ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Problemática da persistência do canal arterial: um vilão ou uma alteração presente ao acaso?

Patent ductus arteroisus: a villain or a random condition in pre-term infants?

RESUMO

OBJETIVO: Analisar recém-nascidos com peso ao nascimento menor que 1500g que apresentaram complicações como displasia broncopulmonar, retinopatia da prematuridade, hemorragia peri-intraventricular, hemorragia pulmonar e enterocolite necrosante, associadas ou não à patência do canal arterial (PCA). O intuito foi estabelecer relação causal entre as complicações acima e o evento específico PCA.
MÉTODO: Pesquisa no banco de dados da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais de recém-nascidos da Maternidade Hilda Brandão da Santa Casa de Belo Horizonte/MG, entre 2014-2019. Compreendeu neonatos admitidos na maternidade com peso ao nascer entre 401 e 1500g ou idade gestacional de 22 semanas e 0 dias a 29 semanas e 6 dias.
RESULTADOS: Observou-se que, para todas as complicações, o número absoluto de casos foi consideravelmente maior na presença de PCA. Porém, em nossa amostra, não houve estatisticamente relação causal definida entre os eventos estu-dados (presença de canal arterial patente x complicações).
CONCLUSÃO: É indiscutível a presença de alguma associação entre a persistência do canal arterial às várias doenças e complicações inerentes à prematuridade. Porém, como já sugerido em outras séries de caso, neste presente estudo, não foi estabelecida relação causal entre PCA e as comorbidades estudadas, que podem ser todas (inclusive a patência do canal), apenas desdobramentos mais encontrados em um grupo de prematuros mais graves. A ausência de associação causal nos leva a refletir sobre a condução e abordagem do fecha-mento do canal arterial, optando por condutas menos intervencionistas e mais seletivas.

Palavras-chave: Canal arterial, Displasia broncopulmonar, Recém-nascido Permeabilidade do canal arterial, Enterocolite necrosante Retinopatia da prematuridade.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze newborns weighing less than 1500g at birth who developed complications like bronchopulmonary dysplasia, retinopathy of prematurity, peri-intraventricular hemorrhage, pulmo-nary hemorrhage and necrotizing enterocolitis with or without patent ductus arteriosus (PDA). The aim was to establish a causal relationship between them.
METHOD: Search in the database of the Bra-zilian Network of Neonatal Research of newborns from the Hilda Brandão Maternity Hospital at Santa Casa de Belo Horizonte - MG, between 2014-2019. It included babies who were born or were admitted to the maternity ward with birth weight between 401 and 1500g or gestational age of 22 weeks and 0 days to 29 weeks and 6 days.
RESULTS: It was observed that for all complications, the absolute num-ber of cases was considerably higher in the presence of PDA. However, in our sample, after the statis-tical analises, there was no causal relationship between the events studied (patent ductus arteriosus X complications).
CONCLUSION: The presence of some association between patent ductus arteriosus and diseases and complications inherent to prematurity is indisputable. However, as suggested in other case series, in this study, a causal relationship between PDA and the studied comorbidities was not established. It suggests that maybe all the conditions (including the patency of the canal) are just mo-re common in a group of severe preterm infants. The absence of a causal association leads us to re-flect on the PDA closure treatment, opting for less interventionist and more selective approaches.

Keywords: Ductus arteriosus, Patent, ductus Arteriosus, retinopathy of prematurity, Enterocolitis, necrotizing, Infant, premature, Bronchopulmonary dysplasia.


INTRODUÇÃO

O canal arterial (CA) representa um conduto entre a artéria pulmonar e aorta, bem desenvolvido a partir da sexta semana de gestação1. É através do CA que o sangue que chega à artéria pulmonar, já oxigenado na placenta, e é desviado para a circulação sistêmica. Essa fisiologia cardiovascular propicia a oxigenação dos tecidos em um contexto de pulmões ainda não funcionantes. Normalmente, o fechamento funcional do CA ocorre em até 48 horas no recém-nascido a termo (RNT) e em até 72h em 90% dos nascidos com mais de 30 semanas de idade gestacional2. Quando o CA permanece aberto após 72h, podemos considerar a persistência do canal arterial (PCA)2.

