ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Atresia de vias biliares em paciente com síndrome do olho do gato - relato de caso

Biliary atresia in a patient with Cat Eye Syndrome - Case Report

RESUMO

A atresia de vias biliares (AVB) é uma afecção rara, de etiologia não definida e com evolução potencialmente fatal. A síndrome do olho do gato é uma doença cromossômica rara que se associa a diversas malformações, estando a atresia biliar (AB) entre as mais raramente descritas. Recém-nascido do sexo masculino com quadro de icterícia de início aos 20 dias de vida, acompanhada de hipocolia fecal. Os exames laboratoriais, de imagem e a biópsia hepática foram sugestivos de atresia biliar. O paciente foi submetido à cirurgia de Kasai com 55 dias de vida. Apresentava também diversas malformações, sendo avaliado pela equipe de genética com diagnóstico de síndrome do olho do gato. Apresentou evolução clínica favorável após a cirurgia, mantendo seguimento com diversas especialidades. Esta síndrome genética apresenta fenótipo variável e a identificação precoce das malformações associadas é essencial para o tratamento adequado, o que pode ter impacto positivo tanto na sobrevida quanto na qualidade de vida do paciente.

Palavras-chave: Colestase, Atresia biliar, Doenças e anormalidades congênitas, hereditárias e neonatais.

ABSTRACT

Biliary atresia is a rare condition, of undefined etiology and with a potentially fatal evolution. The cat eye syndrome is a rare chromosomal disease that is associated with several malformations, biliary atresia being among the most rarely described. Male newborn with jaundice onset at 20 days of age, accompanied by fecal hypocholia. Laboratory tests, imaging and liver biopsy were suggestive of biliary atresia. The patient underwent Kasai surgery at 55 days of age. He also had several malformations, and the genetic team diagnosed cat eye syndrome. He presented with a favorable clinical evolution after surgery, maintaining follow-up with several specialties. This genetic syndrome has a variable phenotype and the early identification of associated malformations is essential for proper treatment, which can have a positive impact on both patient survival and quality of life.

Keywords: Cholestasis, Biliary Atresia, Congenital, Hereditary, and Neonatal Diseases and Abnormalities.


INTRODUÇÃO

A atresia biliar (AB) é uma colangiopatia inflamatória que cursa com obliteração de ductos biliares intra-hepáticos e extra-hepáticos no período neonatal e que, sem o tratamento adequado, associa-se à cirrose hepática e pode levar a óbito até os 2 anos de idade1. Sua incidência estimada é de 1 em 6.000 a 18.000 nascidos vivos, com predominância discreta do sexo feminino, associando-se a outras malformações congênitas em até 20% dos casos e configurando a principal causa de transplante hepático na pediatria2. A síndrome do olho do gato, também conhecida como síndrome de Schmid-Fraccaro é uma doença cromossômica rara associada a diversas malformações, com incidência estimada entre 1 em 50.000 a 150.000 nascidos vivos3. Os autores descrevem o caso de um lactente encaminhado para avaliação em um serviço terciário por colestase neonatal que após extensa investigação foi diagnosticado com atresia biliar, sendo submetido à cirurgia de Kasai com boa evolução. Devido à presença de outras malformações associadas, como fossetas pré-auriculares, ânus imperfurado e alterações cardíacas, realizado estudo genético que conduziu ao diagnóstico da síndrome do olho do gato.


RELATO DE CASO

Lactente do sexo masculino, 38 dias de vida, sem antecedente de intercorrências durante o acompanhamento pré-natal, nascido a termo, com peso adequado para a idade gestacional, com quadro de icterícia de início aos 20 dias de vida, acompanhado de hipocolia fecal. Ao exame físico encontrava-se ictérico, com fígado palpável a 2 cm do rebordo costal direito. A investigação laboratorial evidenciou aumento de bilirrubina total com predomínio de bilirrubina direta (bilirrubina total: 7mg/dl e bilirrubina direta: 4,08mg/dl), elevação de transaminases (alanina aminotransferase: 61 U/L e aspartato aminotransferase: 184 U/L) e de enzimas canaliculares (fosfatase alcalina: 416 U/L, gama glutamiltransferase: 397 U/L). Durante a ultrassonografia de abdome, não foi visualizada a vesícula biliar. Realizada cintilografia hepatobiliar com achado de vias biliares impérvias, com padrão obstrutivo sugestivo de atresia biliar e biópsia hepática também sugestiva de atresia biliar. Submetido à portoenterostomia em Y de Roux (Cirurgia de Kasai) com 55 dias de vida, sem intercorrências durante o procedimento. Biópsias cirúrgicas evidenciaram intensa hipoplasia de vesícula biliar com moderado infiltrado inflamatório misto e áreas de erosão da mucosa, linfonodo pericístico sem particularidades, hepatopatia crônica de padrão biliar obstrutivo, fibrose portal com formação de septos porta-porta e intensa colestase intracanalicular e intraductular com reação biliar portal associada.

O paciente apresentava inúmeras outras alterações ao exame físico entre elas: fossetas pré-auriculares, cílios longos, raiz nasal baixa, plagiocefalia, frontal largo e abaulado, retrognatia, hipertelorismo, estrabismo, prega palmar única, aumento da distância intermamilar e criptorquidia bilateral. Apresentava também malformações cardíacas (comunicação interventricular sem repercussão hemodinâmica, persistência de canal arterial, veia cava superior persistente), ânus imperfurado (submetido à realização de colostomia com 1 de vida) e fístula reto-uretral. Avaliado pela equipe de genética médica com diagnóstico de síndrome do olho do gato, com cariótipo compatível: 47XY + mor 29/ 46 XY (21), e a-CGH: Arr (hg 19) 22q 11.1-q11.2. Avaliação oftalmológica evidenciou íris trófica sem coloboma e estrabismo divergente.

