ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Transtorno do espectro autista e diagnóstico diferencial do atraso de fala na infância: uma revisão da literatura

Autism spectrum disorders and differential diagnosis of speech delays in childhood: a literature review

RESUMO

OBJETIVO: O presente artigo busca descrever os principais diagnósticos diferenciais do atraso de fala na infância, com ênfase nos critérios diagnósticos atualizados para diferenciar entre transtornos do neurodesenvolvimento, como o Transtorno do Espectro Autista, e as demais possíveis etiologias.
MÉTODOS: Foi realizada revisão não sistemática da literatura, utilizando os critérios e definições diagnósticas atualizadas.
RESULTADOS: O atraso do desenvolvimento da linguagem é sintoma comum na faixa etária pediátrica, podendo ser encontrado em crianças com transtornos do neurodesenvolvimento, sendo frequentemente associada ao Transtorno do Espectro Autista. No entanto, há uma gama de diagnósticos alternativos que podem cursar com atraso da fala e que devem ser considerados no diagnóstico diferencial, incluindo outros transtornos do neurodesenvolvimento, deficiência auditiva e os transtornos da linguagem.
CONCLUSÃO: O pediatra possui papel importante na avaliação da criança com atraso da fala, sua investigação e direcionamento do manejo. Para tanto, deve estar familiarizado com os marcos esperados do neurodesenvolvimento, sinais de alerta para desvios do desenvolvimento incluindo os de linguagem, e critérios diagnósticos dos transtornos mais prevalentes.

Palavras-chave: Deficiências do desenvolvimento, Transtornos do desenvolvimento da linguagem, Transtorno do espectro autista.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This article describes the main conditions in the differential diagnosis of speech delay in childhood, with emphasis on the updated diagnostic criteria to differentiate between neurodevelopmental disorders, such as autism spectrum disorders, and other possible conditions.
METHODS: This non-systematic review of the literature was performed based on updated diagnostic criteria and definitions.
RESULTS: Speech delays are a common symptom in children with neurodevelopmental disorders, often associated with autism spectrum disorders. However, there is a range of conditions in which speech delay is a symptom that must be considered in differential diagnosis, including other neurodevelopmental disorders, hearing loss, and language disorders.
CONCLUSION: Pediatricians play an important role in the assessment, investigation, and management of children with speech delays. Therefore, they should be familiar with the expected neurodevelopmental milestones, the warning signs of developmental disorders including language disorders, and the diagnostic criteria for the most prevalent conditions.

Keywords: Developmental disabilities, Language development disorders, Autism spectrum disorder.


INTRODUÇÃO

A fala é uma ferramenta essencial da comunicação, que permite a interação com os demais e expressar pensamentos e sentimentos. O atraso ou o não desenvolvimento da fala é denominador comum a diversos transtornos do neurodesenvolvimento e de linguagem, devendo, portanto, ser interpretado em um contexto de presença ou ausência de intenção comunicativa, comunicação não verbal (atender ao chamado pelo nome, apontar para mostrar ou solicitar algo), comunicação receptiva (compreensão do que lhe é dito e solicitado), e presença de linguagem não funcional. O atraso da linguagem pode estar presente em quadros de transtorno do espectro autista (TEA), mas também pode ocorrer no contexto de transtorno específico da fala, atraso global do desenvolvimento, déficit de atenção (TDAH), apraxia da fala, mutismo seletivo, síndrome de Rett ou de deficiência auditiva. Dessa forma, o atraso da linguagem não deve ser considerado isoladamente na avaliação de crianças com desvio do neurodesenvolvimento, sendo imprescindível o conhecimento dos critérios diagnósticos dos diferentes diagnósticos diferenciais para adequada avaliação e encaminhamento da criança.


OBJETIVO

Esta revisão de literatura tem por objetivo revisar os principais diagnósticos diferenciais de atraso da linguagem na infância, com foco no transtorno do espectro autista, demais transtornos do neurodesenvolvimento, e transtornos específicos da linguagem.


METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa de revisão da literatura, desenvolvida a partir de artigos científicos publicados entre 2002 e 2022, indexados nas bases de dados PubMed, SciELO (Scientific Electronic Library Online) e Google Acadêmico. Para localização dos artigos publicados nas bases de dados utilizaram-se os seguintes critérios de inclusão: artigos publicados entre 2002 e 2022, artigos em língua inglesa, portuguesa e espanhola, artigos focados em crianças, utilizando ao menos um dos seguintes descritores: “Fala”, “linguagem”, “marcadores do desenvolvimento”, “apraxia da fala em crianças”, “síndrome de Rett”, “deficiência múltipla”, “mutismo seletivo”, “autismo”, “deficiência auditiva”, “atraso de fala”, “transtorno específico de linguagem”. Os critérios de exclusão foram: artigos não disponibilizados na íntegra e artigos sem acesso gratuito. A avaliação inicial do material bibliográfico ocorreu mediante a leitura dos resumos, seguida da leitura na íntegra dos manuscritos selecionados. A interpretação dos dados foi realizada pela análise de conteúdo, relevância do artigo e impacto no ambiente científico.

Os critérios diagnósticos para os diferentes distúrbios e transtornos abordados seguiram a última versão do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais1.

Habilidade da fala e marcos do desenvolvimento

O neurodesenvolvimento infantil diz respeito ao processo de aquisição de novas habilidades, progressivamente mais complexas, em diferentes áreas do funcionamento: social, emocional, cognitivo, comunicação e movimento, processo esse que depende de um aparato neurobiológico preservado e de um ambiente rico em estímulos sociais e afetivos2.

Para a avaliação do desenvolvimento, existem parâmetros que se relacionam à idade cronológica da criança e são indicadores das funções e atividades do Sistema Nervoso Central: os marcos do desenvolvimento. Esses marcos incluem, por exemplo, funções de comunicação e de interação social, como o desenvolvimento da fala e da linguagem3.

A linguagem é um importante marcador do desenvolvimento infantil, essencial para socialização e integração do indivíduo nas diferentes áreas de funcionamento. No que tange aos marcos do desenvolvimento relacionados à lingua-gem, há uma série de habilidades esperadas para diferentes faixas etárias. Em crianças com neurodesenvolvimento típico, a aquisição destas se inicia logo nos primeiros meses de vida e, com o passar do tempo, são devidamente aprimoradas4.

Antes dos 6 meses de vida, é esperado que a criança seja capaz de emitir vocalizações como balbucios, mesmo que sem intenção comunicativa. Em torno dos 10 meses, espera-se que a criança fale as primeiras palavras. A partir dessa fase, principalmente após completar o 1º ano de vida, o vocabulário aumenta progressivamente e a criança começa a formar pequenas frases, já caracterizando uma linguagem funcional. Ao final do 2º ano de vida, ocorre o evento denominado “explosão do vocabulário” e perto dos 3 anos de idade é esperado que a criança tenha relativa capacidade de manter diálogos com frases um pouco mais complexas1.

Para que os marcos do desenvolvimento da fala e da linguagem verbal sejam atingidos dentro da faixa etária esperada, é necessário que a criança conviva em um ambiente rico em estímulos e interações sociocomunicativas, principalmente no período crítico de desenvolvimento, em que há maior plasticidade neuronal, para que, a partir de sua capacidade auditiva e cognitiva, reconheça os sons e tenha condições de interpretá-los e reproduzi-los. Estímulos ambientais adequados influenciam na aquisição e no domínio da linguagem, como a exposição a estímulos de conversações parentais, sendo, inclusive, a medida da extensão média do enunciado materno em algumas populações muito preditivas do desenvolvimento da linguagem infantil5.

Panorama das etiologias para o atraso ou ausência da habilidade da fala

Nos primeiros anos de vida, uma criança desenvolve uma série de habilidades complexas que permitem a produção e organização de sonorizações dentro de padrões gramaticalmente estruturados. Por conta da complexidade dessa habilidade, é natural que o pleno domínio dela requeira de quatro a cinco anos para ocorrer. No entanto, quando o processo de aprendizagem é interrompido ou transtornado, o desfecho pode ser prejudicado5. Em torno de 15% das crianças de 2 anos são “falantes atrasados”, com aproximadamente metade desses conseguindo ter um desenvolvimento da fala normal quando observados entre os 3 e 5 anos6.

