso, mudanças de humor (irritabilidade/euforia) curiosamente foram fatores precipitantes das crises no caso 2. As crises mioclônicas em ambos os casos se tornaram mais frequentes em fase tardia da doença, no início da idade escolar.

A despeito da mesma alteração genotípica, algumas distinções podem ser ressaltadas entre os dois pacientes: a) a hipertermia e a fotossensibilidade como gatilhos de crises foram muito mais relevantes no caso 2; b) não foi identificado o fator deflagrador da primeira crise no paciente 2 aos 26 dias de vida; c) longo período livre de novas crises no paciente 2 (26 dias de vida até 13 meses); d) maior gravidade da epilepsia no paciente 2, com crises mais prolongadas, evolução para estado de mal epilético e paradas cardiorrespiratórias.

Portanto, é nítido que variantes patogênicas no gene SCN1A não determinam fenótipo específico, e mesmo em pacientes com a mesma síndrome epiléptica, ainda pode haver variabilidade na gravidade do fenótipo. As mais significativas contribuições do teste genético, especialmente quando realizados precocemente, são a identificação dos fatores precipitantes, maior atenção para a possibilidade de evolução desfavorável e o direcionamento ideal para escolha dos anticonvulsivantes, evitando-se fármacos que atuem sobre os canais de sódio.


REFERÊNCIAS

1. Escayg A, Goldin AL. Sodium channel SCN1A and epilepsy: mutations and mechanisms. Epilepsia. 2010;51:1650-8.

2. Miller IO, Sotero de Menezes MA. SCN1A Seizure Disorders. GeneReviews® [Internet]. 2007 Nov 29. In: Adam MP, Mirzaa GM, Pagon RA, et al., eds. (WA): University of Washington, Seattle; 1993-2023; [acesso em ANO Mês Dia]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1318/

3. Wu YW, Sullivan J, McDaniel SS, Meisler MH, Walsh EM, Li SX, et al. Incidence of Dravet syndrome in a US population. Pediatr. 2015;136:1310-5.

4. Brunklaus A, Ellis R, Reavey E, Forbes GH, Zuberi SM. Prognostic, clinical and demographic features in SCN1A mutation-positive Dravet syndrome. Brain. 2012;135:2329-36.

5. Zuberi SM, Brunklaus A, Birch R, Reavey E, Duncan J, Forbes GH. Genotype-phenotype associations in SCN1A-related epilepsies. Neurol. 2011;76:594-600.

6. Meng H, Xu HQ, Yu L, Lin GW, He N, Su T, et al. The SCN1A mutation database: updating information and analysis of the relationships among genotype, functional alteration, and phenotype. Hum Mutat. 2015;36:573-80.

7. Chipaux M, Villeneuve N, Sabouraud P, Desguerre I, Boddaert N, Depienne C, et al. Unusual consequences of status epilepticus in Dravet syndrome. Seizure. 2010;19:190-4.

8. Takayanagi M, Haginoya K, Umehara N, Kitamura T, Numata Y, Wakusawa K, et al. Acute encephalopathy with a truncation mutation in the SCN1A gene: a case report. Epilepsia. 2010;51:1886-8.

9. Wirrell EC, Laux L, Donner E, Jette N, Knupp K, Meskis MA, et al. Optimizing the diagnosis and management of Dravet syndrome: recommendations from a north american consensus Panel. Pediatr Neurol. 2017;68:18-34.

10. Dravet C. The core Dravet syndrome phenotype. Epilepsia. 2011 Abr;52(Supl 2):3-9.










Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Neurologia Infantil - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Brenda Klemm Arci Mattos de Freitas Alves
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira
R. Bruno Lobo, 50 - Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP: 21941-912
E-mail: bklarci@gmail.com

Data de Submissão: 26/11/2020
Data de Aprovação: 04/02/2022