ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Sequelas do neurodesenvolvimento encontradas em crianças em tratamento para doenças hemato-oncológicas

Neurodevelopmental sequelae in children treated for blood cancers

RESUMO

INTRODUÇÃO: O câncer pediátrico é a segunda maior causa de hospitalização de crianças no Brasil, sendo o principal responsável pela perda de potenciais anos de vida. Com o avanço dos estudos a respeito do tema, há uma gama de diferentes terapias utilizadas, as quais, apesar de possibilitarem melhora no prognóstico, não estão isentas de efeitos colaterais.
OBJETIVO: O atual estudo tem como objetivo correlacionar os impactos gerados no neurodesenvolvimento de pacientes em tratamento neoplásico atendidos em um hospital pediátrico terciário em Curitiba/PR. Como objetivo secundário, realizar análise epidemiológica de crianças em tratamento hemato-oncológico em hospital de referência, na cidade de Curitiba.
METODOLOGIA: Foram selecionados 156 prontuários do serviço de Hemato-Oncologia nesse hospital de referência na cidade de Curitiba/PR. Posteriormente, realizou-se análise descritiva dos dados, apresentados em números absolutos e em frequência, seguida de correlações entre as sequelas do neurodesenvolvimento encontradas e as doenças oncológicas diagnosticadas, juntamente com as respectivas terapias utilizadas.
RESULTADOS: A leucemia linfoide aguda (LLA) correspondeu à neoplasia mais predominantemente encontrada, com 52,6% dos casos, seguida dos tumores do sistema nervoso central (SNC) e da leucemia mieloide aguda (LMA). Os principais efeitos colaterais encontrados foram: ansiedade, depressão, agressividade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), paralisia cerebral, déficits auditivos, visuais, motores e de linguagem.
CONCLUSÃO: apesar da importante redução da morbimortalidade, as terapias antineoplásicas utilizadas são capazes de gerar sequelas precoces e tardias nos pacientes em tratamento.

Palavras-chave: Transtornos do neurodesenvolvimento, Hematologia, Oncologia, Pediatria.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Pediatric cancer is the second cause of hospitalization of children in Brazil and the primary reason for potential years of life lost. A wide range of therapies have been discussed in studies on the subject. Although they have improved patient outcomes, they are not free of side effects.
OBJECTIVE: This study analyzes the neurodevelopmental impacts of cancer treatment on patients seen at a tertiary pediatric hospital in Curitiba/PR. It also presents an epidemiological analysis of children undergoing treatment for blood cancers at a referral hospital in Curitiba/PR.
METHOD: The records of 156 patients seen in the Hematologic Oncology Department of a referral hospital in the city of Curitiba/PR were selected. A descriptive analysis of the data was carried out, which were presented in absolute numbers and proportions, followed by correlations between the identified neurodevelopmental sequelae and the cancer types, together with the respective therapies prescribed.
RESULTS: Acute lymphoblastic leukemia was the most prevalent type of cancer, with 52.6% of cases, followed by central nervous system tumors and acute myeloid leukemia. The main side effects were anxiety; depression; aggressiveness; attention deficit hyperactivity disorder (ADHD); cerebral palsy; auditory, visual, motor and speech impairment.
CONCLUSION: Despite the significant reduction in morbidity and mortality, cancer therapies may cause early and late sequelae in patients undergoing treatment.

Keywords: Neurodevelopmental Disorders, Hematology, Medical Oncology, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A cada ano, 200.000 crianças são diagnosticadas com câncer no mundo. Apenas em 2018, houve 12.500 novos casos de câncer pediátrico no Brasil, sendo esta, a segunda maior causa de hospitalização de infantes no país, com 12% dos casos, perdendo apenas para desnutrição, que representa 22% destes. As neoplasias pediátricas são a segunda causa de óbitos na infância, sendo responsáveis pela maior perda de potenciais anos de vida. No Brasil e internacionalmente, os tumores pediátricos mais comuns são as leucemias, seguidas dos tumores de sistema nervoso central (SNC) e linfomas1-3.

