Relato de Caso
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Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
3
Epilepsia por dependência de piridoxina: um relato de caso
Epilepsy due to pyridoxine dependence: a case report
Larissa Magalhães de Paiva1; Luigi Neves Reis2; Rinara Grossi de Andrade3; Shaira Salvadora Cunha Brito4; Giulia Antunes Chieppe4; Isabela Bernardino Freire4
RESUMO
A epilepsia dependente de piridoxina (EDP) é uma doença autossômica recessiva clinicamente representada por crises convulsivas recorrentes. O diagnóstico é feito por observação clínica, podendo ter o auxílio da eletroencefalografia (EEG) e de exames bioquímicos e genéticos. O objetivo deste trabalho foi relatar o caso de um paciente lactente portador de EDP, por meio das análises dos dados de história clínica, exame físico, resposta terapêutica, em conjunto com a investigação laboratorial e análises de imagem. Diante de um quadro de crise convulsiva neonatal refratária aos anticonvulsivantes instituídos e, com exames laboratoriais e de imagem sem alterações, a introdução de piridoxina trouxe melhora clínica, permitindo a descontinuação dos demais fármacos em uso. O caso relatado reforça a importância da investigação das crises convulsivas neonatais para o diagnóstico e tratamento corretos.
Palavras-chave:
Epilepsia, Convulsões, Piridoxina.
ABSTRACT
Pyridoxine-dependent epilepsy (EDP) is an autosomal recessive disease clinically represented by recurrent seizures. The diagnosis is made by clinical observation, and may be assisted by electroencephalography (EEG) and biochemical and genetic tests. The aim of this work was to report the case of an infant patient with epilepsy due to pyridoxine dependence, using the methods of analysis of clinical history data, physical examination, therapeutic response, with simultaneous laboratory investigation and image analysis. In the face of a neonatal convulsive crisis immune to the instituted anticonvulsants and, with laboratory and imaging exams without changes, the introduction of pyridoxine brought clinical improvement, allowing the discontinuation of the other drugs in use. The reported case reinforces the importance of investigating neonatal seizures for the correct diagnosis and treatment.
Keywords:
Epilepsy, Seizures, Pyridoxine.
INTRODUÇÃO
A epilepsia dependente de piridoxina (EDP), classificada como uma encefalopatia epiléptica neonatal responsiva à vitamina1, é uma doença autossômica recessiva rara, clinicamente representada por crises convulsivas recorrentes, não responsivas a antiepiléticos2. Na maioria dos casos, a instituição de piridoxina parenteral ou oral rapidamente resulta no controle das crises e na melhora da encefalopatia3. O diagnóstico é feito por observação clínica, com o auxílio da eletroencefalografia (EEG) e de exames bioquímicos e genéticos3. Essa condição neurológica é caracterizada por mioclonias erráticas (tipo obrigatório de crise), que podem ser focais ou envolver membros e eixo axial, ocasionais ou quase contínuas, em vigília e sono, que migram de um segmento corpóreo a outro e, geralmente, iniciam-se no período neonatal precoce1. Frequentemente associam-se a crises focais oculares ou não motoras e, finalmente, espasmos tônicos, no período neonatal ou nos primeiros meses de vida. Há um importante atraso global e do desenvolvimento neurológico, acompanhado de uma hipotonia acentuada1, podendo ainda ocorrer distúrbios do sono2,4.
Apresentações atípicas do transtorno incluem: a EDP de início tardio, podendo iniciar a partir dos dois meses de idade3; outras formas que incluem pacientes que antes possuíam convulsões controladas por pequenas doses de piridoxina, mas que acabam necessitando de doses mais elevadas para controle; ou pacientes que respondiam a anticonvulsivantes gerais, e evoluem para resposta seletiva à piridoxina5.
Sendo assim, as escolhas de anticonvulsivante para o tratamento, assim como o início precoce do tratamento por piridoxina, devem ser feitos com base no tipo de crise, na eficácia do medicamento e nos efeitos colaterais sobre o paciente6. Esse relato tem por objetivo expor um caso de epilepsia dependente de piridoxina, diagnosticado no período neonatal, com crises de difícil controle com uso de anticonvulsivantes. Os resultados mostraram que o uso da piridoxina culminou com o fim das crises convulsivas.