A PCA é uma condição mais prevalente no sexo feminino, que afeta de maneira isolada 1:2.000 a 1:5.000 nascidos vivos3,4. Sua incidência varia de acordo com a idade gestacional (IG) e com o peso de nascimento (PN). Em RNT, a incidência é de 57:100.000 nascidos vivos e comumente está associada a outras lesões cardíacas congênitas que podem ser dependentes ou não da PCA4. Já nos recém-nascidos pré-termo (RNPT), sua incidência é bem maior, chegando a 31:100 nascidos vivos com peso entre 501g e 1500g. Quanto menor a IG e o PN, maior a incidência e o tempo de permanência da sua abertura4. Nesses bebês, a PCA se apresenta como uma complicação frequente da doença da membrana hialina. Em 80% dos prematuros extremos (menores de 28 semanas), o canal se mantém aberto após o terceiro dia de vida2.

A PCA não está atrelada obrigatoriamente a repercussões clínicas. Porém o sequestro de fluxo sanguíneo sistêmico através do CA, pode gerar hipotensão arterial e consequente redução da perfusão de órgãos (canal arterial com repercussão hemodinâmica) como intestino, com potencial evolução para enterocolite necrosante (ECN)2. A piora da perfusão cerebral pode predispor à leucomalácia periventricular (LPV) e hemorragia peri-intraventricular (HPIV)2. Ademais, o aumento do fluxo sanguíneo para os pulmões pode levar à hemorragia pulmonar (HP) com repercussões ventilatórias agudas e crônicas, como a broncodisplasia pulmonar (DBP)2.

Quando falamos em repercussões clínicas, quanto me-nor o PN, maior a chance de ocorrência. Em prematuros com baixo peso ao nascer (BPN), menor que 2.500g, a incidência é de 10 a 42%. Enquanto prematuros com extremo baixo peso (EBP), menores que 1.000g, essa taxa sobe para 85%4.

A PCA e suas repercussões são, muitas vezes, associadas à elevada morbimortalidade, principalmente em se tratando de RNPT. Por essa razão, na tentativa de reduzir ou evitar consequências, adotam-se, frequentemente, medidas intervencionistas precoces. Apesar dessa conduta, ainda há controvérsias sobre a PCA ser a responsável direta pelas complicações a ela atrelada. Além disso, não há evidências suficientes de que o tratamento intervencionista, medicamentoso ou cirúrgico reduza a ocorrência dessas complicações5,6.

Baseado na controvérsia entre a associação da PCA a complicações, foi realizado o presente estudo a fim de analisar RNPT com muito baixo peso (MBP), menores de 1500g, portadores ou não de PCA que desenvolveram: DBP, retinopatia da prematuridade (ROP), HPIV, ECN e HP. Logo, o objetivo deste estudo foi analisar a relação de causa e consequência entre a PCA e tais complicações.


MÉTODOS

Foi realizado um estudo observacional, retrospectivo, transversal de 422 recém-nascidos (RN) da Maternidade Hilda Brandão da Santa Casa de Belo Horizonte/MG, no período de janeiro de 2014 a dezembro de 2019. A obtenção dos dados dos RN foi feita a partir do banco de dados da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais (RBPN), que engloba todos os bebês nascidos ou admitidos na maternidade com PN de 401 a 1500 gramas ou IG de 22 semanas e 0 dias a 29 semanas e 6 dias.

Para a análise de dados, foram selecionados RNPT de ambos os sexos com os seguintes critérios de inclusão: estar incluído na RBPN como RN nascido ou admitido na Maternidade Hilda Brandão no período de janeiro de 2014 a dezembro de 2019 e ter apresentado qualquer uma das complicações entre DBP, ROP, HPIV, HP, ECN. Foram excluídos do estudo os neonatos que evoluíram para óbito em sala de parto ou nas primeiras 12 horas após o parto e aqueles que, apesar da presença de uma das complicações estudas, não tinham informações sobre a presença ou ausência de canal arterial patente. Aplicados os critérios, 202 pacientes foram incluídos no estudo.

