ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Perfil clínico e epidemiológico de crianças e adolescentes portadores de hemofilia em um centro de referência

Clinical and epidemiological profile of children and adolescents with hemophilia in a reference center

RESUMO

OBJETIVO: identificar dados clínico-epidemiológicos de crianças e adolescentes com hemofilia acompanhados no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí, caracterizando-os quanto faixa etária, procedência, tipo, gravidade, principais complicações, uso de profilaxia e adesão ao seguimento.
MÉTODO: estudo descritivo, observacional e transversal, através de dados extraídos dos prontuários de 63 pacientes abaixo de 18 anos. Os resultados obtidos foram analisados por meio de frequência absoluta e relativa, além de teste qui-quadrado (x2).
RESULTADOS: Entre 63 pacientes, 95% eram portadores de hemofilia tipo A, 67% acometidos pela forma grave e 59% pertenciam à faixa etária de 11 a 18 anos. A presença de complicações esteve associada a maior número de atendimentos por ano. Estas predominaram na forma de artropatia crônica (37%), enquanto que a hemorragia intracraniana (HIC) acometeu 6% dos enfermos. Nos pacientes com indicação de profilaxia, 7% não a realizavam. Dentre os 05 pacientes com hemofilia grave que estiveram presentes em 01 atendimento ao ano, 80% eram oriundos do interior e 20% de outro estado.
CONCLUSÕES: A caracterização clínico-epidemiológica das crianças e adolescentes nesse centro de referência especializada corrobora com os dados disponíveis na literatura.

Palavras-chave: Hemofilia A, Hemofilia B, Fatores de coagulação sanguínea, Epidemiologia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To identify clinical and epidemiological data of children and adolescents with hemophilia followed at the Center for Hematology and Hemotherapy of Piaui, characterizing them in terms of age, place of residence, type, severity, main complications, use of prophylaxis and adherence to follow-up.
METHOD: Descriptive, observational and cross-sectional study, using data extracted from the medical records of 63 patients under 18 years of age. The results obtained were analyzed using absolute and relative frequency, in addition to the chi-square test (x2).
RESULTS: Among 63 patients, 95% had type A hemophilia, 67% had the severe form, and 59% were aged between 11 and 18 years. The presence of complications was associated with a greater number of visits per year. These predominated in the form of chronic arthropathy (37%), while intracranial hemorrhage (ICH) affected 6% of patients. In patients with indication for prophylaxis, 7% did not do it. Among the 05 patients with severe hemophilia who attended 01 visit per year, 80% were from the inland cities and 20% from another state.
CONCLUSIONS: The clinical and epidemiological characterization of children and adolescents in this specialized reference center corroborates the data available in the literature.

Keywords: Hemophilia A, Hemophilia B, Blood coagulation factors, Epidemiology.


INTRODUÇÃO

A hemofilia é uma coagulopatia que pode ser adquirida ou hereditária. As formas hereditárias resultam de alterações genéticas, enquanto as adquiridas são raras e geralmente associadas a doenças autoimunes, neoplasias ou têm origem desconhecida. Existem dois tipos de hemofilia: a hemofilia A, associada à deficiência de fator VIII, e a hemofilia B, caracterizada pela deficiência de fator IX1.

Em termos gerais, a hemofilia afeta cerca de 400 mil portadores em todo o mundo, sendo o tipo A (80-85%) mais comum que o tipo B². Crianças com hemofilia grave apresentam alto risco de sangramento espontâneo ou trauma mínimo; qualquer órgão pode ser afetado. Os locais mais comuns são articulações, músculos e trato gastrointestinal. O tratamento consiste na reposição do fator deficiente, na presença de sangramento ou como medida profilática³. Contudo, a não adesão dos pacientes implica não apenas no fracasso das medidas profiláticas e terapêuticas bem-sucedidas, mas também no desgaste da relação equipe clínica-paciente4.

As complicações da hemofilia podem estar relacionadas à doença, como artropatia hemofílica e hemorragia intracraniana (HIC), ou relacionadas ao tratamento, como a transmissão do vírus da hepatite B (HBV), da hepatite C (HCV) e do vírus da imunodeficiência humana (HIV) através do uso de hemocomponentes e hemoderivados. Contudo, a transmissão de doenças através de componentes sanguíneos e seus produtos é atualmente rara. Outra possível complicação é o desenvolvimento de inibidores.