Com o contínuo avanço no manejo e tratamento das neoplasias pediátricas, essas crianças, que antes não possuíam muita perspectiva demelhora, hoje possuem melhora no prognóstico da doença enfrentada e prolongamento dos anos vividos. Com isso, surge a maior preocupação quanto aos diferentes efeitos colaterais gerados pelas terapias mais comumente utilizadas, que impactam diretamente na qualidade de vida dos infantes4,5.

O câncer infantojuvenil caracteriza-se por curtos períodos de latência, maior agressividade e crescimento acelerado quando comparado à doença neoplásica em adultos. Em contrapartida, respondem melhor ao tratamento e são considerados de melhor prognóstico2.

Na maioria dos casos, o tratamento consiste em ressecção cirúrgica, quimioterapia e/ou radioterapia. A quimioterapia antineoplásica baseia-se na administração de fármacos potentes, capazes de promover a destruição de células cancerígenas sistemicamente. Porém as drogas utilizadas não possuem especificidade celular, podendo, assim, atingir e destruir células saudáveis de todo o corpo, causando toxicidade e diversos efeitos colaterais2,6.

Dada a agressividade dos fármacos, muitos sobreviventes do câncer infantil têm alto risco de morbimortalidade tardia. A longa exposição a essas drogas pode, de fato, promover a cura do câncer e melhorar o prognóstico dos pacientes, entretanto, este mesmo tratamento pode trazer diferentes sequelas no longo prazo, as quais podem se manifestar durante a terapia, de forma precoce, ou vários anos após o término desta. Alguns desses efeitos colaterais são comprometimento do crescimento e desenvolvimento, disfunções neurocognitivas, cardiopulmonares, endócrinas, metabólicas, renais, gastrointestinais, dentre outras. Cerca de 70% das crianças que terminam o tratamento irão apresentar algum tipo de efeito colateral tardio, sendo que 30% serão de maior gravidade ou até mesmo fatal5,7.

Diferentes fatores podem influenciar no momento da aparição desses efeitos colaterais, como o tipo de terapia utilizada e a idade da criança no momento da exposição. Como exemplo, temos alguns efeitos relacionados ao uso da radioterapia, que vão se manifestando ao longo da vida do paciente, como alterações no crescimento, hipotiroidismo, dentre outras disfunções endocrinológicas. Outros exemplos são a insuficiência renal, cardiomiopatia, perda de audição, que configuram algumas das manifestações tardias da quimioterapia8.

Importante ressaltar que, além das sequelas diretas geradas pela terapia oncológica, existem diversos fatores relacionados ao processo do adoecimento que influenciam negativamente na vida infantil, como a restrição de sua ida à escola, seja tanto pelas limitações físicas, cognitivas e emocionais quanto pela frequência de internações imprevisíveis e prolongadas, as mudanças e adaptações na rotina e convivência familiar e as dificuldades socioeconômicas, por vezes enfrentadas. Desse modo, faz-se necessária a implementação da educação no ambiente hospitalar e de uma equipe multiprofissional, de forma estruturada e adequada à realidade do infante, visando diminuir os impactos gerados pelo tratamento no desenvolvimento global da criança e intermediando a futura inserção desta na escola e na sociedade3.


OBJETIVOS

Correlacionar os impactos no neurodesenvolvimento infantil gerados pelos tratamentos hemato-oncológicos com as terapias utilizadas e os tipos de neoplasias diagnosticadas. Análise epidemiológica de prontuários de crianças em tratamento hemato-oncológico em hospital de referência, na cidade de Curitiba, através dos prontuários eletrônicos dos pacientes.