RELATO DE CASO
Lactente, sexo masculino, 1 mês e 16 dias, residente e procedente de Itaobim/MG. Já em investigação para crise convulsiva, foi encaminhado ao Hospital Municipal de Governador Valadares (HMGV) após dar entrada ao pronto atendimento em sua cidade de origem, por apresentar quatro episódios de crise tônico-clônica. No tratamento ambulatorial, o paciente estava no desmame de medicações, em que o clonazepam havia sido reduzido há uma semana e o fenobarbital, no dia anterior. Foi realizada a internação para a investigação e o controle das crises convulsivas, sem sucesso no hospital de origem. Assim, o paciente foi transferido para o HMGV. Na investigação da história pregressa, foi relatado pela mãe o não conhecimento da gravidez até o momento do parto, tornando impossível a realização de acompanhamento médico e pré-natal. A mãe afirma não ter apresentado nenhuma intercorrência durante a gestação. No momento do parto, teste rápido materno para sífilis e HIV deram negativos. Nascido pré-termo, parto cesárea, com boletim de Apgar 9 e 10 no 1º e 5º minuto, respectivamente, peso ao nascer de 3.415 gramas, perímetro cefálico de 34 centímetros, estatura de 49 centímetros.
Aos 6 dias de vida, o paciente apresentou sua primeira crise convulsiva com eversão do olhar, choro e mioclonias, por isso, foi internado por 26 dias na UTI neonatal de Teófilo Otoni/MG. Sem sucesso na investigação, o paciente recebeu alta com seguimento ambulatorial.
No HMGV, realizou-se tomografia computadorizada (TC) de crânio, ressonância magnética de encéfalo (RM) e análise de liquor cefalorraquidiano, que não mostraram alterações. Exames laboratoriais apresentaram VDRL sanguíneo de 1:1. Um dia após a admissão ao HMGV o paciente apresentou crise convulsiva generalizada com nistagmo, choro, mioclonias, após nova redução do clonazepam (foi optado por manter o desmame programado para observação intra-hospitalar). Houve melhora da crise após 2 doses de uso de midazolam, sendo então levado à internação na enfermaria semi-intensiva para continuação dos cuidados.
Ao exame físico, mostrou-se hipoativo, mas reativo, corado, hidratado, afebril, acianótico, anictérico, boa perfusão capilar periférica, fontanela anterior palpável normotensa, 2 polpas digitais, fontanela posterior palpável com 1 polpa digital. Ritmo cardíaco regular em 2 tempos com sopro sistólico (2+/6+), frequência cardíaca de 110 batimentos por minuto. Murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios, eupneico, sem esforço. Foram realizados exames laboratoriais que não apresentaram alterações, e exame sorológico para toxoplasmose e citomegalovírus, cujos resultados foram negativos. Além de Ecodopplercardiografia, que evidenciou forame oval patente e estenose do ramo pulmonar esquerdo (achados normais no recém-nascido).
O ajuste da medicação foi realizado e, mesmo em uso de fenobarbital 21mg/dia, levetiracetam 40mg/kg/dia e topiramato 5mg/kg/dia, o paciente manteve aumento progressivo dos episódios, ao longo do dia. Assim, houve escolha de prova terapêutica com piridoxina 100 miligramas de 8/8h. O paciente seguiu com melhora importante do nível de consciência após a instalação da vitamina, mantendo períodos maiores desperto e ativo, e crises convulsivas ausentes. Devido à boa resposta à piridoxina, foi iniciada a redução de fenobarbital 3 gotas/dia com boa tolerância. Feito seguimento do tratamento na enfermaria pediátrica e realizada coleta de swab bucal para análise de DNA. Após cinco dias sem novos episódios de crises, o paciente obteve alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial com neurologista pediátrico.
O diagnóstico EDP foi confirmado pela análise molecular por sequenciamento de nova geração, sendo identificada como homozigose, de variante patogênica no gene ALDH7A1.
DISCUSSÃO
A EDP é a mais bem compreendida das encefalopatias epilépticas neonatal responsivas a vitaminas, devido à descoberta de suas bases bioquímicas e genéticas subjacentes3. Seu fenótipo é devido a defeitos em vários genes, com mecanismos de doença únicos e implicações de tratamento. A EDP pode ser causada por um defeito na conversão de piridoxina em fosfato de piridoxal (PLP), por defeitos na homeostase do PLP (deficiência da proteína de ligação à PLP), tendo como causa mais comum o defeito anenzimático na oxidação da lisina (deficiência de semialdeído desidrogenase a-aminoadípica), causada por mutações no gene ALDH7A17. A maioria dos pacientes com EDP-ALDH7A1 tem atraso de desenvolvimento ou deficiência intelectual, portanto, seu diagnóstico precoce e os regimes de tratamento personalizados são promissores para o tratamento da epilepsia e do atraso do neurodesenvolvimento nessa doença7.