Dada a importância clínica da doença, o presente estudo pretende traçar o perfil clínico-epidemiológico de crianças e adolescentes (0 a 18 anos) com hemofilia cadastrados no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí. Para isso, os pacientes hemofílicos foram caracterizados quanto à idade, proveniência, tipo e gravidade da doença, principais complicações associadas, presença de inibidores, uso de profilaxia e adesão ao seguimento com base no número de consultas/ano.


MÉTODOS

O presente estudo descritivo, observacional e transversal incluiu pacientes cadastrados no sistema informatizado Web Coagulopatias. Esse sistema, gerenciado pelo Ministério da Saúde, permite o acompanhamento do Programa Nacional de Coagulopatias Hereditárias por meio dos registros atualizados dos pacientes cadastrados nos serviços.

A amostra foi composta por todos os pacientes com diagnóstico de hemofilia confirmado laboratorialmente, com idade inferior a 18 anos até a data de 31 de dezembro de 2018, com cadastro ativo no sistema Web Coagulopatias e registros atualizados no prontuário do Hemocentro. A amostra inicial foi composta por 70 pacientes, dos quais foram excluídos sete, cujos dados estavam incompletos e/ou não disponíveis.

A coleta de dados utilizou um formulário que investigava as seguintes variáveis: sexo, faixa etária, proveniência, frequência de consultas, gravidade da doença, complicações, tipo de hemofilia, uso de profilaxia e presença de inibidores. Após autorização prévia do Hemocentro do Piauí, os pesquisadores coletaram os dados de prontuários disponibilizados pelo setor de arquivo médico no período de julho a dezembro de 2018.

As informações foram transcritas para uma planilha Excel 2016, utilizando frequências absolutas e relativas, além do teste do qui-quadrado (χ²) para análise dos resultados obtidos. Para este teste, foram considerados significativos os valores com p menor ou igual a 0,05.

A pesquisa foi realizada em conformidade com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi iniciada apenas após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Piauí (CAAE: 80635317.8.0000.5209).


RESULTADOS

Dos 70 pacientes elegíveis, 63 atenderam aos critérios de inclusão do estudo. Houve predomínio da faixa etária de 11 a 18 anos, que contabilizou 59% da amostra (Tabela 1). Nesta pesquisa, todos os indivíduos eram do sexo masculino (Tabela 1). Hemofilia A foi diagnosticada em 95% dos pacientes incluídos.




Quanto à proveniência, 44% dos pacientes residiam em cidades do interior do Piauí, 37% residiam na capital e 19% vieram de outros estados brasileiros, como o Maranhão (Tabela 1). Em nosso estudo, 32% dos pacientes foram classificados como portadores de hemofilia leve, 2% como portadores de hemofilia moderada e 67% como portadores de hemofilia grave (Tabela 2). Entre os pacientes com a forma leve da doença, 45% tinham idade entre 0 e 10 anos (lactentes, pré-escolares e escolares) e 55% eram adolescentes. Na forma grave, a faixa etária até escolares correspondeu a 40% e a de adolescentes a 60% do total.




Dos 63 pacientes estudados, 14 (22%) realizaram nenhuma ou apenas uma consulta por ano; 15 (24%) pacientes foram a duas ou três consultas/ano; e 34 (54%) foram a quatro ou mais consultas por ano (Tabela 2). Entre estes últimos, 68% apresentaram alguma complicação clínica da hemofilia. Entre aqueles com nenhuma ou uma consulta por ano, 36% apresentaram alguma complicação da doença (Figura 1). Na análise pelo teste do qui-quadrado, os dados amostrais apontam evidências estatísticas de que a presença de complicações apresentou associação com maior assiduidade às consultas no Hemocentro do Piauí (p=0,04).


Figura 1. Relação entre número de consultas e presença de complicações de hemofilia em crianças e adolescentes atendidos no Hemocentro do Piauía.



Do total de pacientes, 33 não apresentaram complicações, sendo 36% procedentes da capital piauiense e 64% de cidades do interior ou de outro estado. Por outro lado, 30 pacientes apresentaram pelo menos uma complicação advinda da hemofilia, sendo 37% procedentes da capital piauiense e 63% de cidades do interior ou de outro estado. Na análise pelo teste do qui-quadrado, os dados amostrais não indicaram evidências estatísticas de associação entre proveniência do paciente e presença de complicações da doença (p=0,98).