MÉTODO

Estudo observacional retrospectivo realizado no período de 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2020 que analisou prontuários de pacientes atendidos no Serviço de Hematologia-Oncologia em hospital pediátrico terciário na cidade de Curitiba. Caracteriza-se por se tratar de um hospital de alta complexidade, sendo o serviço de oncologia/ hematologia de referência para diagnóstico e tratamento de doenças hemato-oncológicas. A composição da equipe nessa Unidade conta com a participação de médicos hematologistas/ oncologistas, médicos residentes, além de uma equipe multidisciplinar nas áreas da Pedagogia, Psicologia, Serviço Social e demais especialidades médicas.

Utilizou-se como critério de inclusão os pacientes que ficaram internados na enfermaria de Hematologia/ Oncologia do referido hospital, no período de 01/01/2019 a 31/12/2020, e que se encontravam na faixa etária de 5 a 15 anos. Essa faixa etária foi escolhida levando em consideração o segmento pedagógico hospitalar realizado por profissionais habilitadas e inseridas no Programa de Escolarização Hospitalar.

Houve a exclusão daqueles prontuários cujos dados encontravam-se incompletos e/ou sem parecer das psicopedagogas, no que se refere ao desenvolvimento escolar das crianças analisadas. Além disso, também foram excluídos aqueles prontuários de crianças que não realizaram nenhum tipo de tratamento oncológico, se encontravam em cuidados paliativos ou faleceram em um intervalo de tempo menor do que 6 meses. O estudo foiaprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), sob número 30779120.0.0000.0097.

Do total de226 prontuários analisados,com basenos critérios de inclusão e exclusão, a amostra do estudo ficou constituída de 156 pacientes.

Os dados dos pacientes foram obtidos da análise do prontuário eletrônico, MV e MV PEP, com preenchimento de planilha previamente estabelecida pelos autores, para posterior análise dos dados. As variáveis analisadas foram: sexo, procedência, diagnóstico, tratamento, neurodesenvolvimento, desenvolvimento escolar e óbito. Dessa forma, também foram obtidos dados de incidência dos déficits auditivos, visuais, motores, linguagem e sintomas neuropsiquiátricos apresentados. A análise do prontuário envolveu tanto o período de internação como o de segmento ambulatorial dos pacientes.

Baseado nos dados coletados foram feitas relações entre os tipos de neoplasias associadas aos tratamentos pertinentes com possíveis sequelas do neurodesenvolvimento e déficits na performance escolar.

Os resultados foram apresentados em números absolutos e em frequência, a partir da análise descritiva dos dados obtidos, seguido daaplicação do testequi-quadrado e teste exato de Fisher, por meio do software SPSS 17.0, para comparação entre as variáveis qualitativas, com adoção de significância de 95% (p<0,05).


RESULTADOS

Ao analisarmos os dados obtidos no estudo, encontramos uma maior proporção de pacientes do sexo masculino, os quais representam 57,1% (n=89) da amostra total, contrapondo com 42,9% (n=67) de pacientes do sexo feminino. No que se refere à procedência desses pacientes, observamos que 37,8% (n=59) são de cidades do interior do Paraná, 28,8% (n=45) são de Curitiba, 26,9% (n=42) de cidades na Região Metropolitana de Curitiba e 6,4% (n=10) de cidades em demais estados do país.

Quanto às neoplasias diagnosticadas, a leucemia linfoide aguda (LLA) é a de maior predominância, englobando 82 dos pacientes diagnosticados, seguida de 45 de pacientes com diferentes tipos de tumores do sistema nervoso central (SNC) e 12 com leucemia mieloide aguda (LMA). As demais neoplasias encontradas representam uma parcela menor dos diagnósticos obtidos. Dados apresentados, em porcentagens, no Gráfico 1.

As principais sequelas do neurodesenvolvimento diagnosticadas foram descritas no Gráfico 2 a seguir, o qual demonstra o número de casos absolutos encontrados e proporção em relação à amostra total de pacientes.

Em nossa casuística há 32,1%(n=50) das crianças estudadas queapresentam alguma sequela do neurodesenvolvimento,sendo que os déficits motores, auditivos e de linguagem são igualmente prevalentes, representando, cada um, 9% (n=14) da amostra total.

