ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Doença de Kawasaki com recorrência tardia

Late recurrence of Kawasaki disease

RESUMO

Relato de um caso raro de recorrência de doença de Kawasaki (DK) e, dessa forma, chamar a atenção para a possibilidade de recidiva da doença após o primeiro episódio e o risco de complicações coronarianas. A recorrência de DK é rara, ocorre em apenas 3-5% dos casos descritos no Japão e é ainda menos frequente em outras populações. A incidência da recorrência na DK é mais alta nos primeiros dois anos após o primeiro diagnóstico, sendo mais frequente em pacientes do sexo masculino com idade igual a ou menor do que dois anos. As complicações cardíacas são mais frequentes na recorrência da DK, e a morte pode ocorrer por trombose de coronária ou ruptura de aneurisma de coronária.

Palavras-chave: Febre, Vasculite, Recidiva, Aneurisma, Vasos coronários.

ABSTRACT

Report of a rare case of recurrence of Kawasaki Disease (KD) and, thus, draw the attention to the possibility of recurrence of the disease after the first episode and thee risk of coronary complications. Recorrence of KD is rare, occurs in only 3-5% of case described in Japan, and is even less frequent in other populations. The inscidence of recurrence in KD is highest in the first two years after the first diagnosis, being more frequent in male patients aged two years or less. Cardiac complications are more frequent in the recurrence of KD, and death can occur from coronary thrombosis or rupture of coronary aneurysm.

Keywords: Fever, Vasculitis, Recurrence, Aneurysm, Coronary circulation.


INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistêmica autolimitada de etiologia não completamente esclarecida, com predomínio de vasos de médio calibre e predileção por artérias coronárias1,2. Atinge toda a faixa etária pediátrica, mas a maioria dos casos ocorre em crianças de até cinco anos de idade, sendo rara após os oito anos. Além disso, apresenta maior incidência no sexo masculino e crianças de etnia asiática3. O progresso da DK é dividido em três fases: aguda, subaguda e convalescente1,2. Apesar de a etiologia ainda ser indeterminada, teorias sugerem a existência de gatilhos infecciosos ainda não identificados, que desencadeiam uma reposta imunológica anormal em indivíduos geneticamente suscetíveis4. É a causa mais comum de doença cardíaca adquirida em crianças nos países desenvolvidos5,6. Pode resultar em anormalidades nas artérias coronárias em até 25% das crianças não tratadas, como aneurismas e estenose de artérias coronárias3,4. As anormalidades da artéria coronária resultantes podem causar isquemia miocárdica, infarto e até morte6.

Os critérios diagnósticos são baseados em achados clínicos, visto que não há um teste diagnóstico específico ou achado clínico patognomônico para a DK3. De acordo com as diretrizes da American Heart Association (AHA) e pela European League Against Rheumatism/Pediatric Rheumatology European Society (EULAR/PReS), o diagnóstico da DK clássica é definido por febre com duração de cinco dias ou mais, acompanhada de pelo menos quatro dos cinco principais critérios clínicos1,3,5,7,8:

• Alterações nas extremidades, como edema de dorso de mãos e pés e/ou eritema palmar ou plantar na fase aguda e/ou descamação periungueal ou da área perineal na fase subaguda.

• Alterações orais como eritema e fissuras labiais e/ou hiperemia difusa de mucosa orofaríngea e/ou “língua em framboesa ou morango”.
• Linfadenopatia cervical ≥1,5cm, geralmente unilateral.
• Exantema polimorfo.
• Hiperemia conjuntival bulbar, bilateral, não exsudativa.

No entanto, 20% a 30% dos pacientes não apresentam todos os critérios de DK clássica e são classificados com DK incompleta ou atípica. Nesses casos é recomendada uma avaliação laboratorial e ecocardiograma na avaliação das dimensões coronarianas. As alterações mais encontradas são: VHS >40mm/ 1ª hora, PCR >3mg/dL; plaquetas >450.000/mm3 (após 7 dias de doença); anemia; leucocitose >15.000/mm3; TGP >50U/L; albumina <3g/dL; piúria estéril; hiponatremia; e dimensões coronarianas por meio do Z-escore >2,5 ao ecocardiograma8.

Devemos suspeitar de DK incompleta ou atípica na presença de febre prolongada associada à:

• Presença de quatro critérios de classificação.
• Elevação de VHS ou PCR.
• Lactentes com irritabilidade inexplicada ou meningite asséptica.
• Exantema e provas de atividade inflamatória elevadas.
• Ecocardiograma com sinais de coronariopatia.
• Adenite cervical não responsiva a antibioticoterapia.
• Choque inexplicado ou com culturas negativas.
• Mesmo na presença de infecção documentada, se houver critérios clínicos típicos8.