Entre os pacientes que não apresentaram complicações, 52% tinham a forma leve da doença e 48% a forma grave. No presente estudo, 23 pacientes (37%) evoluíram para artropatia crônica após episódios recorrentes de hemorragia articular, a complicação mais frequentemente observada (Tabela 3). Além disso, 11% apresentaram inibidores (Tabela 3), sendo 8% com inibidores de alta resposta e 3% com inibidores de baixa resposta. HIC foi observada em quatro pacientes (6%).




Não houve pacientes com diagnóstico concomitante de hemofilia e infecção por HIV e/ou HBV. Porém, dois por cento dos pacientes com hemofilia foram diagnosticados com Hepatite C. Em nossa amostra, foi observada com menor frequência a presença de outras complicações da hemofilia como síndrome de compartimento, choque hipovolêmico, compressão neural e hemorragia digestiva alta.

Do total de pacientes do estudo, 68% tiveram indicação de profilaxia por doença na forma moderada ou grave. Desses 43 pacientes, apenas três (7%) não faziam uso de profilaxia e um apresentava fenótipo levemente agressivo, sem complicações.


DISCUSSÃO

Segundo Rezende5, a hemofilia ocorre quase exclusivamente em indivíduos do sexo masculino devido à transmissão hereditária pelo cromossomo X mutante (cerca de 70% dos casos). Este dado reflete a inclusão de apenas indivíduos do sexo masculino na amostra deste estudo. No entanto, mulheres também podem ser afetadas congenitamente como resultado da união de um homem com hemofilia e uma mulher com o alelo recessivo. Em ambos os sexos, a existência de hemofilia também pode ser explicada através de novas mutações.

A hemofilia ocorre com uma frequência estimada de 1/10.000 nascimentos, em países com ferramentas diagnósticas eficientes. De acordo com a frequência mundial estimada e considerando a média de 50 mil nascidos vivos/ano no Piauí, seria razoável esperar que tivéssemos 90 hemofílicos cadastrados dentro da faixa etária prevista neste estudo6. Assim, como nossa amostra foi composta por 70 pacientes, podemos considerar que há subdiagnóstico de casos de hemofilia no estado.

Em termos gerais, a doença afeta cerca de 400 mil portadores em todo o mundo, sendo a hemofilia A (80-85%) mais comum que a B². Tal prevalência foi observada neste estudo e em Ferreira7, em que 84,6% dos pacientes estudados tinham hemofilia A e 15,4% tinham hemofilia B.

A gravidade da doença é diretamente proporcional ao grau de deficiência do fator; a frequência e gravidade dos episódios hemorrágicos geralmente estão relacionadas às concentrações plasmáticas do fator deficiente8. Pacientes com a forma grave apresentam menos de 1% do fator circulante em relação ao valor normal, com presença de sangramento articular (hemartrose) ou muscular (hematomas) relacionado a trauma, ou muitas vezes sem causa aparente (espontâneo). Indivíduos com a forma moderada da doença apresentam fator circulante na faixa de 1% a 5% do normal, com sangramento normalmente relacionado a trauma, apenas ocasionalmente espontâneo, e sangramento prolongado após pequenos traumas ou procedimentos. Já pacientes com forma leve apresentam fator circulante na faixa de 5% a < 40% do normal, com sangramento associado a grandes traumas ou procedimentos médicos9.

No presente estudo, 67% dos pacientes apresentavam a forma grave da doença, seguida da forma leve (32%) e da forma moderada (2%), diferentemente do relato de Ferreira7, em que houve predomínio da forma moderada da doença (41%), seguida da forma grave (38,5%) e da forma leve (20,5%). Contudo, o autor considerou pacientes de todas as faixas etárias, não se restringindo a crianças e adolescentes. Tanto na forma leve quanto na grave da doença, houve predomínio de pacientes com idade entre 11 e 18 anos (55% e 60% respectivamente), como visto no estudo de Bastos e Cavaglieri.¹ Os autores relataram que adolescentes eram os mais acometidos por hemofilia, com 26% dos pacientes pertencentes à faixa etária de 11 a 20 anos. No referido estudo, contudo, a gravidade da doença não foi avaliada.

Hematomas aparecem geralmente entre o primeiro e o terceiro ano de vida. Eles ocorrem principalmente nos músculos glúteos, joelhos e região frontal da face, devido a quedas, quando a criança começa a andar³. Pereira10 relata que pacientes mais velhos tendem a apresentar menos episódios de sangramento devido à diminuição das atividades físicas e à redução do número de traumas diários de menor intensidade, uma vez que tendem a se adaptar a um estilo de vida diferente.