Quanto ao neurodesenvolvimento, encontramos que 21,4% (n=3)das crianças com hepatoblastoma apresentaram algum tipo de déficit auditivo e/ou de linguagem (p=0,01). Em relação à LLA, principal tipo de neoplasia encontrada na amostra estudada, foi possível inferir que21,4 % desses pacientes (n=3) apresentaram déficits motores, com p=0,022 e 7,1% (n=1) apresentaram déficits auditivos e/ou de linguagem, com p< 0,0001. Além disso, observou-se que 71,4% (n=5) das crianças diagnosticadas com tumores do SNC apresentaram sinais deagressividadeou detranstorno dedéficit de atenção e hiperatividade(TDAH) (p=0,022) emais da metade desses pacientes (n=8/ 57,1%) demonstraramalgumtipo dedéficit auditivo e de linguagem, com p=0,026. Um grande número desses mesmos pacientes com tumores do SNC, representando também 71,4% (n=10) da amostra, apresentaram déficits motores, com p=0,001. Portanto,dentreas alterações do neurodesenvolvimento documentadas na amostra total, foi possível correlacionar com os tipos de neoplasia apenas os déficits auditivos e/ou de linguagem, déficits motores, TDAH e agressividade. Não houve significância estatística aocorrelacionarmos as sequelas: ansiedade/depressão, déficits visuais e paralisia cerebral. As demais correlações podem ser observadas nas Tabelas 1 e 2, a seguir.







Foram descritos 12 principais tipos de tratamento para a abordagem destes pacientes, conforme observado no Gráfico 3.

No que se refere à análise de correlação entre os tipos de tratamentos oncológicos e as diferentes sequelas do neurodesenvolvimento diagnosticadas, foram encontradas significâncias estatísticas em alguns casos (Tabela 3 e 4). Dentre as sequelas listadas, as mais correlacionadas foram os déficits auditivos e de linguagem. Estes foram encontrados em 71,4% (n=10) dos pacientes tratados com quimioterapia (p<0,0001), em 64,3% (n=9) dos pacientes que realizaram radioterapia (p=0,002), em 57,1% (n=8) daqueles submetidos a algum tipo de procedimento cirúrgico (p=0,001) e em 21,4% (n=3) das crianças tratadas com cisplatina (p=0,025). De acordo com a análisefeita,70% (n=7) dos pacientes tratados conforme o protocolo do Grupo Brasileiro para Tratamento de Leucemia







Linfoide Aguda (GBTLI) apresentaram ansiedadeou depressão, com p=0,038, 14,3% (n=2) das crianças tratadas com Baby Brain foram diagnosticadas com déficits motores, com p=0,041 e 57,1%(n=4) dos pacientes submetidos a algum tipo de cirurgia apresentaram sintomas de agressividade ou TDAH.

No que tange àcorrelação dos diferentes tipos deneoplasia encontradas emcada faixa etária,não houve significância relatada.

Do mesmo modo, ao correlacionarmos os tipos de tumores com o sexo dos pacientes e a proporção de óbitos, não encontramos dados relevantes, com os respectivos valores de significância, como pode ser observado na Tabela 5.




Um total de 20 dos pacientes foi a óbito, os quais representaram 12,8% da amostra total. No que diz respeito ao desenvolvimento escolar, 83,3% (n=130) das crianças estudadas não se mostraram prejudicadas pela doença e tratamento, enquanto 16,7%(n=26) apresentaramalgumtipo dedéficitdeaprendizagem. Na análise dos diferentes tipos de tumor e de tratamentos não foi encontrado valor significativo que justifique relação direta com possíveis déficits de aprendizagem.