A recorrência (ou recidiva) é definida como um episódio repetido de DK, completa ou incompleta, após resolução completa de um episódio prévio. A recorrência de DK é rara, ocorre em apenas 3–5% dos casos no Japão e é ainda menos frequente em outras populações3,4. Em um estudo brasileiro, a taxa de recorrência da DK encontrada foi de 8,3% durante os primeiros três anos de seguimento, superando as taxas observadas em estudos prévios de outros países como Estados Unidos, Japão e China9.

A incidência da recidiva na DK é mais alta nos primeiros dois anos, podendo ocorrer até oito anos após o primeiro episódio, sendo mais frequente em pacientes do sexo masculino com idade igual a ou menor do que dois anos. As complicações cardíacas são mais frequentes na recorrência da DK, e a morte pode ocorrer por trombose de coronária ou ruptura de aneurisma de coronária10,11.

Com relação aos fatores de riscos associados à DK recorrente, alguns estudos apontam variáveis presentes no primeiro episódio que estão mais relacionadas à recorrência, como: sexo masculino, maior tempo de febre, elevações importantes de transaminases e de proteína C-reativa, níveis baixos de hemoglobina, alterações coronarianas e doença refratária ao uso de imunoglobulina endovenosa, no entanto, as informações ainda são limitadas12,13.

A importância do seu reconhecimento precoce é evitar a ocorrência de complicações cardiovasculares e, portanto, o tratamento deve ser realizado assim que for confirmado o diagnóstico clínico7.

Está bem estabelecida a eficácia do tratamento com imunoglobulina endovenosa na fase aguda da DK para reduzir a prevalência de anormalidades nas artérias coronárias. O ácido acetilsalicílico (AAS) tem sido usado há anos no tratamento da DK, no entanto, apesar de sua importante atividade anti-inflamatória e antiplaquetária, não parece reduzir a frequência de desenvolvimento de anormalidades coronárias10.

Em pacientes sem envolvimento de coronárias após a fase aguda, geralmente 4 a 6 semanas do início da doença, a alta do acompanhamento cardiológico pode ser considerada entre 4 semanas e 12 meses, desde que os ecocardiogramas recomendados tenham sido realizados: no momento do diagnóstico, após uma semana e 4 a 6 semanas após o tratamento agudo. O ecocardiograma (ECG) de controle pós-alta deve ser considerado pois há casos de alterações coronarianas tardias10.

O objetivo deste relato é apresentar um caso de recorrência de DK, na qual a primeira manifestação ocorreu no primeiro ano de vida e recidiva aos seis anos de idade. Assim, este trabalho busca alertar sobre a possibilidade de recorrência de DK mesmo após os primeiros dois anos da fase aguda e em pacientes acima de dois anos de idade, o que vai contra os dados epidemiológicos existentes. Sua importância está na raridade de recorrência desse evento, pouco citada na literatura e a relevância do diagnóstico precoce, fundamental para minimizar os riscos de complicações cardíacas.


RELATO DE CASO

Paciente masculino, um ano de vida, natural e procedente de Londrina/PR, avaliado no dia 04 de julho de 2014 com história de febre há cinco dias, diária (média de 37,9 ºC), que evoluiu com rash cutâneo difuso, hiperemia de mão e planta dos pés e hiperemia conjuntival bilateral não exsudativa. Paciente apresentou queda no estado geral e redução da aceitação alimentar. Exames laboratoriais apresentaram Hb 11.7, Ht 34.3, leucócitos 10 500, segmentados 39%, eosinófilos 9%, linfócitos 41%, monócitos 10%, plaquetas 240 000, PCR 8.9mg/dL (valor de referência <3mg/dL), sorologias negativas para dengue, citomegalovírus, echovírus, herpes 1 e 2 e coxsackie vírus. Após hipótese diagnóstica de doença de Kawasaki, foi iniciado tratamento com imunoglobulina endovenosa 2g/kg em dose única associada ao AAS 100mg/kg/dia, com boa resposta clínica, melhora do estado geral, retorno do apetite e paciente afebril após 48 horas da administração da imunoglobulina. Após 72 horas afebril, a dose do AAS foi reduzida a 5mg/kg/dia e mantida até a exclusão de anormalidades coronarianas tardias. Realizado ECG na fase aguda, sem comprometimento coronariano. Recebeu alta hospitalar no dia 08 de julho, com seguimento ambulatorial, realizados ecocardiogramas na fase subaguda e convalescente normais e evoluindo sem complicações.