Dentre as complicações da hemofilia, a hemartrose representa o achado mais característico dos pacientes com a doença, podendo evoluir para artropatia crônica, condição altamente incapacitante¹¹ e complicação mais frequente identificada no presente estudo. Garbin et al¹² relataram presença ainda mais elevada de artropatia crônica em seu estudo, com acometimento observado em 57% dos pacientes hemofílicos analisados.

A artropatia hemofílica é uma doença poliarticular que se manifesta como rigidez articular e dor crônica, afetando principalmente as articulações do tornozelo, joelho e cotovelo. As hemorragias intra-articulares são frequentes, ocorrendo até 20 a 30 vezes/ano. Sua progressão depende da quantidade de hemartrose13. Quando há redução da capacidade funcional do indivíduo, terapias mais complexas, como cirurgias ortopédicas e radiossinoviortese, podem ser necessárias para corrigir deformidades articulares, substituir articulações comprometidas ou como tratamento paliativo10.

Onze por cento dos pacientes apresentavam inibidores, uma das complicações mais graves segundo Morosini et al.14. Os inibidores são autoanticorpos que neutralizam a atividade do fator de coagulação exógeno administrado como terapia de reposição15. Atualmente, sabemos que o desenvolvimento de inibidores leva ao aumento da morbidade e à piora da qualidade de vida9.

A incidência de hemorragia intracraniana (HIC) no presente estudo foi de 6%, corroborando a incidência estimada em outros estudos, que relatam variação de 2,2% a 7,5% e de 2,6% a 13,8% dos casos. Trata-se de uma importante causa de morbidade e mortalidade em pessoas com hemofilia, resultando em óbito em 2-8% dos casos. O risco de HIC varia de acordo com o histórico de trauma em 45-60% dos casos16,17. O paciente hemofílico com esta complicação necessita, entre outros aspectos, de reposição de concentrado de fator de coagulação, neurocirurgia de urgência (em casos específicos), além de acesso rápido e adequado às vias aéreas para evolução favorável. A redução da taxa de mortalidade está relacionada ao conhecimento do quadro clínico do paciente, diagnóstico precoce e manejo desses pacientes em unidades de terapia intensiva16.

A transmissão do vírus da hepatite B (HBV), da hepatite C (HCV) e do vírus da imunodeficiência humana (HIV), através do uso de hemocomponentes e hemoderivados de primeira geração, resultou em uma elevada taxa de mortalidade de pacientes com hemofilia nos anos 80 e 907. A ausência de pacientes com diagnóstico concomitante de hemofilia e infecção por HIV e/ou HBV corrobora estudos que demonstram redução nas taxas de infecções transmitidas após exposição a hemoderivados. Isso ocorreu graças ao estabelecimento de procedimentos para reduzir o risco de contaminação, tais como: seleção criteriosa de doadores e triagem plasmática, realização de procedimentos de inativação e eliminação viral e avanços na tecnologia diagnóstica com ensaios de ácidos nucleicos9. Entretanto, a presença de hemofílicos com diagnóstico de hepatite C pode ser explicada pela ocorrência de infecção prévia por HCV não relacionada à reposição de fator e/ou falha no processo de purificação do hemoderivado transfundido.

Não houve evidência estatística de associação entre proveniência e presença de complicações da doença. Além disso, observamos que 52% dos pacientes sem complicações apresentavam a forma leve da doença, o que está de acordo com a evolução clínica da hemofilia. Porém, constatamos que 48% dos pacientes sem evolução grave apresentaram a forma grave da doença, o que pode ser justificado pelo uso regular de profilaxia contínua. No presente estudo, 93% dos pacientes com forma grave ou moderada da doença fizeram uso de profilaxia com fator de coagulação, justificando a redução do número de eventos hemorrágicos agudos apesar da gravidade da doença.

