Relato de Caso
-
Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
4
Síndrome Cri Du Chat: relato de um caso neonatal e evolução até os nove meses de idade
Cri Du Chat Syndrome: report of a neonatal case and evolution up to nine months of age.
Layssa Marinho Aguiar; Carlos Alberto Moreno Zaconeta; Tatiane Martins Barcelos; Aldo Roberto Ferrini Filho
RESUMO
A síndrome de Cri Du Chat (SCDC) é uma síndrome genética que deve ser reconhecida e diagnosticada precocemente para que haja acompanhamento e intervenção multidisciplinar precoces. Descrevemos o caso de uma recém-nascida em que foi suspeitada a SCDC na sala de parto devido a choro estridente e assimetria facial. Descrevemos também a investigação realizada até o fechamento do diagnóstico e a evolução clínica até os nove meses de idade. Com o diagnóstico definido, a criança recebeu alta da maternidade em acompanhamento com equipe multidisciplinar, visando diminuir os possíveis déficits e atrasos no seu desenvolvimento.
Palavras-chave:
Síndrome do miado do gato, Deleção cromossômica, Microcefalia.
ABSTRACT
Cri Du Chat Syndrome (SCDC) is a genetic syndrome that must be recognized and diagnosed as soon as possible for early follow-up and multidisciplinary intervention. We describe the case of a female newborn who was suspected at SCDC at delivery room due to high-pitched crying and facial asymmetry. We also describe the investigation until the final diagnosis and the clinical evolution up to nine months of age of the child. After the diagnosis was confirmed, our pacient received hospital discharge with follow-up of multidisciplinary team in order to reduce development impairments.
Keywords:
Cri-du-Chat syndrome, Chromosome deletion, Microcephaly.
INTRODUÇÃO
A síndrome de deleção do cromossomo 5p ou síndrome Cri Du Chat (SCDC) ou síndrome do miado do gato apresenta uma incidência de aproximadamente 1:45.000 bebês nascidos vivos. Em 85% dos casos, resultam de uma deleção parcial do braço curto do cromossomo 5 e os demais casos derivam de uma translocação parental envolvendo o 5p1.
O diagnóstico da SCDC é suspeitado a partir das manifestações clínicas típicas e a análise do cariótipo confirma a suspeita clínica. As manifestações clínicas variam de acordo com a alteração cromossômica, contudo as bandas cromossômicas 5p15.2 e 5p15.3 estão sempre incluídas e abrangem a região crítica para o fenótipo2,3.
RELATO DE CASO
Recém-nascido (RN), sexo feminino, nascido de parto cesariano devido à parada de progressão, com idade gestacional de 39 semanas. Ao nascimento, peso de 3.205g (adequado para a idade gestacional), comprimento de 50cm e perímetro cefálico de 33cm. Filha de pais não consanguíneos, mãe sem história de gestações e abortos prévios e sem antecedentes familiares de síndromes genéticas conhecidas. Sem relato de uso de álcool ou drogas durante a gravidez. Nasceu em boas condições clínicas (Apgar 9/9), sem necessidade de reanimação neonatal.
Durante exame físico inicial na sala de parto, foi identificada presença de choro estridente e assimetria facial e craniana. Encaminhada, então, ao alojamento conjunto (ALCON) e solicitado parecer de geneticista. No ALCON, apresentou boa aceitação do seio materno e mantinha preferência por manter a cabeça virada para o lado esquerdo. No quarto dia de vida, foi avaliada por geneticista que descreveu diversas dismorfias, como plagiocefalia, assimetria de fronte, sobrancelhas rarefeitas, raiz nasal alta, dorso nasal alto, fendas palpebrais oblíquas e alongadas, lábio superior fino e pés com hálux alongados apresentando desvio lateral (Figura 1).
Figura 1. Paciente com síndrome Cri Du Chat: A. Logo após o nascimento; B. Nos primeiros dias de vida; C. Com 9 meses de idade.
No quinto dia de vida, apresentou equivalente convulsivo, manifestando-se com irritabilidade, choro estridente e pausas respiratórias seguidas de movimentos tônicos dos membros inferiores e superiores. Foi encaminhada para unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN) e instituída terapia anticonvulsivante com fenobarbital.
Em investigação complementar, realizado eletroencefalograma que evidenciou atividade de base assimétrica, ausência de elementos fisiológicos normais e presença de atividade lenta focal em região temporal esquerda. Realizou ainda ecocardiograma, eletrocardiograma e ecografia cerebral e de rins e vias urinárias, que não apresentaram alterações, exceto pequena dilatação de ventrículos cerebrais laterais. Realizado cariótipo que demonstrou deleção do cromossomo 5, confirmando diagnóstico de SCDC.
Apresentou novo equivalente convulsivo 24 horas após o primeiro episódio, e, após 5 dias de internação em UTIN, retornou para o ALCON, onde seguiu sem demais intercorrências. Teve alta hospitalar com 19 dias de vida, em aleitamento materno exclusivo, com prescrição de fenobarbital e com orientação de seguimento ambulatorial com a equipe da genética, neurologia e equipe multidisciplinar.