Os dados foram transcritos para um banco de dados no programa Excel® 2010 e duplamente conferidos pelos pesquisadores. Os dados foram codificados e exportados para o software estatístico SPSS® 20.0 for Windows. Foi realizada inicialmente análise descritiva exploratória obtendo-se o cálculo das frequências. Para testar a associação entre a variável “canal arterial patente” e as variáveis relacionadas às complicações, foi utilizado o teste Qui-quadrado de Pearson adotando-se o nível de significância de 5%. Foi considerado o valor de p<0,05 como limiar de significância estatística.

Este estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Santa Casa de Belo Horizonte, Minas Gerais, sob o registro CAAE nº 43950021.0.0000.5138.


RESULTADOS

No primeiro momento deste estudo, todos os pacientes selecionados, que compreendiam aqueles que respondiam “sim” na rede de dados para a presença de qualquer uma das seguintes complicações: DBP, ROP, HPIV, HP e ECN, foram organizados em uma tabela, de forma a evidenciar a incidência de cada complicação em nossa maternidade (Tabela 1).




HPIV e DBP foram as complicações com maior incidência registrada, 63,8% e 40,6% respectivamente. As outras complicações, ECN, ROP e HP, aparecem com incidência parecidas, que variam entre 13,4% e 17,8%. Observa-se nos resultados que 54 bebês que foram selecionados para o estudo, pois preenchiam critério pela presença de alguma das 5 complicações, não apresentavam dados sobre a presença ou ausência de DBP, o que corresponde a 26,7% dos bebês. Assim a incidência de DBP pode estar subestimada, chegando até a uma real incidência de mais de 66%, caso os RN com a informação faltante apresentassem tal condição. Como no banco de dados da RBPN a incidência de BDP é definida pelo critério “oxigênio com 36 semanas de idade corrigida”, acredita-se que a maioria dos “sem informação” compreendem altas, óbitos ou transferências antes dessa idade pós-menstrual. Porém, como o campo foi deixado em branco para esses bebês, não há como afirmar se os RNs seriam portadores ou não dessa condição. Para ROP e HPIV também temos dados faltantes, porém para uma porcentagem muito menor de crianças, o que torna o viés um pouco menos importante.

Após serem levantados por incidência de complicação, cada um dos RN foi classificado de acordo com a presença ou ausência de canal arterial patente. Nota-se que para todos os RNs da nossa maternidade no período estudado (20142019), o diagnóstico da PCA foi feito através da realização de ecocardiograma transtorácico. Nossa rotina estabelece que o exame seja feito para todo RNPT nascido com IG menor ou igual a 30 semanas; ou caso o RN evidencie possibilidade de doença cardíaca, como sopro ao exame físico. Vale ressaltar que a classificação na rede de dados apenas informa se o canal arterial era patente ou não. Não há dados correspondentes a parâmetros ecocardiográficos de cada canal ou outros dados que nos permitam classificá-los em canais sem repercussão hemodinâmica ou com repercussão hemodinâmica. A Tabela 2 mostra a incidência das complicações levantadas separadamente em RN com ou sem PCA.




Observa-se na tabela 2 que, para todas as complicações, o número absoluto de casos foi consideravelmente maior na presença de PCA. Entretanto o valor de “p” obtido pelo teste do qui-quadrado foi maior que 0,05 para todas as análises realizadas. Portanto, para essa amostra específica, não há diferenças significativas entre os grupos comparados (canal arterial patente x complicações). Assim, não há associação estatística que permita relacionar o CA com maior incidência em nossa população das complicações estudadas.


DISCUSSÃO

O CA, já bem desenvolvido desde o primeiro trimestre da gestação, é, no feto, responsável por desviar quase todo o débito cardíaco do ventrículo direito (aproximadamente 55% do débito cardíaco total) que chega às artérias pulmonares para a aorta descendente1. Com o fluxo através do canal, o sangue proveniente do ventrículo direito (parcialmente oxigenado pela circulação placentária) atinge a circulação sistêmica, com apenas uma pequena porção do volume total de sangue não desviado pelo canal circulando através dos pulmões. Pulmões ainda não oxigenados e com alta resistência vascular são então protegidos de uma sobrecarga de volume.