Existem diversas etiologias distintas para um atraso na aquisição de marcos da fala, sendo subdivididas em primárias (sem atribuição a outras condições prévias) — como transtorno do desenvolvimento da fala e da linguagem, transtorno expressivo da linguagem e transtorno receptivo da linguagem — e em secundárias (atribuídas a outras condições clínicas) — tal como o transtorno do espectro autista, paralisia cerebral, apraxia da fala infantil, disartria, surdez, incapacidade intelectual, mutismo seletivo7, dispraxia verbal do desenvolvimento, dislexia, engasgo ou balbuciação (mais característicos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e de síndrome de Tourette), síndrome de Down, síndrome de Williams, síndrome de Prader-Willi, síndrome de Angelman, síndrome de Wolf-Hirschhorn, síndrome de Smith-Magenis, síndrome de Turner, síndrome do X Frágil e síndrome de Cri-du-chat1. Os principais diagnósticos diferenciais de atraso de linguagem encontram-se na Figura 1.


Figura 1. Diagnóstico diferencial no atraso da linguagem.



Transtorno do Espectro Autista

O transtorno do espectro autista (TEA) é um termo que descreve uma desordem do neurodesenvolvimento que abrange um conjunto de dificuldades sociais e de comunicação associados a padrões de comportamentos restritivos e repetitivos8,9. Esse transtorno é diagnosticado na infância, a partir de combinações de sintomas que variam entre os casos, mas que impactam de forma negativa o âmbito social da criança, principalmente. Os critérios diagnósticos do TEA incluem déficits persistentes na comunicação e interação sociais em variados contextos associados à presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades1. Tais sintomas devem estar associados a significativos prejuízos sociais, acadêmicos, estar presentes precocemente no desenvolvimento, e não ser mais bem explicados por outros transtornos do neurodesenvolvimento. Por não ter biomarcadores específicos, o diagnóstico é feito através de critérios clínicos, a partir do reconhecimento do padrão de comportamento característico. A Figura 2 descreve os critérios diagnósticos para TEA conforme o DSM-5.


Figura 2. Critérios diagnósticos para transtorno do espectro autista.



A linguagem pragmática, fator imprescindível para a comunicação social efetiva, é um dos principais déficits encontrados em casos de TEA10. Além disso, segundo o DSM-5, a carência na comunicação não verbal, como dificuldade de olhar nos olhos, linguagem corporal atípica e dificuldade em entender e utilizar gestos, são fatores centrais para o diagnóstico. Em vista disso, o diagnóstico diferencial inclui transtornos que têm prejuízos no desenvolvimento da comunicação, como síndrome de Rett, mutismo seletivo, transtorno da linguagem, transtorno da comunicação social (pragmática), deficiência intelectual sem TEA, transtorno do movimento estereotipado, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e esquizofrenia11. Essas habilidades de fala são essenciais para o desenvolvimento global da criança, e dificuldades nessa área comprometem a sociabilidade e os relacionamentos em geral em crianças com diagnóstico de TEA. Dentre essa população, a prevalência do atraso na linguagem e na fala é estimada em 87% em crianças de até 3 anos de idade8. No entanto, estudos demonstram que o diagnóstico precoce e intervenção adequada podem ajudar nessa evolução, levando a um melhor prognóstico no longo prazo, já que o desenvolvimento da fala está diretamente relacionado à independência social9.

Transtorno Específico da Linguagem

O termo transtorno específico da linguagem está em uso desde os anos 80, e descreve as crianças com transtorno de linguagem, cujas habilidades cognitivas estão dentro dos limites normais e em que não existe razão identificável para o transtorno da linguagem. O diagnóstico é determinado, portanto, por um critério de exclusão12.

O Transtorno Específico da linguagem é caracterizado pela deficiência de aquisição, compreensão, produção ou uso da linguagem, seja ela falada ou na forma escrita, manifestada geralmente no período da primeira infância, causando importantes limitações nas habilidades de comunicação do paciente. A incapacidade de falar palavras soltas (ou aproximações) aos dois anos de idade, ou, aos três, de formar frases simples com duas palavras pode ser um indicativo desse transtorno. Ou seja, um paciente que apresente essa clínica pode ter afetadas suas capacidades de aprender, entender e utilizar a linguagem para expressar o significado de palavras e frases; de contar uma história ou ter uma conversa; de entender e utilizar a linguagem em contextos sociais, como o humor verbal ou frases ambíguas12.