Durante o seguimento clínico, apresentou 3 episódios de infecção trato urinário (ITU), sem alteração de função renal e sem cicatrizes renais, foi submetido à cirurgia de reconstrução de trânsito intestinal e correção da fístula reto-uretral com 1 ano e 5 meses de idade, evoluindo sem novos episódios de ITU após. Apresentou constipação intestinal crônica com necessidade de realização de lavagens intestinais múltiplas vezes e manejo posterior com polietilenoglicol. No acompanhamento com a equipe de cardiologia pediátrica, manteve-se estável, realizou 2 ecocardiogramas com resultado normal e recebeu alta com 2 anos e 8 meses de idade.

Evoluiu com elevação persistente de transaminases e enzimas canaliculares em uso de ácido ursodesoxicólico, com alterações ultrassonográficas (fígado heterogêneo, com bordas rombas e aumento do diâmetro e ecogenicidade da veia porta, poliesplenia). Aos 2 anos e 10 meses, apresentou hemorragia digestiva alta secundária a úlcera gástrica ativa. A endoscopia digestiva alta evidenciou também varizes esofágicas e gástricas, sendo realizado protocolo de tratamento endoscópico com múltiplas sessões de ligadura elástica e uso de propranolol com boa resposta, além do uso de inibidor de bomba de prótons (omeprazol). Durante o seguimento apresentou também gastropatia da hipertensão portal. Não apresentou outros episódios dwe hemorragia digestiva. Atualmente com 4 anos de idade, estável, com bom ganho pondero-estatural (no percentil 75 de peso e de altura para a idade) desenvolvimento neuropsicomotor adequado, bilirrubina total: 0.6mg/dL, albumina: 4,2g/dL e RNI: 1,26. Na Figura 1, podemos observar alguns sinais dismórficos, como frontal largo e abaulado, cílios longos e hipertelorismo, além de estrabismo divergente.


Figura 1. Foto do paciente com 4 anos, apresentando osso frontal largo e abaulado, cílios longos, hipertelorismo e estrabismo divergente.



DISCUSSÃO

A atresia biliar (AB) não possui etiologia definida, apresenta-se clinicamente com icterícia colestática de início no período neonatal, podendo estar associada a outras malformações, e tem incidência variável em diferentes países4-6. Entre os exames que podem ser úteis na investigação, destacam-se testes bioquímicos, ultrassonografia abdominal, cintilografia hepatobiliar, colangiorressonância magnética e biópsia hepática. A análise histológica possui melhor acurácia quando comparada aos métodos não invasivos, mas a combinação de testes não invasivos pode ser utilizada no diagnóstico diferencial da colestase neonatal7. Outros marcadores têm sido estudados, entre eles a metaloproteinase-7 (MMP-7), que tem mostrado elevada sensibilidade e especificidade para AB8.

O diagnóstico precoce dessa condição é importante uma vez que a portoenterostomia (cirurgia de Kasai) pode contribuir para prevenir a progressão da doença, quando realizada nos primeiros meses de vida9. Um estudo brasileiro multicêntrico encontrou associação da AB com anomalias congênitas extra-hepáticas em 11,8% dos pacientes e evidenciou que a maioria desses pacientes não foram submetidos à portoenterostomia ou isso ocorreu de forma tardia (após 60 dias de vida)10.

A síndrome do olho do gato está associada à duplicação parcial do cromossomo 22, que pode apresentar trissomia ou tetrassomia parcial como resultante de um cromossomo marcador supranumerário idic(22)(q11.2) e existem trabalhos que estudam possíveis relações entre as alterações genéticas e as características clínicas da síndrome11. Ela recebeu essa denominação devido ao aspecto da íris secundário ao coloboma iridocoroidal vertical encontrado em alguns pacientes12. Seu fenótipo, no entanto, é muito variável, e nenhuma característica clínica é consistente em todos os pacientes, porém entre as principais se destacam: alterações pré-auriculares (apêndices ou fossetas), malformações anorretais, malformações urogenitais, coloboma ocular e cardiopatias congênitas. A associação com AB está entre os achados mais raramente descritos13. O paciente do caso relatado apresentava diversas dessas características, dentre elas: fossetas pré-auriculares, raiz nasal baixa, hipertelorismo, comunicação interventricular e persistência da veia cava superior esquerda, ânus imperfurado e fístula retal, além da AB.

Uma série de 5 casos de pacientes com formas variáveis de aneuploidia do cromossomo 22, entre os quais 2 com a forma clássica da síndrome do olho do gato, e na qual todos apresentavam anomalias significativas dos ductos biliares, sendo a principal a AB, mostrou que tais alterações são significativas nas condições genéticas descritas e podem estar entre os componentes associado a pior prognóstico clínico14. Um trabalho brasileiro que envolveu 6 pacientes com diagnóstico da síndrome do olho do gato encontrou associação com AB em 1 caso15.

Apesar das comorbidades decorrentes da síndrome e da hipertensão portal, o diagnóstico e a intervenção precoces foram determinantes para a boa evolução clínica observada no caso.


CONCLUSÃO

A síndrome do olho do gato é uma doença genética rara e que pode ter associação com a atresia biliar, que configura uma importante causa de colestase na faixa etária pediátrica e a principal indicação de transplante hepático nessa população. Apesar de se tratar de uma associação rara, o diagnóstico precoce da atresia de vias biliares foi determinante para a boa evolução clínica do paciente do caso relatado, o que demonstra a importância da sua investigação em pacientes com síndrome do olho do gato e icterícia.

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Data de Submissão: 14/09/2021
Data de Aprovação: 25/10/2021