Após alta hospitalar, não apresentou novos episódios convulsivos e necessidade de internação hospitalar. Evoluiu com dificuldade de sucção no seio materno e com baixo ganho ponderal, não sendo possível manter aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida e sendo introduzida fórmula infantil. Atualmente está com 9 meses de idade, com peso atual de 6.495g (abaixo do Z score -2), 69 cm de estatura (entre Z score -2 e -1) e 37,5cm de perímetro cefálico (abaixo do Z score -3).
Vem realizando estimulação precoce desde os primeiros dias de vida e até o momento apresenta atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, embora venha ganhando competências com a estimulação. Fixou o olhar e teve sorriso social com 3 meses, começou a rolar com 5 meses, sentou sem apoio com 8 meses e ainda não engatinha. Realizada introdução alimentar com alimentos sólidos por volta de 6 meses, com aceitação adequada e sem dificuldade de deglutição. Apesar da aceitação adequada da dieta, apresenta dificuldade de ganho ponderal, estando em acompanhamento nutricional.
DISCUSSÃO
A síndrome Cri Du Chat pode apresentar diversas anormalidades clínicas, sendo a mais característica o choro neonatal estridente, de alto volume, monocromático e que se assemelha ao choro de um gato, o que leva a síndrome a também ser conhecida como síndrome do miado do gato3. Tal choro é provavelmente devido a anomalias da laringe (pequena, estreita, em forma de diamante) e da epiglote (flácida, pequena, hipotônica), tende a desaparecer com o crescimento da criança e, apesar de ser o achado mais característico, não é considerado patognomônico4,5.
As crianças portadoras da SCDC constantemente apresentam deficiência intelectual grave. Outra característica comum é a microcefalia, que, no caso relatado, é bem demonstrado na análise do gráfico de perímetro cefálico, observando-se uma piora da microcefalia com o passar dos meses (Figura 2). Além disso, também podem apresentar defeitos cardíacos, hipotonia, convulsões de difícil controle e características faciais dismórficas, tais como face arredondada e assimétrica, hipertelorismo, fissura palpebral inclinada para baixo, epicanto, orelhas de baixa implantação, ponte nasal alargada e micrognatia. Tais manifestações clínicas são variáveis devido à presença de diferentes alterações cromossômicas que envolvem o cromossomo 5, determinando assim fenótipos diferentes3,5.
Figura 2. Gráfico de perímetro cefálico para idade desde o nascimento até 9 meses de idade.
O baixo peso ao nascer, a dificuldade de sucção, com consequente dificuldade para manter o aleitamento materno e o baixo ganho ponderal estão presentes em grande parte das crianças portadoras da síndrome6. No caso apresentado, o RN não apresentou baixo peso ao nascimento e teve boa aceitação do seio materno nos primeiros dias de vida, contudo, ao longo do tempo, foi demonstrando uma dificuldade de sucção associada a baixo ganho ponderal, havendo necessidade de intervenção nutricional.
O diagnóstico da SCDC é suspeitado a partir das manifestações clínicas típicas já citadas e a análise do cariótipo confirma o diagnóstico, demonstrando deleção parcial do braço curto ou translocação parental do cromossomo 5p. Em casos duvidosos, a análise FISH (Fluorescent In Situ Hybridization – mapeamento de um gene por hibridização molecular de uma sequência de DNA) irá confirmar o diagnóstico1,2.
Após a suspeita diagnóstica, faz-se necessário o aconselhamento genético pré-teste para explicar e elucidar quais os testes planejados, os resultados esperados e suas limitações para os familiares. Já no aconselhamento genético pós-teste, é de real importância informar à família sobre as condições do paciente, fornecer esclarecimentos sobre a síndrome e apoiar os pais após o diagnóstico7. Além disso, o aconselhamento incluirá discussão sobre opções reprodutivas e extensão de testes genéticos para outros membros da família. Sabe-se que cerca de 80% dos casos de SCDC são decorrentes de uma mutação nova, apresentando um risco de recorrência desprezível, entretanto deve ser solicitado cariótipo com banda G no sangue periférico para os pais que têm filho com SCDC, pois, em 10% desses casos, o risco de recorrência pode ser maior devido a um rearranjo cromossômico balanceado no material genético de um dos pais, podendo ser inversão (10% dos casos) e translocação balanceada (90% dos casos)8. Mesmo nos casos em que os pais não apresentem desejo reprodutivo, o cariótipo dos pais ainda se aplica caso já tenham outros filhos, pois algum desses filhos poderá ter herdado a alteração cromossômica balanceada de um dos pais e, assim, terá um maior risco de ter um filho com SCDC5.