Ao correlacionarmos as faixas etárias e as sequelas do neurodesenvolvimento e de aprendizagem encontradas, pode-se perceber que 50% (n=13) das crianças entre 6 e 10 anos apresentaram déficit de aprendizagem (p=0,031) e 80% (n=8) das crianças entre 11 e 16 anos foram diagnosticadas com ansiedade ou depressão (p=0,001).

De acordo com os dados obtidos, não houve diferenças relevantes entre o desenvolvimento escolar e a procedência das crianças do estudo.


DISCUSSÃO

Em concordância com o já demonstrado pela literatura, a LLA foi a neoplasia mais frequentemente diagnosticada, englobando 52,6% dos pacientes estudados. No que diz respeito ao seu tratamento, nota-se uma drástica evolução nos últimos anos, tendo a quimioterapia intratecal profilática como um dos principais responsáveis pelo aumento da sobrevida dos pacientes diagnosticados. Entretanto, mesmo com todos os benefícios de redução demortalidade, pode-seperceber aumento dos efeitos colaterais4.

Observou-se, no atual estudo, influência das terapias utilizadas no tratamento da LLA no desenvolvimento futuro de sequelas no neurodesenvolvimento como neuropatias, plegias e/ ou déficits motores, o queestá deacordo com a literatura. Diversos estudos buscaram avaliaro impacto da quimioterapia intratecal na qualidade de vida, no longo prazo, dos pacientes diagnosticados com LLA. Em metanálise de 30 estudos, os autores demonstraram alterações da função intelectual, com declínio na inteligência e desempenho escolar, associados a casos de deficiência intelectual, com necessidade de educação especial. Já os trabalhos mais recentes, que buscam avaliar o paciente de forma mais completa e integral, encontraram como principal efeito colateral a queda da performance de atenção focal, mais especificamente a atenção focal de execução (agir com base na informação adquirida) e a de decodificação/interpretação (compreender e interpretar a informação adquirida)4,9.

No presente estudo, também encontramos associação entre o diagnóstico de tumores do SNC e posterior desenvolvimento de TDAH, resultados semelhantes são demonstrados por Krull et al. (2018)10 e Butler et al. (2006)4. Segundo a revisão realizada pelo Butler, de modo geral, as sequelas mais comumente encontradas em pacientes diagnosticados com tumores do SNC foram déficits de atenção e de memória e alterações na velocidade de processamento de informações4.

Em relatório do “Childhood Cancer Survivor Study”(CCSS), mencionam ainda a idade mais jovem no diagnóstico como fator de risco para os desfechos neurocognitivos citados9. Entretanto, neste estudo, não encontramos valor estatístico significativo com a amostra representada. Além disso, são citados como fatores de risco a dose de irradiação craniana mais alta, o maior volume cerebral irradiado e o maior tempo de tratamento10. Os problemas neurocognitivos observados parecem estar relacionados ao processo de desmielinização e necrose da substância branca. Já sendo bem documentada a relação entre volume de substância branca do lobo pré-frontal/frontal e do giro do cíngulo, e a capacidade de atenção4.

Os trabalhos iniciais sobre os efeitos advindos do tratamento de tumores do SNC demonstravam que o tratamento está frequentemente associado a declínios da função intelectual e capacidade acadêmica. No entanto, tais estudos utilizaram parâmetros de avaliação com menor sensibilidade que os estudos mais recentes4. Neste estudo, não houve correlação estatística entre os tratamentos oferecidos e o desenvolvimento escolar dos pacientes. Esse dado pode ser justificado pela falta de padronização de testes que avaliam a performance escolar das crianças, o que torna esse dado muito subjetivo.

No presente estudo, os pacientes com tumores do SNC também apresentaram neuropatias, plegias ou déficits motores. Segundo Butler et al. (2006)4, e como já mencionado acima, essas complicações estão principalmente associadas à quimioterapia profilática intratecal com metotrexate realizada na grande maioria dos pacientes com LLA e grande responsável pelo aumento da sobrevida observado nos últimos anos4.