Um dos critérios para se chegar a esse diagnóstico é de que a dificuldade de linguagem apresentada pelo paciente não seja mais bem explicada por um diagnóstico de transtorno do espectro autista, doença do sistema nervoso central, transtorno de desenvolvimento intelectual, mutismo seletivo, entre outros. Contudo, mesmo sendo feito por um critério de exclusão, alguns fatores podem contribuir para o diagnóstico correto: a regressão de capacidades da linguagem já adquiridas não é uma característica do transtorno específico da lingua-gem e, se essa situação se apresentar, pode apontar para um diagnóstico de TEA como sendo mais provável, ou ainda por doenças do sistema nervoso central (SNC), incluindo aquelas decorrentes de encefalopatias epilépticas, acidente vascular cerebral ou trauma12.

Esse transtorno é comumente confundido com o TEA, tendo em vista que ambos apresentam um atraso no desenvolvimento da linguagem. Contudo, diferentemente daqueles que se encontram no espectro autista, os indivíduos com transtorno específico de linguagem costumam ser capazes de iniciar e responder a estímulos sociais ou emocionais de maneira adequada, e não costumam exibir comportamentos restritos, repetitivos ou estereotipados12.

Apraxia da fala na infância

A apraxia da fala é um distúrbio neurológico responsável por afetar a habilidade em produzir sons da fala. A prevalência é de 1 a 2 casos a cada 1000 nascidos vivos, sendo mais comum em meninos que em meninas (9:1)13. Normalmente, o paciente compreende o que quer comunicar, mas seu cérebro tem dificuldades em coordenar os movimentos da estrutura óssea e muscular da face, responsáveis pela articulação da linguagem falada. Isto é, os movimentos dos lábios, da língua e da mandíbula, bem como a musculatura das pregas vocais são deficitários de refinamento, comprometendo a fala. Dessa forma, observa-se lentidão, intermitência e variabilidade na pronúncia das palavras. Entretanto, vale ressaltar que, embora haja alteração de planejamento da articulação no tempo, não há propriamente dano neuromuscular, sendo esse transtorno considerado mais como um atraso de adaptação da comunicação. Dessa forma, o diagnóstico de crianças com apraxia da fala varia conforme a capacidade de produzirem palavras polissilábicas ou não. Produzindo mais que duas sílabas, o diagnóstico diferencial a ser analisado é a alteração na prosódia, ou seja, alteração na capacidade de entonação, ritmo e coordenação da fala. Mas, mesmo em crianças não verbais, já é possível verificar a presença de sinais de apraxia. Isso significa dizer que dificuldades ou ausência de balbucios, problemas alimentares, alterações de comportamento, falta de coordenação motora oral e introspecção são, nas primeiras idades, achados fundamentais que podem indicar apraxia da fala e, nesse ponto, a história familiar e médica pregressa do paciente, na conjuntura de outros dados da anamnese, são importantes informações na diferenciação e precisão do diagnóstico desse distúrbio. Por conseguinte, a terapia motora da fala é considerada padrão-ouro no tratamento da apraxia14.

Atraso Global do Desenvolvimento

De acordo com o DSM-5, o atraso global do desenvolvimento refere-se a um diagnóstico para crianças menores de 5 anos de idade que fracassam em alcançar os marcos do desenvolvimento esperados para sua faixa etária, em várias áreas da função intelectual. Em decorrência da idade, tais indivíduos não são elegíveis para participar de avaliações sistemáticas do funcionamento intelectual. Em decorrência disso, um teste capaz de avaliar esses infantes até idades pré-escolares seria por meio da aplicação, dentre outros, do teste de Denver, o qual observa os marcos do desenvolvimento e sinaliza possíveis riscos de atraso cognitivo para crianças com até 6 anos de idade1. Crianças diagnosticadas com atraso global do desenvolvimento devem passar por reavaliação em idade mais propícia visando determinar o diagnóstico preciso.