Na avaliação complementar, é imprescindível uma avaliação cardiológica completa com eletrocardiograma e ecocardiograma, para descartar malformações cardíacas, que afetam cerca de 15% a 20% dos pacientes. As emissões otoacústicas e o reflexo vermelho ocular devem ser realizados como em todos os recém-nascidos. É sugerido ainda a realização de ecografia transfontanela, por ser um exame de fácil acesso, amplamente disponível, não invasivo e que permite avaliar presença de malformações cerebrais. Além disso, é necessário realização de avaliação neurológica nas primeiras semanas ou assim que possível após o diagnóstico7.
Não há uma terapia específica para os pacientes portadores dessa síndrome, mas intervenções reabilitativas e educacionais precoces melhoram o prognóstico e resultam em um progresso considerável no ajuste social dos pacientes2. É sabido que o primeiro ano de vida é o mais relevante para determinar o desenvolvimento futuro, sendo então indicado desde os primeiros dias de vida realização de estimulação precoce e acompanhamento multidisciplinar para que possíveis atrasos no desenvolvimento sejam identificados o mais precocemente e que haja uma intervenção a fim de que a criança alcance os melhores resultados possíveis9.
Além disso, é amplamente reconhecido que o envolvimento da família em programas educacionais e de reabilitação permite alcançar um melhor desenvolvimento psicomotor, linguístico e social da criança10. No caso em questão, a criança atualmente possui um desenvolvimento otimizado dentro de seu contexto, o que pode ser atribuído ao envolvimento e estímulos realizados pela própria família que foi orientada e esclarecida sobre a importância de tais estímulos, além, claro, do acompanhamento multidisciplinar que ela realiza desde os primeiros meses de vida, reforçando a importância de tais intervenções.
Ressalta-se a importância de que os sinais dismórficos da SCDC sejam reconhecidos ainda no período neonatal, para que seja realizada confirmação diagnóstica o mais precocemente possível, já que o diagnóstico precoce impacta diretamente no prognóstico dessas crianças.
Esse relato de caso teve aprovação do comitê de ética em pesquisa sob o número do CAAE 45392821.3.0000.5553 com autorização dos responsáveis pelo paciente, que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e o termo de cessão de imagem, autorizando, assim, sua publicação.
REFERÊNCIAS
1. Giersch ABS. Congenital cytogenetic abnormalities. UpToDate [Internet]. 2019 Sep; [cited 2021 Jul day]. Available from: https://www.uptodate.com/contents/congenital-cytogenetic-abnormalities.
2. Mainardi PC. Cri du Chat Syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2006 Sep;1(1):33.
3. Schrijver I, Zehnder JL. Chromosomal translocations, deletions, and inversions. UpToDate [Internet]. 2021 May; [cited 2021 Jul day]. Available from: https://www.uptodate.com/contents/chromosomal-translocations-deletions-and-inversions#H2.
4. Niebuhr E. The cri du chat syndrome. Epidemiology, cytogenetics and clinical features. Hum Genet. 1978;44:227-75.
5. Ribeiro EM, Carneiro RCCP, Carneiro LJP, Matos EMSS, Albuquerque LS. A síndrome de Cri Du Chat em adolescentes. J Health Biol Sci. 2020 Jun;8(1):1-3.
6. Mainardi PC, Pastore G, Castronovo C, Godi M, Guala A, Tamiazzo S, et al. The natural history of Cri du Chat Syndrome. A report from the Italian Register. Eur J Med Genet. 2006 Sep;49(5):363-83.
7. Liverani ME, Spano A, Danesino C, Malacarne M, Cavani S, Sputon M, et al. Children and adults affected by Cridu Chat syndrome: Care’s recommendations. Pediatric Reports. 2019 Feb;11(1):7839.
8. Honjo RS, Mello CB, Pimenta LSE, Nunes-Vaca EC, Beneditto LM, Khoury RBF, et al. Cri-du-Chat syndrome: characteristics of 73 Brazilian patients. J Intellect Disabil Res. 2018 Jun;62(6):467-73.
9. Nardi S. The cri du Chat syndrome; Technical aspects and educational guidelines. A.B.C. Associazione Bambini Cri du chat. [Internet]. 2014; [cited 2021 Jul day]. Available from: https://www.criduchat.it/documents/ABC-Criduchat-Technical-aspects-Educational-Guidelines-EN-web.pdf.
10. Cornish K, Oliver C, Standen P, Bramble D, Collins M. Cri-du-Chat Syndrome. Handbook for Parents and Professionals [Internet]. 2nd ed. The Cri Du Chat syndrome Support Group. 2003 May; [cited 2021 Jul day]. Available from: http://criduchat.org.uk/wp-content/uploads/2020/02/CDC-HANDBOOK-FOR-PARENTS-AND-PROFESSIONALS.pdf
Hospital Materno Infantil de Brasília, Departamento de Neonatologia - Brasília - Distrito Federal - Brasil
Endereço para correspondência:
Layssa Marinho Aguiar
Hospital Materno Infantil de Brasília
Av. L2 Sul SGAS Quadra 608 Módulo A - Asa Sul, DF, 70203-900
E-mail: layssamarinhoaguiar@gmail.com
Data de Submissão: 30/06/2021
Data de Aprovação: 06/09/2021