Ao nascimento, com o início da respiração, a saturação de oxigênio no sangue aumenta de forma significativa, iniciando uma queda abrupta da resistência ao fluxo sanguíneo pulmonar, ao mesmo tempo em que a remoção da placenta leva a um aumento da resistência sistêmica vascular1. A inversão dessas resistências provoca um “shunt” através do canal arterial agora no sentido contrário, da esquerda para a direita (o que levaria a uma sobrecarga de volume nos pulmões e no ventrículo esquerdo), porém apenas de forma transitória. Com o aumento da concentração arterial de oxigênio, que tem efeito vasoconstritor, juntamente com a diminuição da resposta de relaxamento da parede do CA às prostaglandinas (decorrente da menor sensibilidade dos receptores presentes no CA, da menor síntese e da maior depuração desse vasodilatador nos neonatos a termo)7, ocorre o fechamento funcional do CA.

No RNT, o fechamento funcional do CA inicia-se com aproximadamente 12 horas de vida, e o permanente, com 5 a 7 dias, alcançando, em alguns casos, até o 21º dia7. Como a sensibilidade do CA ao efeito constritor do oxigênio apresenta relação direta com a IG, no prematuro, o canal arterial permanece aberto por um período mais prolongado, sendo a frequência do diagnóstico de PCA proporcionalmente maior quanto mais imaturo for o RN. Outros fatores comuns ao RNPT são: maiores níveis de prostaglandina nas primeiras semanas de vida, maior sensibilidade à mesma, intercorrências como hipóxia e acidose, bem como a formação incompleta da musculatura lisa da parede do vaso que também contribuem para a PCA nesse grupo.

Na grande maioria dos RNPT, a PCA será identificada especialmente naqueles com peso de nascimento menor que 1000g. Segundo Yang et al. (2013)8, a taxa de PCA em prematuros pesando menos que 1000g está em torno de 58% e naqueles com IG menor que 30 semanas a taxa chega a 68% dos nascidos vivos. No entanto, a PCA, mesmo em um RNPT, não implica obrigatoriamente manifestações clínicas. Apesar de 90% de os RNs com PCA apresentarem sopro cardíaco4, repercussões hemodinâmicas serão identificadas em 10 a 42% dos RNs com menos de 2500g ao nascimento com PCA9, sendo a porcentagem maior quanto menor for a IG e PN.

As repercussões oriundas do não fechamento do CA decorrem do desvio de fluxo sanguíneo através dele (shunt esquerda-direita) que, como já explicado, acarreta maior fluxo pulmonar e diminuição do fluxo sistêmico. O sangue desviado da aorta para o tronco da pulmonar pelo CA pode corresponder à metade ou até 2/3 do débito cardíaco quando não ocorre o fechamento fisiológico do CA3. Com o aumento do fluxo sanguíneo nos capilares pulmonares, pode ocorrer um extravasamento, com edema pulmonar, que piora as condições ventilatórias do RN e pode levar à HP (complicação muito grave) ou DBP como repercussão crônica2. O roubo sistêmico de sangue pode gerar hipotensão arterial, reduzindo significativamente a perfusão diastólica de vários órgãos, especialmente cérebro, rins e intestino. O hipofluxo cerebral pode predispor a LPV e HPIV, complicações que acarretam alta morbidade. No intestino, há o risco de ECN e nos rins, insuficiência renal aguda (IRA). A frequência de ocorrência desses eventos associados à presença da PCA são variáveis na literatura. Em um estudo brasileiro, a síndrome do desconforto respiratório, sepse e a HPIV foram as comorbidades mais prevalentes (mais de 90%), enquanto a ECN representa pouco mais de 14%4. A ROP, uma vasculopatia proliferativa retiniana que culmina em acometimento parcial ou total da visão, também tem na literatura, entre seus fatores de risco, a presença de PCA10.

