ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Acrodermatite enteropática: relato de caso em criança com doença de Crohn

Acrodermatitis enteropathica: case report in children with crohn’s disease

RESUMO

OBJETIVOS: A Acrodermatite Enteropática (AE) é uma doença rara que pode ser transmitida por herança autossômica recessiva, pode relacionar-se com nutrição parenteral sem zinco, ou ser secundária a síndromes disabsortivas. Clinicamente, caracteriza-se pela tríade de dermatite acral e periorificial, alopecia e diarreia, acompanhada por restrição de crescimento. O quadro pode ser fatal se não tratado.
MÉTODOS: Descrevemos o caso de uma criança com AE e doença de Crohn (DC), sendo a AE complicação conhecida, secundária à má absorção causada pela DC.
RESULTADOS: Foi iniciado tratamento para a DC com corticoide sistêmico, azatioprina e mesalazina, e cuidados locais com a área das fraldas. Iniciada também reposição de zinco oral. A criança apresentou importante melhora clínica e dermatológica em poucas semanas.
CONCLUSÕES: O diagnóstico da AE se dá com níveis séricos de zinco menores que 70 ug/dL. O tratamento envolve suplementação de zinco, com dose entre 1 e 3 mg/kg/dia. No caso descrito, o valor do zinco era de 65 ug/dL. Nesse caso, iniciamos reposição com 2 mg/kg/dia, com rápida melhora clínica. A AE por deficiência de zinco é uma complicação bem conhecida da DC, secundária à má absorção. No caso descrito, o quadro cutâneo veio após o quadro intestinal, com a deficiência na absorção do zinco sendo secundária à doença de Crohn, levando a um quadro com lesões extensas, mas com rápida resposta ao tratamento e com melhora importante do quadro.

Palavras-chave: Acrodermatitis, Crohn disease, Zinc deficiency.

ABSTRACT

OBJECTIVES: Acrodermatitis Enteropathica (AE) is a rare disease that can be transmitted by autosomal recessive inheritance, it can be related to parenteral nutrition without zinc, or it can be secondary to malabsorptive syndromes. Clinically, it is characterized by the triad of acral and periorificial dermatitis, alopecia and diarrhea, accompanied by growth restriction. The condition can be fatal if left untreated.
METHODS: We describe the case of a child with AE and Crohns Disease (CD), with AE being a known complication, secondary to malabsorption caused by CD.
RESULTS: Treatment for CD was started with systemic steroids, Azathioprine and Mesalazine, and local care with the diaper area. Oral zinc replacement was also started. The child showed significant clinical and dermatological improvement within a few weeks.
CONCLUSIONS: The diagnosis of AE is made with serum zinc levels lower than 70 ug/dL. Treatment involves zinc supplementation, at a dose ranging from 1 to 3 mg/kg/day. In the case described, the zinc value was 65 ug/dL. In this case, we started replacement with 2mg/kg/day, with rapid clinical improvement. Zinc deficiency AE is a well-known complication of CD, secondary to malabsorption. In the case described, the cutaneous condition came after the intestinal condition, with the deficiency in the absorption of zinc being secondary to Crohns Disease, leading to a condition with extensive lesions, but with a quick response to the treatment and with an important improvement of the condition.

Keywords: Acrodermatitis, Crohn disease, Zinc deficiency.


INTRODUÇÃO

A acrodermatite enteropática (AE) é uma doença rara, que se manifesta principalmente na infância, podendo ser congênita, transmitida por herança autossômica recessiva ou adquirida1.

Quando de caráter congênito, manifesta-se com o desmame do lactente, quando passam a receber outros leites com baixa disponibilidade de zinco. Quando de caráter adquirido, ocorre em crianças com nutrição parenteral sem zinco e em prematuros nos quais a necessidade de zinco é superior à quantidade fornecida pelo leite materno, ou secundária a síndromes disabsortivas2,3.

Clinicamente se caracteriza pela tríade clássica de dermatite de localização acral e periorificial, alopecia e diarreia, sendo acompanhada também por restrição de crescimento1,4.