Pereira10 destaca que o uso de profilaxia pode beneficiar significativamente os hemofílicos de 0 a 18 anos que não foram significativamente acometidos pela doença. Esta estratégia consiste na infusão regular de fator de coagulação VIII ou IX para prevenir sangramentos e prevenir ou reduzir danos articulares. No mesmo estudo, os autores citam como benefícios da terapia profilática: a prevenção de futuras lesões articulares; maior controle da doença; menos consultas hospitalares; redução do absenteísmo escolar e/ou laboral; oportunidade de participar de atividades gerais e reduzir a ansiedade familiar. Como pontos negativos, destacam a adição do procedimento de infusão à rotina matinal; o alto custo; dificuldades do acesso venoso; exposição exagerada a riscos devido ao excesso de confiança e à incapacidade do paciente de reconhecer precocemente os sinais de sangramento.

Para pacientes com hemofilia A ou B com fenótipo grave (o que pode incluir pacientes com hemofilia moderada que apresentam essa característica), a Federação Mundial de Hemofilia recomenda a administração de profilaxia suficiente para prevenir sangramento em todos os momentos, individualmente, considerando o fenótipo hemorrágico do paciente, o estado das articulações, a farmacocinética individual, além da autoavaliação e preferência do paciente18.

Segundo o Ministério da Saúde9, o paciente deve ser avaliado periodicamente pelo menos uma vez ao ano, por equipe multidisciplinar, com maior frequência na infância e dependendo de complicações. Na presente pesquisa, entre os pacientes com quatro ou mais consultas por ano, constatamos que 68% apresentaram alguma complicação clínica da hemofilia. O maior número de consultas/ano no hemocentro, em nosso estudo, apresentou associação com presença de complicações (p=0,04). Contudo, mais estudos são necessários para definir o número de consultas necessárias para acompanhamento regular, principalmente nos casos de presença de complicações.

Cinco pacientes com a forma grave da doença foram a uma consulta por ano, sendo 80% deles provenientes de cidades do interior do Piauí e 20% de outros estados. Assim, podemos inferir que o menor número de consultas/ano pode ser justificado pelo local de residência do paciente e provável dificuldade de acesso ao hemocentro no Piauí.

O estudo de Pereira10 também cita a dificuldade de aces-so ao serviço como um dos fatores contribuintes para adesão deficiente. Os autores observaram que há vários elementos que contribuem negativamente, como: falta de informação sobre a doença, ausência de profissionais capacitados na área da saúde para cuidar dos pacientes hemofílicos, indisponibilidade de fatores de coagulação, preconceito e dependência de familiares e tratamento. Portanto, é importante incentivar o acompanhamento regular e a adesão ao tratamento da hemofilia, a fim de evitar suas complicações e oferecer melhor qualidade de vida aos pacientes hemofílicos.

Além disso, segundo Vrabic et al4, a descrença do paciente quanto à perspectiva de melhora do seu quadro clínico é relevante para a não adesão ao tratamento. Segundo os autores, o fato é atribuído à dor física do sangramento articular e à labilidade emocional do isolamento terapêutico, o que pode justificar a descrença dos hemofílicos quanto à melhora do quadro já estabelecido. Somado a isso, alguns pacientes acreditam que a consulta médica não atende às suas expectativas. Tais fatores também justificariam um número reduzido de consultas entre os pacientes avaliados neste estudo.

O presente estudo apresenta algumas limitações. Entre elas, o modelo retrospectivo direciona o uso das informações apenas àquelas disponíveis em prontuários. Somado a isso, existe a possibilidade de subdiagnóstico dos casos de hemofilia no Estado, fazendo com que crianças e adolescentes recebam diagnósticos tardios, sendo encaminhados ao centro de referência apenas na idade adulta.

Podemos concluir que a caracterização clínica e epidemiológica das crianças e adolescentes deste centro de referência especializado corrobora os dados disponíveis na literatura. Embora pouco prevalente, é de grande importância o acesso desses pacientes aos serviços públicos de saúde, visando diagnóstico e intervenção precoces, reduzindo o número de comorbidades e melhorando a qualidade de vida deles e de seus familiares.


AGRADECIMENTOS

Ao Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí por permitir a realização deste estudo.


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1. Universidade Estadual do Piauí, Centro de Ciências da Saúde - Teresina - Piauí - Brasil
2. Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí, Hematologia Pediátrica - Teresina - Piauí - Brasil

Endereço para correspondência:

Marcela Bezerra Marques
Universidade Estadual do Piauí
Rua Olavo Bilac, nº 2335, Centro (Sul)
Teresina, PI, Brasil. CEP: 64001-280
E-mail: marcelamarques995@gmail.com

Data de Submissão: 19/02/2022
Data de Aprovação: 01/06/2023