O EEG pode se mostrar bastante heterogêneo e não específico. São descritas atividade de base anormal, surto-supressão, ausência de organização de sono, focos de ponta e poliponta. Torna-se difícil a avaliação do EEG devido ao fato de esse ser tipicamente realizado após diversas crises convulsivas e já terem sido instituídos fármacos anticonvulsivantes. Em muitos pacientes com EDP não é incomum EEG normal ou com mínima atividade epileptiforme.
Após o estabelecimento da suspeita de EDP, o diagnóstico pode ser confirmado pela prova terapêutica, na qual, em maior parte dos casos, há uma resposta clínica à administração de piridoxina em infusão venosa em 15 minutos8. Em casos suspeitos sem resposta imediata, não se deve excluir o diagnóstico de EDP9, sendo o tratamento oral continuado por uma a três semanas8.
O tratamento deve ser iniciado em um ambiente de terapia intensiva com suporte ventilatório disponível, monitorização cardiopulmonar e, se possível, eletroencefalográfica, pois os pacientes podem desenvolver apneia, hipotonia central e hipotensão em resposta à administração de piridoxina10,11. Uma dose inicial de 100mg de piridoxina deve ser administrada, podendo ser repetida a cada 5 a 15 minutos, não ultrapassando 500mg, sob vigilância cuidadosa11-13. O tratamento deve ser continuado por suplementação oral de piridoxina de 15 ou 30mg/kg/dia dividido em três doses diárias. A dosagem de piridoxina é empírica, logo, o tratamento adequado causa a remissão das convulsões, e, caso ocorra a interrupção da piridoxina, o quadro convulsivo será restabelecido8. No Brasil, o diagnóstico com base em exames químicos e genéticos, assim como o auxílio do EEG, pode ser inviável, devido à escassez desses recursos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No caso apresentado, em particular, foram observados alguns desses empecilhos. Portanto, torna-se primordial um adequado raciocínio clínico para realizar o diagnóstico diferencial das encefalopatias epilépticas neonatais. O algoritmo 11,8,9 apresenta o raciocínio clínico que deve ser implementado para o diagnóstico.
Algoritmo 1. Investigação de crise convulsiva neonatal
1,8,9.
A EDP apresenta um bom prognóstico para um controle de convulsões na maioria dos pacientes3, sendo, inicialmente, controladas com a instalação de piridoxina como medicamento, e subsequentemente, na maioria dos indivíduos afetados, os medicamentos antiepilépticos podem ser descontinuados e suspensos2. O paciente ainda precisará de doses farmacológicas de piridoxina por toda a vida3, sendo recomendado o monitoramento anual da dosagem, para avaliação de qualquer possibilidade de anormalidade12.
CONCLUSÃO
A EDP é uma condição autossômica recessiva rara, caracterizada por crises epilépticas recorrentes de fácil controle e melhora da encefalopatia quando feito o diagnóstico correto, com base clínica e em exames complementares. É necessária a atenção dos pediatras em casos com essa hipótese diagnóstica e sua investigação por meio da sintomatologia, eletroencefalograma e exames bioquímicos e genéticos.
Ter em mente esse diagnóstico é de suma importância para a instituição de tratamento adequado e melhora do prognóstico de neonatos que apresentam crises convulsivas.
REFERÊNCIAS
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1. Hospital Municipal de Governador Valadares, Residente de Pediatria - Governador Valadares - Minas Gerais - Brasil
2. Hospital Municipal de Governador Valadares, Neurologista Pediátrico - Governador Valadares - Minas Gerais - Brasil
3. Hospital Municipal de Governador Valadares, Pediatra - Governador Valadares - Minas Gerais - Brasil
4. Universidade Vila Velha, Graduanda do curso de Medicina - Vila Velha - Espírito Santo - Brasil.
Endereço para correspondência:
Giulia Antunes Chieppe
Universidade Vila Velha
Avenida Comissário José Dantas de Melo, nº 21, Boa Vista II
Vila Velha, ES, Brasil. CEP: 29102-920
E-mail: giulia.antunesc@hotmail.com
Data de Submissão: 30/03/2021
Data de Aprovação: 16/05/2021