Descrevemos o caso de uma criança com AE e doença de Crohn (DC), sendo a AE complicação conhecida, secundária à má absorção causada pela DC5.


RELATO DE CASO

Paciente feminina, de 1 ano e 6 meses, internada com suspeita de enterocolite crônica associada à má absorção e diarreia. Apresentava histórico de alteração do hábito intestinal 6 meses após a introdução do leite de vaca, por volta de 1 ano de idade, recebendo diagnóstico inicialmente de alergia à proteína do leite de vaca (APLV), associado a episódios de prolapso retal, sendo iniciada fórmula com aminoácidos livres, com diminuição do sangramento nas fezes, porém manutenção do quadro de diarreia. Há 2 meses apresentava sonolência e hipoatividade. Dessa forma, foi aventada a hipótese de doença inflamatória intestinal, principalmente doença de Crohn.

A paciente apresentava lesões na região inguinal e genital tipo placas extensas exulceradas (Figura 1), que surgiram concomitantes com o quadro diarreico, que se caracterizava por evacuações líquidas, associadas a raias de sangue. Associado ao quadro, apresentava irritabilidade e baixo ganho ponderal. Também referia há 2 meses edema facial e queda de cabelos (Figura 2). Negava febre ou demais sintomas sistêmicos, assim como alergias ou quadros patológicos na família. No momento da internação, fazia uso apenas de sulfato ferroso, vitamina A e D, e pesava 8,4 kg. Apresentava anemia, hipoalbuminemia, velocidade de hemossedimentação (VHS), proteína C-reativa (PCR) e fosfatase alcalina elevadas. Sorologias para sífilis, hepatites, toxoplasmose, citomegalovírus e HIV não reagentes. Tomografia de abdome evidenciado edema de alças colônicas com distensão de alças.


Figura 1. Placa eritematosa exulcerada na região genital, inguinal, perianal e glúteos.




Figura 2. Alopecia temporoparietal no couro cabeludo.



O valor sérico do zinco era 65 ug/dL (microgramas por decilitro), abaixo do limite inferior de 70 ug/dL, confirmando a hipótese de a deficiência de zinco ser devida à anomalia absortiva.

Os achados do exame histopatológico realizado na endoscopia digestiva alta e colonoscopia confirmaram a hipótese de doença de Crohn, com achados endoscópicos de inflamação e erosões difusas, associada a componente de alergia à proteína do leite de vaca. Os achados dermatológicos foram sugestivos de acrodermatite enteropática (AE), com palidez citoplasmática, vacuolização e necrose de queratinócitos.

Foi iniciado tratamento para a doença de Crohn com corticoide sistêmico e azatioprina, com posterior acréscimo de mesalazina, e iniciados também os cuidados locais com a área das fraldas, como creme de barreira, trocas mais frequentes das fraldas e sugestão de se deixar a criança alguns períodos do dia sem fraldas. Iniciada também reposição de zinco via oral, 2 mg/kg/dia. A criança apresentou importante melhora em poucas semanas, sendo a nova dosagem de zinco 114,7 ug/dL.


DISCUSSÃO

A AE ocorre em pacientes com anomalia na absorção enteral de zinco, secundária a síndromes disabsortivas, ou decorrente da mutação do gene transportador de zinco SLC39A4 que codifica a proteína transmembrana ZIP46-8. Essa proteína, presente no leite materno e nas secreções pancreáticas, é responsável pela absorção do zinco pela célula, permitindo que ele seja utilizado para a síntese de proteínas essenciais ao metabolismo. Outra mutação foi relatada em mães, no gene SLC30A2, que resulta na diminuição da secreção de zinco no leite materno, levando a quadros de deficiência de zinco em lactentes7.

Como o zinco está presente no leite materno, as manifestações clínicas dessa deficiência costumam surgir ao desmame dos lactentes acometidos, quando passam a receber outros leites com baixa disponibilidade desse. Nos casos em que a mutação está presente na mãe, o quadro se inicia precocemente.