É indiscutível a associação da PCA a essas tantas comorbidades relacionadas à prematuridade já citadas aqui (ROP, ECN, HPIV, HP, DBP). Há décadas, estudos vêm mostrando a coexistência da PCA com essas complicações. No presente estudo, essa associação também é demonstrada. Se separarmos em nossa amostra apenas os RNs com alguma das comorbidades estudadas, veremos que, em todas elas, a maioria dos bebês apresentava PCA. Como exemplo, temos os RNs com HP. Dos 34 pacientes que apresentaram HP (16,8% da amostra estudada), 27 deles tiveram o diagnóstico de PCA, o que representa 79% dos bebês com essa complicação pulmonar. Entre os 82 com BDP (40,6% da amostra), 67 tinham PCA, equivalente a 81% dos broncodisplásicos menores que 1500 gramas da nossa maternidade. Parece óbvia a associação e, consequentemente, a conclusão de que o tratamento do canal levaria a uma redução de morbidade e mortalidade associada a essas complicações, porém aqui temos o início do dilema.

Apesar do comprovado aumento de morbimortalidade nos prematuros com PCA, meta-análises que demonstram a efetividade do tratamento medicamentoso do canal, não mostraram redução na morbidade neonatal, além de várias outras complicações inerentes ao tratamento11. No que se relaciona, por exemplo, ao sistema respiratório, 35 estudos randomizados foram feitos para analisar os efeitos do tratamento para o fechamento do canal. Em 2018, SANKAR et al. (2019)11, mostraram que desses 35 ensaios, 3 mostraram menor tempo de ventilador e oxigênio em RNs tratados com indometacina, 22 mostraram nenhuma diferença no uso de ventilador em tratados e não tratados e 7 mostraram maior necessidade de oxigênio, surfactante e mais tempo de ventilação mecânica em prematuros tratados. Uma base de dados americana que abrange 13.853 bebês com menos de 1500 gramas ao nascimento (Pediatric Hospital Information System Database -PHIS), em um estudo retrospectivo, analisou os desfechos após uma taxa de diminuição de 11% ao ano em relação a 2005 para 2014 nas intervenções de fechamento para PCA. Com menos intervenções, houve aumentos nas taxas de DBP, LPV, ROP e IRA, porém, apesar da maior taxa de complicações, houve aumento na sobrevida. Uma outra base de dados com 61.520 prematuros nascidos entre 23 e 30 semanas de gestação, também mostrou aumento na sobrevida após redução nas taxas de tratamento do CA, sem aumento nas taxas de ECN, ROP e HPIV, com aumento apenas das taxas de DBP nos nascidos entre 23 e 24 semanas11.

A partir de todas essas informações, inicia-se a reflexão mais importante acerca da problemática do CA, corroborada pelo resultado da análise da população deste presente estudo. A associação da PCA a várias comorbidades graves da prematuridade não necessariamente quer dizer que a PCA seja a causa desses desdobramentos. A presença de ECN, DBP, HPIV, HP e ROP estão relacionadas a vários outros fatores de risco inerentes ao prematuro. Assim, um RNPT com PCA pode ter vários gatilhos para o desenvolvimento, por exemplo, de ECN, como imaturidade intestinal, sepse, jejum prolongado, privação de leite materno, independentes da presença ou não da PCA. Assim como na ECN e também nas outras morbidades da prematuridade que possuem diferentes fatores de risco e causas, o CA será quase sempre associado pela sua alta prevalência nos RNs “mais graves” (aqueles com menor IG, menor PN), porém nem sempre será o responsável. As evidências de piores desfechos com o tratamento agressivo do CA, principalmente o tratamento cirúrgico precoce, com 50% de chance de desenvolvimento de “síndrome cardíaca pós-ligação”, levando ao aumento de NEC e DBP e mortalidade de 33%, reforçam esse raciocínio2.