No dia 25 de dezembro de 2019, aos seis anos, pais procuram serviço pediátrico terciário de Londrina/PR, com queixa de febre há uma semana acompanhada de adenomegalia cervical dolorosa. Há dois dias da entrada, iniciou com hiperemia conjuntival, edema de mãos e exantema em região cervical e tórax anterior. Ao exame físico, o paciente apresentava-se em bom estado geral, frequência cardíaca 103bpm, frequência respiratória 25irpm, pressão arterial 100/60mmHg, bulhas cardíacas rítmicas normofonéticas em dois tempos sem sopros, ausculta pulmonar e exame físico abdominal normais. Presença de língua em morango, hiperemia conjuntival bilateral sem secreção, adenomegalia cervical bilateral 2,5cm, rash cutâneo cervical e tórax anterior discretos, edema e rubor discretos de mãos. Exames séricos complementares deste dia mostravam Hb 12%, Ht 36%, leucócitos 15 600/mm³, segmentados 93%, linfócitos 6%, monócitos 1%, plaquetas 541 000/mm³, PCR 23.6mg/dL (valor de referência <0,5), TGP 617 U/L, TGO 605 U/L, CKMB 19 U/L, CK 29 U/L, níveis normais de troponina, sorologias para toxoplasmose, citomegalovírus, Epstein-Barr vírus negativas e dengue (NS1) negativo. Foi realizado diagnóstico de doença de Kawasaki, realizado ECG, sem alterações e introduzida imunoglobulina 2g/kg e AAS 100mg/kg/dia.

Após 24 horas da administração de imunoglobulina, paciente ficou afebril, com melhora da aceitação alimentar, redução do rash cutâneo, melhora da hiperemia conjuntival e evoluiu com descamação em lábios. Após dois dias, novos picos febris e início de artralgia e edema em tornozelos e joelhos bilateralmente. No dia 29 de dezembro, foi optado por iniciar corticoterapia com metilprednisolona 30mg/kg/dia por três dias e nova infusão de imunoglobulina 2g/kg. Evoluiu com melhora da febre e artralgia após a administração dos medicamentos. No dia 3 de janeiro, iniciou descamação em extremidades, exames laboratoriais apresentavam Hb 10.2, Ht 30.7, leucócitos 13 600, segmentados 82%, linfócitos 14%, monócitos 4%, plaquetas 855.000 (plaquetose), TGP 90, TGO 67, fator reumatoide negativo, PCR 7.7 mg/dL (<0,5). Recebeu alta no dia 6 de janeiro, em uso de AAS 100mg/kg/dia que perfez 14 dias de uso, optado por manter dose elevada devido à necessidade de terapia adjuvante para remissão da febre e a plaquetose apresentada nesse segundo episódio, após reduzida a dose do AAS para 5mg/kg/dia até o término do seguimento ambulatorial. Paciente com boa evolução clínica, sem alterações ecocardiográficas nos exames de controle realizados nas fases subaguda e convalescente da doença e normalização plaquetária em quatro semanas.


DISCUSSÃO

Apesar de ser incomum a recorrência de DK, o número de crianças acometidas por tal condição não é desprezível. No entanto, há poucos estudos detalhados e conclusivos a respeito da recidiva da DK e de seus fatores associados12.

Este caso de DK é relevante para orientar outros profissionais da possibilidade de recorrência da DK. É necessário enfatizar sua raridade em comparação com os dados da literatura com relação à recorrência, visto que, além de apresentar recidiva cinco anos após o primeiro evento, os únicos fatores de risco associados à recorrência encontrados foram o sexo masculino e elevação do PCR no primeiro episódio. O paciente relatado não evoluiu com complicações coronarianas em nenhum dos episódios, o que ressalta a importância do diagnóstico e tratamento precoce como forma de minimizar complicações cardiovasculares7,10. Em ambos os episódios do caso, foi feito o reconhecimento da DK rapidamente e já instituído o tratamento com imunoglobulina, fatores que foram essenciais para que o paciente evoluísse sem nenhum envolvimento coronariano nos exames ecocardiográficos realizados no seguimento (fases aguda, subaguda e convalescença).

Dessa forma, os profissionais devem saber reconhecer os sinais clínicos clássicos da doença, assim como sua forma incompleta ou atípica. O diagnóstico do paciente em questão foi realizado utilizando-se dos critérios clínicos, exames laboratoriais e exclusão de outras causas. Embora o diagnóstico clínico de DK ainda seja um desafio, principalmente em casos de DK incompleta, é fundamental que os profissionais suspeitem de DK como diagnóstico diferencial de síndrome febril, além de levar em consideração a possibilidade de recorrência mesmo após dois anos da fase aguda, como no caso descrito1,14.

Assim, faz-se necessária a orientação de outros profissionais a respeito da possibilidade de recorrência da doença de Kawasaki, visto que, assim como no caso descrito, a doença pode recorrer anos após o evento inicial. Como o risco de complicações cardiovasculares é maior na recidiva, torna-se imprescindível o reconhecimento e tratamento precoce como forma de minimizar o dano cardíaco nesses pacientes, sendo este o principal objetivo do manejo.


FINANCIAMENTO

O estudo não recebeu financiamento.


CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses.


REFERÊNCIAS

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Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Medicina - Londrina - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Camila Arfelli Cabrera
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Rua Imac. Conceição, nº 1155, Prado Velho
Curitiba - PR. Brasil. CEP: 80215-901
E-mail: caarfelli@hotmail.com

Data de Submissão: 11/04/2021
Data de Aprovação: 14/12/2021