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)

O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um dos transtornos mentais mais comuns em crianças, sendo a prevalência mundial estimada em 5%15. Esse transtorno, muitas vezes, é identificado em idade escolar, quando a demanda relacionada à atenção e à inibição de comportamentos é maior. As principais características do TDAH são a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade, cujas manifestações podem estar relacionadas aos subtipos predominantemente desatento, predominantemente hiperativo ou combinado16.

De acordo com o DSM-5, para se considerar o diagnóstico, que é clínico e feito por uma equipe multidisciplinar, é necessário que o indivíduo apresente um conjunto de sintomas persistentes em, no mínimo, dois contextos diferentes, em pelo menos 6 meses, antes dos 12 anos de idade1.

O atraso na aquisição da linguagem é comum no TDAH, entre 6 e 35%, sendo que, em crianças sem TDAH, a ocorrência é de 2 a 6%. Além disso, crianças com TDAH têm um maior risco de alterações na linguagem, podendo ocorrer em 35 a 50% dessa população. Os casos de distúrbios de fala são menos frequentes e, em geral, aparecem associados às dificuldades linguísticas, observando-se alterações de modulação do volume da voz e alterações na fluência17.

Estudos têm demonstrado, além do atraso na aquisição da linguagem, outras alterações da linguagem associadas ao TDAH: alterações da fala, alterações de linguagem receptiva e expressiva — representando provavelmente a maioria dos casos —, como também distúrbios da competência comunicativa18.

Mutismo Seletivo

É um distúrbio relativamente incomum no qual as crianças não falam em situações particulares (por exemplo, na sala de aula). No entanto, o desenvolvimento da fala e da linguagem costuma permanecer preservado em outros contextos. Dados recentes revelam que o mutismo seletivo pode coexistir com o transtorno de ansiedade social e/ou recusa escolar19. Frequentemente é diagnosticado por volta dos 5 anos de idade, concomitantemente com o início da vida escolar. O DSM-5 estabelece que a criança que falha consistentemente em falar em situações específicas (por exemplo, não fala em sala de aula, mas fala em casa), durante ao menos 1 mês, deve ter o diagnóstico de mutismo seletivo considerado1.

Para a confirmação diagnóstica, os sintomas devem interferir na interação social da criança, após a exclusão de outros distúrbios vinculados à dificuldade de linguagem. O tratamento padrão-ouro envolve a ação não farmacológica, por meio de psicoterapia (terapia cognitivo-comportamental, ludoterapia, terapia familiar) associada, quando necessário, ao uso farmacológico de antidepressivos inibidores seletivos da recaptação de serotonina, como a fluoxetina19.

Síndrome de Rett

A síndrome de Rett (SR) caracteriza-se pela deterioração neuromotora acometendo quase que exclusivamente crianças do sexo feminino. Apresenta uma prevalência estimada em 1:10.000 e 1:15.000 meninas, sendo uma das causas mais frequentes de deficiência mental grave que afeta o sexo feminino. O diagnóstico é clínico, constituído por critérios principais, de suporte, ou de exclusão. Os critérios principais incluem perda total ou parcial das habilidades manuais voluntárias, surgimento de movimentos manuais estereotipados, como torcer ou comprimir, entrelaçar ou friccionar as mãos em um movimento tipo ensaboar, perda da totalidade ou parte da linguagem falada, e anormalidades da marcha variando desde marcha dispráxica até perda total da habilidade20.

Os quadros clássicos de SR apresentam todos os critérios principais e nenhum dos de exclusão, e se caracterizam, clinicamente, por um período de regressão seguido de recuperação ou estabilização. Aproximadamente 95% dos casos de apresentação clássica à SR são causados por mutações no gene MeCP2, o qual apresenta expressão em todos os tecidos, mas sobretudo no cérebro20.