Apesar de toda a discussão que parece interminável, fica bem definido atualmente que a abordagem precoce e generalizada do canal arterial, seja através de tratamento medicamentoso ou cirúrgico não leva a melhores desfechos, o que provavelmente é explicado pela ausência de relação causal aqui demonstrada. Existe, porém, um grupo de pacientes, como os prematuros mais extremos (menores de 26 semanas) ou com distúrbios hemodinâmicos importantes, especialmente após a segunda semana de vida, que se beneficiariam do fechamento do canal11. Além disso, achados ecocardiográficos como diâmetro do canal, velocidade máxima de fluxo transductal da esquerda para direita, débito cardíaco do ventrículo esquerdo, fluxo mitral durante a contração atrial já foram relacionados a identificação de pacientes com maiores chances de mortalidade e desenvolvimento de doença pulmonar crônica12. O manejo ideal do CA no prematuro passa a ser então a seleção cuidadosa dos canais arteriais hemodinamicamente significativos, em pré-termos extremos, associados a achados clínicos relevantes, ainda que essa seleção seja difícil e muitas vezes pareça subjetiva.

Determinada a necessidade de intervenção, a abordagem conta com medidas conservadoras como controle da oxigenação, com alvo de saturação entre 90-95%; ajuste de PEEP (pressão positiva expiratória final) na ventilação mecânica; controle da pressão arterial evitando-se hipertensão e controle da oferta hídrica de acordo com o sódio e balanço hídrico2. O tratamento farmacológico pode ser feito com ibuprofeno ou paracetamol, ambos com eficácia comparável e efeitos colaterais diferentes que devem ser analisados em cada caso. Na falha do tratamento farmacológico ou impossibilidade de realizá-lo, deve-se considerar o tratamento cirúrgico.


CONCLUSÃO

Desde os primeiros estudos acerca do CA, várias morbidades foram associadas à PCA e diferentes abordagens e tratamentos propostos. Com séries e relatos que associavam eventos como HP, hipotensão arterial refratária, HPIV, DBP e ECN com a PCA, a estrutura assumiu o posto de “vilã” dentro das unidades de terapia intensiva neonatal (UTIN). O raciocínio parece óbvio. Se o canal estaria relacionado a maiores taxas de morbimortalidade, a conduta claramente seria o fechamento de todos os canais. No entanto, as evidências ao longo dos anos passaram a mostrar que, após o fechamento, a mortalidade não era necessariamente reduzida e, ao contrário do que se esperava, muitos resultados foram piores, levando ao aumento de ECN, DBP e outras complicações relacionadas ao neurodesenvolvimento.

Usando as evidências já existentes na literatura, juntamente com resultados como na nossa série de pacientes, onde a relação de causa entre PCA e várias complicações perinatais não foi estabelecida, fica cada vez mais evidente a necessidade de uma abordagem mais criteriosa do CA. O tratamento agressivo, precoce e generalizado, mostra-se hoje em dia inadequado.

Seguindo essa linha de raciocínio, em 2015, El-Khuffash et al. (2015)12 apresentaram um estudo multicêntrico com 141 pré-termos com PCA, no qual pela primeira vez um score foi proposto de forma a determinar quais RNs teriam maior probabilidade de óbito e doença pulmonar crônica e, consequentemente, se se beneficiariam do fechamento do canal. Os resultados, obtidos através de parâmetros ecocardiográficos, mostraram uma sensibilidade de 92% e especificidade de 87% para a identificação desses bebês, resultados surpreendentes e que poderiam ajudar muito na mudança de paradigma acerca do fechamento do canal.

Novos estudos que estabeleçam e validem critérios ou scores e o início de sua aplicação no dia a dia dos hospitais no momento da decisão terapêutica de fechamento do CA devem ser encorajados. A identificação criteriosa do grupo de RNs que se beneficiariam do fechamento do CA com impactos positivos em seu desenvolvimento e com menor risco de efeitos adversos deve ser hoje o objetivo dos neonatologistas. Sem esse grupo bem definido, a abordagem conservadora da PCA com o objetivo de minimizar o impacto das repercussões do canal, sem necessariamente alcançar seu fechamento, deve ser preferido.


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Data de Submissão: 20/12/2021
Data de Aprovação: 30/01/2022