A incidência dessa doença é estimada em 1:500.000 crianças, sem predileção por raça ou sexo. Caracteriza-se da pela tríade: dermatite, diarreia e alopecia. No entanto, apenas 20% dos pacientes apresentam os três componentes simultaneamente9. As lesões cutâneas se iniciam como placas eritematosas, erosivas, escamosas, com borda crostosa característica na periferia, que ocorrem na face, periorais, couro cabeludo, região anogenital, extremidades e regiões extensoras, como cotovelos e joelhos7,10. Ocorrem vesículas, bolhas e pústulas, que podem se exulcerar e apresentar infecção secundária por bactérias, principalmente Staphylococcus aureus, e por Cândida. Pode ocorrer queilite, estomatite, onicodistrofia, paroníquia, alopecia difusa progressiva, alterações pigmentares e na cicatrização de feridas. Além disso, como a deficiência de zinco leva a uma queda na imunidade, ocorre maior predisposição a infecções fúngicas e bacterianas. Também são relatadas anormalidades oculares conjuntivite, blefarite e fotofobia6. Sintomas sistêmicos, como diarreia com fezes espumosas e volumosas, irritabilidade, depressão mental, anemia, distúrbios no crescimento e no desenvolvimento, são descritos. O quadro pode ser fatal se não tratado.

Como diagnósticos diferenciais, pode-se citar a desnutrição energético-proteica, dermatite de contato, psoríase, dermatite seborreica, epidermólise bolhosa, candidose, síndrome de Leiner, histiocitose de células de Langerhans.

Para o diagnóstico do quadro é necessário realizar a dosagem sérica do zinco, que é baixa nesses doentes — níveis menores que 70 ug/dL em jejum e 65 ug/dL após refeição. A fosfatase alcalina, uma metaloproteinase dependente de zinco, está reduzida e pode ser útil para o diagnóstico em alguns casos. Nos casos de dúvida diagnóstica, pode-se lançar mão da análise histopatológica da pele afetada, que evidencia hiperplasia psoriasiforme com necrólise. O exame padrão-ouro para a forma congênita é o teste genético, com pesquisa de mutações no gene SLC39A4.

O tratamento envolve suplementação enteral ou parenteral de zinco, por toda a vida do paciente nos casos congênitos e nos casos adquiridos até o controle da doença de base e normalização dos níveis de zinco, com dose média de 1 a 3 mg/kg/dia de zinco elementar6. Entre as formulações disponíveis, pode-se encontrar o gluconato de zinco e o sulfato de zinco, disponíveis por via oral, sendo o último o de primeira escolha e, por via parenteral, pode ser utilizado o cloreto de zinco. A resposta ao tratamento é rápida e com melhora importante do quadro. Os efeitos colaterais mais comuns incluem hipocupremia, irritação e hemorragia gástrica. Deve-se monitorar, frequentemente, os níveis séricos de zinco.

A doença inflamatória intestinal (DII) é uma doença idiopática e inflamatória do trato intestinal. Os dois principais tipos de DII são a colite ulcerativa (UC) e a doença de Crohn (DC). A UC é limitada ao cólon e/ou reto e afeta apenas as camadas mucosas e submucosas do intestino, já a DC pode afetar qualquer parte do intestino, da boca ao ânus, a maioria dos casos começando no íleo terminal, e afeta toda a espessura (transmural) da parede intestinal11.

Entre os pacientes com doenças inflamatórias intestinais, 40% apresentam manifestações extraintestinais, sendo essas mais comuns em pacientes com DC quando comparados aos pacientes com retocolite ulcerativa. A AE por deficiência de zinco é uma complicação bem conhecida da DC5,12, secundária à má absorção, e sendo a manifestação cutânea de deficiência nutricional mais comum nas doenças inflamatórias intestinais11.

No caso descrito, o quadro cutâneo veio após o quadro intestinal, com a deficiência na absorção do zinco sendo secundária à doença de Crohn, levando a um quadro com lesões extensas.