Não diferente do que o discorrido até aqui, em relatório do CCSS foi evidenciada associação entre a realização de radioterapia intracraniana e o uso de corticosteroides com a presença de comprometimento neurocognitivo. O estudo avaliou principalmente a eficiência no cumprimento de tarefas e a capacidade de regulação emocional e de memorização. Com isso, encontrou que 22,8% dos pacientes pós-tratamento oncológicos relataram problemas com o cumprimento de tarefas, 12,4% com a memorização, e 12,3% com a capacidade de regulação emocional9.

Em se tratando de efeitos neuropsiquiátricos, o presente estudo evidenciou correlação entre a idade de diagnóstico e uma maior ocorrência de depressão e distúrbios da ansiedade, sendo a frequência maior na faixa etária dos 11 a 16 anos (incidência de 80%). Fato que condiz com o encontrado em estudo de Bhatia (2009)7, que, através de relatos dos pais das crianças estudadas, encontrou relação significativa com depressão, distúrbios de comportamento e problemas acadêmicos. A partir da revisão do “Children’s Oncology Group” (COG), também foi encontrada uma forte relação do desenvolvimento de transtorno da ansiedade com a idade de diagnóstico, sendo a incidência maior na adolescência. Essa relação entre os transtornos de humor e o diagnóstico de LLA pode explicar o dado, encontrado neste trabalho, que evidencia a relação entre crianças tratadas com o protocolo GBTLI e que mais tarde desenvolveram transtornos de ansiedade e depressão, visto que esse é o protocolo de escolha para os casos de LLA no Brasil, e é muito similar ao encontrado nos principais países7,11.

A revisão realizada pelo COG, com o objetivo de avaliar os efeitos psicológicos tardios dos diversos cânceres pediátricos, demonstra que a maioria das crianças apresentaram poucos problemas psicossociais ao longo do tempo. Todavia o pequeno grupo que desenvolveu efeitos colaterais experienciou maiores taxas de suicídio, ansiedade, estresse pós-traumático e estresse generalizado, tudo isso associado à forma de percepção de suas limitações físicas e dores relacionadas ao câncer11. Em nosso estudo, não englobamos a pesquisa referente à incidência de suicídio ou de estresse pós-traumático, não havendo dados suficientes para a correlação.

Outro achado em nosso estudo foi a importante correlação entre déficit auditivo em pacientes que foram submetidos à quimioterapia (QT), radioterapia (RT) e/ou ressecção cirúrgica. Sabe-se que estas são as principais modalidades de tratamento para tumores cerebrais, e essas abordagens têm como efeito adverso comum a perda auditiva neurossensorial6. Esse fato pode justificar a presença significativa de déficit auditivo e de lingua-gem em pacientes diagnosticados com tumores do SNC e em pacientes que foram submetidos ao tratamento com cisplatina, presentes neste estudo.

A cisplatina é um eficiente agente quimioterápico antineoplásico, porém altamente ototóxico, usado intensamente na terapia de tumores cerebrais. A literatura indica que mais da metade dos pacientes submetidos ao tratamento com cisplatina sofrem perda auditiva. No presente estudo, essa taxa foi menor, atingindo 21,4% dos pacientes. A perda auditiva induzida pela cisplatina é caracterizada por dano neurossensorial gradual e permanente, podendo iniciar com perdas auditivas de alta frequência, e progredir para as perdas de baixa frequência. As baixas frequências estão muito relacionadas com a fala, portanto, quando atingidas, podem ocasionar distúrbios de linguagem, atraso do desenvolvimento da fala e dificuldades de aprendizagem, associados à piora do desempenho acadêmico e da qualidade de vida12-14.

Em relação ao déficit auditivo e de linguagem associado à RT, o procedimento acometeu 64,3% dos pacientes submetidos, semelhante aos dados da literatura, que indicam uma taxa de 0 a 54%. O risco e a gravidade da ototoxicidade da RT aumentam conformea intensidadeda radiação ea proximidadeao osso temporal6.