O quadro clínico é dividido em estágios ou fases. O primeiro inicia-se entre os 6 e 18 meses e é caracterizado pelo atraso no desenvolvimento, diminuição da interação social e pode ocorrer em alguns pacientes com SR e desaceleração do crescimento do perímetro craniano. O segundo estágio ocorre entre 1 e 3 anos e é rapidamente destrutivo, com regressão psicomotora de forma acelerada, choro sem motivo aparente, irritabilidade frequente e perda da fala adquirida, podendo ser confundida com autismo nessa fase. Outrossim, nesse estágio ocorrem irregularidades respiratórias, assim como epilepsia e distúrbios do sono. O terceiro estágio ocorre entre os 3 e 10 anos, e nessa fase pode haver uma melhora no comportamento e habilidades sociais e comunicativas. Meninas com SR que permanecem ambulantes apresentam um andar característico, com passos curtos e mãos apertadas ao longo da linha média, pernas em extensão e alargamento da base de apoio. O quarto estágio, que se inicia por volta dos 10 anos de idade, é o da deterioração motora tardia, ocorrendo lenta progressão dos déficits motores, com presença de escoliose e deficiência mental severa21.

Na síndrome de Rett, a fala está sempre muito comprometida e, muitas vezes, totalmente ausente. Algumas crianças chegam a falar, deixando de fazê-lo à medida que a deterioração avança. Algumas poucas adquirem alguns vocábulos isolados. A sobrevida na SR pode ser limitada, ocorrendo óbitos em decorrência de quadros infecciosos ou durante o sono, por morte súbita. Além disso, os problemas respiratórios que podem surgir com o avanço da doença são graves e podem estar relacionados com à escoliose, que pode chegar a comprometer seriamente a expansão pulmonar e possibilitar que o processo de respiração seja funcional21.

Deficiência auditiva

A deficiência auditiva em neonatos tem como causas mais comuns alterações genéticas e infecções congênitas. Dentre os diversos fatores de risco, podemos destacar o baixo peso ao nascer, hipoxemia ou convulsões por parto distócico, anomalias craniofaciais, sepse, meningite e o uso de fármacos ototóxicos22. A infecção congênita por citomegalovírus é uma infecção intrauterina responsável por até 21% da perda auditiva neurossensorial ao nascimento, podendo também causar uma perda auditiva de início tardio23.

O diagnóstico da deficiência auditiva ao nascer é realizado através da triagem neonatal, no teste da orelhinha, que deve ser realizado antes dos 3 meses de vida e consiste em emissões otoacústicas evocadas por estalidos suaves produzidos por um dispositivo. Resultados anormais devem ser confirmados com a repetição dos testes após um mês, e, se há suspeita de causas genéticas, é possível realizar testes genéticos direcionados pela apresentação clínica24.

A deficiência auditiva adquirida entre lactentes e crianças, normalmente, é resultado do acúmulo de cerúmen, de otite média secretora ou ainda de ruídos altos. O diagnóstico nessa idade é feito através de um exame clínico e de timpanometria, avaliando-se a fala e o desenvolvimento da criança, o movimento timpânico, a resposta a sons e a capacidade de seguir comandos auditivos. Exames de imagem, como ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC), podem ser indicados para se identificar a etiologia da perda auditiva e, então, se orientar o correto prognóstico25.

A deficiência auditiva também pode se apresentar de maneira comórbida a transtornos do neurodesenvolvimento; dessa forma, a audição deve ser adequadamente avaliada em qualquer criança com atraso da linguagem25.


CONCLUSÃO

O atraso da fala é um sintoma comum a diversos diagnósticos na infância. Profissionais da área da saúde que atuam na faixa etária pediátrica devem estar familiarizados com os marcos do desenvolvimento esperados para cada faixa etária, bem como os sinais de alerta para desvios do neurodesenvolvimento. Dessa maneira, ao detectarem aspectos destoantes, possam encaminhar para a avaliação especializada, visto que, quanto mais precoce for o diagnóstico e o tratamento individualizado, maiores serão as chances de a criança atingir seu maior potencial, otimizando o prognóstico e a diferenciação dos transtornos apresentados neste artigo. Portanto, em vista de aprimorar a assistência a esse grupo, faz-se necessário o aumento de pesquisas que envolvem os transtornos de comunicação infantis citados ao longo desta revisão, construindo diagnósticos mais assertivos e visando compreender as limitações de desenvolvimento de cada condição clínica.


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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Escola de Medicina - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

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Guilherme de Araújo Baptistello
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Data de Submissão: 06/10/2022
Data de Aprovação: 28/01/2023