REFERÊNCIAS

1. Chisaki, C. Alterações do metabolismo de cálcio, ferro, zinco e cobre. In: Belda Junior W, Di Chiacchio N, Criado PR. Tratado de Dermatologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 2018. p. 1971-6.

2. Rivitti EA. Alterações do metabolismo do cálcio, ferro, cobre, zinco e selênio. In: Rivitti EA. Dermatologia de Sampaio e Rivitti. 4ª ed. São Paulo: Artes Médicas; 2018. p. 960-7.

3. Ranugha P, Sethi P, Shastry V. Acrodermatitis enteropathica: the need for sustained high dose zinc supplementation. Dermatol Online J [Internet]. 2018 Dec; [access in 2021 jul 2];24(12):15-9. Published 2018 Dec 15. Available from: https://escholarship.org/uc/item/1w9002sr.

4. Martínez-Bustamante ME, Peña-Vélez R, Almanza-Miranda E, Aceves-Barrios CA, Vargas-Pastrana T, Morayta-Ramírez Corona ARR. Acrodermatitis enteropática [Acrodermatitis enteropathica]. Bol Med Hosp Infant Mex. 2017 Jul/Aug;74(4):295-300. Spanish. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bmhimx.2017.05.002. Epub 2017 Jul 5.

5. Diaconescu S, Strat S, Balan GG, Anton C, Stefanescu G, Ioniuc I, et al. Dermatological Manifestations in Pediatric Inflammatory Bowel Disease. Medicina (Kaunas). 2020 Aug 23;56(9):425. DOI: https://doi.org/10.3390/medicina56090425.

6. Del Ciampo IRL, Sawamura R, Del Ciampo LA, Fernandes MIM. Acrodermatitis Enteropathica: Clinical Manifestations And Pediatric Diagnosis. Rev Paul Pediatr. 2018 Apr/Jun;36(2):238-41. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-0462/;2018;36;2;00010. Epub 2018 Jan 15.

7. Jagadeesan S, Kaliyadan F. Acrodermatitis Enteropathica. 2020 Apr 17. In: StatPearls [Internet]. 2020; [access in 2021 jul 2]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK441835/.

8. Nistor N, Ciontu L, Frasinariu OE, Lupu VV, Ignat A, Streanga V.Acrodermatitis Enteropathica: A Case Report. Medicine (Baltimore). 2016 May;95(20):e3553. DOI: https://doi.org/10.1097/MD.0000000000003553.

9. Silva LLC, Sobral Filho JF, Albuquerque LMA, Cavalcanti NS, Brito PKST. Acrodermatite enteropática em uma criança com deficiência de zinco herdada. Resid Pediatr. 2014;4(3):106-8.

10. Habka S, Monte L, Baião B. Acrodermatite enteropática ou síndrome de má absorção secundária à fibrose cística? Resid Pediatr. 2021;11(3):1-3. DOI: https://doi.org/10.25060/residpediatr-2021.v11n3-208.

11. Huang BL, Chandra S, Shih DQ. Skin manifestations of inflammatory bowel disease. Front Physiol. 2012;3:13. Published 2012 Feb 6. DOI: https://doi.org/10.3389/fphys.2012.00013.

12. Krasovec M, Frenk E. Acrodermatitis enteropathica secondary to Crohn’s disease. Dermatology. 1996;193(4):361-3. DOI: https://doi.org/10.1159/000246296.










1. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Departamento de infectologia, dermatologia, diagnóstico por imagem e radioterapia - Botucatu - São Paulo - Brasil
2. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Medicina - Botucatu - São Paulo - Brasil
3. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Departamento de Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Gabriela Roncada Haddad
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
Av. Prof. Mário Rubens Guimarães Montenegro, s/n - UNESP - Campus de Botucatu
Botucatu/SP - CEP 18618687
E-mail: gabriela.haddad@yahoo.com

Data de Submissão: 27/09/2021
Data de Aprovação: 03/09/2023