Em nosso estudo, observamos que houve uma importante relação entre os pacientes diagnosticados com hepatoblastoma e que obtiveramperda auditiva. Essa associação podeser justificada pelo tratamento do hepatoblastoma ser a base de cisplatina15.

Sabemos que as neoplasias na faixa etária pediátrica correspondem a um grupo de doenças que confere grande morbimortalidade e, consequentemente, prejuízo na qualidade de vida dos pacientes e familiares. Há um constante avanço na quantidade e eficácia de terapias voltadas para essa área, sendo possível, cada vez mais, prolongar a expectativa de vida dos infantes diagnosticados. Entretanto pode-se ver que os tratamentos utilizados não estão isentos de efeitos colaterais, sejam esses no curto ou longo prazo.

Quando se trata do desenvolvimento escolar, foram encontradas dificuldades na coleta de dados, visto que não existe uma forma padronizada de avaliação e registro em prontuários. Isso pode justificar o fato de termos encontrado que 83,3% das crianças não possuem alterações no desenvolvimento escolar. Enfatizamos, portanto, a necessidade de ferramentas que possibilitem essa análise de forma objetiva e, dessa forma, beneficiem futuros estudos e em prol do melhor manejo desses pacientes.


CONCLUSÃO

A LLA foi a doença oncológica mais prevalente desse grupo, correspondendo a mais da metade da amostra estudada, seguida dos tumores do SNC que representaram quase um terço dos pacientes totais. No que diz respeito aos efeitos colaterais gerados sobre o neurodesenvolvimentoinfantil, encontramos que 32,1% das crianças apresentavam algum tipo de sequela, dentre elas estavam: ansiedade, depressão, agressividade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), paralisia cerebral, déficits auditivos, visuais, motores e de linguagem.

Dessas sequelas, pode-se inferir que algumas delas estavam diretamente relacionadas ao tipo de neoplasia diagnosticada, como déficits auditivos, de linguagem e motores encontrados nos pacientes com LLA, assim como sinais de agressividade, TDAH e déficits auditivos, de linguagem e motores encontrados nos pacientes com tumores do SNC.

Durante a análise das terapias empregadas, houve significância estatística ao correlacionarmos a presença de déficits auditivos e/ou de linguagem com a quimioterapia, radioterapia e cirurgia, sendo esses encontrados em 71,4%, 64,3% e 57,1% dos pacientes que realizaram cada um desses tratamentos, respectivamente. Ademais, foi possível inferir que 14,3% das crianças tratadas com Baby Brain apresentaram déficits motores, 70% daquelas que utilizaram o protocolo GBTLI como forma de tratamento demonstraram sinais de ansiedade e/ou depressão, e 57,1% dos infantes submetidos a alguma cirurgia evoluíram com agressividade ou TDAH.

Portanto, conclui-se que os diversos tratamentos antineo plásicos empregados não são isentos de efeitos colaterais, sendo passíveis de gerar alterações no neurodesenvolvimento global da criança ao longo do tempo. Essas se somam às sequelas já intrínsecas ao processo de adoecimento em si. Desse modo, as terapias aplicadas, assim como o processo de evolução das doenças em si, merecem ser estudados com maior profundidade, visando o melhor preparo de profissionais de saúde que atuam na área, para que haja adequado manejo das dificuldades enfrentadas pelos infantes e familiares.


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1. Universidade Positivo, Doutorandos - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Médica no serviço de hemato-oncologia - Curitiba - Paraná - Brasil
3. Hospital Pequeno Príncipe, Preceptora da Residência da UTI neonatal - Curitiba - Paraná - Brasil
4. Universidade Positivo, Professora do curso de Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Rafael Schlossmacher
Universidade Positivo
Cidade Industrial de Curitiba
Curitiba - PR, Brasil. CEP: 81290-000
E-mail: rafaelschloss@gmail.com

Data de Submissão: 06/11/2021
Data de Aprovação: 27/03/2022