ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Síndrome de Prune Belly com fístula vesicocutânea: relato de caso raro e revisão da literatura

Prune Belly syndrome with vesicocutaneous fistula: a rare case report and literature review

RESUMO

A síndrome de Prune Belly (SPB) é uma malformação complexa rara, que acomete preferencialmente recém-nascidos do sexo masculino. Apresenta-se com um amplo espectro de alterações que incluem a deficiência da musculatura abdominal, graus variados de displasia renal e obstrução do trato urinário, além de criptorquidia bilateral. Em geral, apresenta-se associada a outras anomalias do desenvolvimento, principalmente de origem cardíaca, pulmonar e gastrointestinal. Apesar dos inúmeros avanços no tratamento de malformações complexas, a morbimortalidade na SPB mantém-se elevada, decorrente da falência renal precoce e das malformações associadas. Este é um relato de caso de um recém-nascido do sexo masculino, inserido em contexto social complexo, nascido de parto vaginal, prematuro, com idade gestacional de 36 semanas e 1 dia. Apresentou à avaliação inicial na sala de parto: genitália externa masculina, criptorquidia bilateral, abdome flácido e escavado, pele apergaminhada sugestivo de ausência da musculatura abdominal, esforço respiratório leve e bradicardia. Recebeu ventilação com pressão positiva sendo encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva neonatal (UTIn) onde se constatou fístula vesicocutânea e falência renal, apesar da realização de vesicostomia, evoluindo para o óbito com 1 mês e 1 dia de idade cronológica. As malformações congênitas complexas, como a SPB, demandam avaliação individualizada para que melhores resultados pós-natais sejam alcançados. Contudo deve-se avaliar com cautela a limitação dos cuidados terapêuticos, tendo em vista a grande morbidade que acompanha esses pacientes. O presente artigo tem como objetivo descrever um caso raro da SPB detalhando a evolução dos pacientes portadores dessa malformação.

Palavras-chave: Síndrome do abdome em ameixa seca, Criptorquidismo, Injúria renal aguda, Recém-nascido, Cuidados paliativos.

ABSTRACT

Prune Belly syndrome (PBS) is a rare complex malformation that preferentially affects male newborns. It presents with a wide spectrum of alterations that include abdominal muscle deficiency, varying degrees of renal dysplasia and urinary tract obstruction, in addition to bilateral cryptorchidism. In general, it is associated with other developmental anomalies, mainly of cardiac, pulmonary and gastrointestinal origin. Despite numerous advances in the treatment of complex malformations, morbidity and mortality in PBS remains high, due to early renal failure and associated malformations. This is a case report of a male newborn, inserted in a complex social context, born by vaginal delivery, premature, with a gestational age of 36 weeks and 1 day. At the initial assessment in the delivery room, he presented: male external genitalia, bilateral cryptorchidism, flabby and hollowed abdomen, parchment skin suggestive of the absence of abdominal muscles, mild respiratory effort and bradycardia. He received positive pressure ventilation and was referred to the Neonatal Intensive Care Unit (UTIn) where a vesicocutaneous fistula and renal failure were found, despite the vesicostomy, progressing to death at 1 month and 1 day of chronological age. Complex congenital malformations, such as PBS, require individualized assessment so that better postnatal results are achieved. However, the limitation of therapeutic care must be carefully evaluated, considering the great morbidity that accompanies these patients. This article aims to describe a rare case of PBS, detailing the evolution of patients with this malformation.

Keywords: Prune Belly Syndrome, Cryptorchidism, Acute Kidney Injury, Infan, Newborn, Palliative care.


INTRODUÇÃO

A SPB é uma doença congênita rara que acomete aproximadamente 3,8 para cada 100.000 nascidos vivos1,2. É mais prevalente entre recém-nascidos do sexo masculino, que totalizam cerca de 95% dos pacientes acometidos. Caracteriza-se pela presença da tríade clássica: deficiência da musculatura abdominal, anormalidades do trato genitourinário e criptorquidia bilateral. As alterações do trato urinário são de amplo espectro de gravidade e incluem a hipoplasia ou displasia renal, hidronefrose, ectasia ureteral, dilatação da bexiga e obstrução uretal. À ectoscopia, o abdome é comumente descrito com aspecto de “ameixa seca” devido à ausência parcial ou total dos músculos da parede abdominal1,2.

A mortalidade da SPB é superior à 50% e há grande morbidade, sendo que 67% dos acometidos evoluem com falência renal e 48% necessitam de suporte ventilatório mecânico no período neonatal. Além disso, a morbimortalidade é agravada pela associação com defeitos pulmonares, esqueléticos, cardíacos e gastrointestinais, que ocorrem em cerca de 75% dos casos2-4.

A etiologia da síndrome não é totalmente elucidada, porém a concordância entre gêmeos monozigóticos (12,2/100.000 nascidos vivos) aponta para a provável associação genética. Cerca de 3% dos diagnósticos se associam com mutações do fator nuclear do hepatócito (HNF1β) que participa da diferenciação do mesoderma e do ectoderma na fase embrionária5. Nessa teoria, as anomalias decorrem do desenvolvimento anormal do primeiro miótomo lombar, entre 6 e 10 semanas de gestação, acarretando hipoplasia ou agenesia da musculatura abdominal, além das anormalidades do trato urinário. Outra hipótese sugere que malformações e obstruções da uretra desencadeiam a distensão do sistema pielocalicial impedindo o desenvolvimento adequado. Além disso, a distensão da bexiga poderia interferir na descida dos testículos causando a criptorquidia bilateral. Nesse caso, a maior incidência da síndrome no sexo masculino e a variedade de alterações do trato urinário seriam explicadas pela morfogênese mais complexa da uretra masculina6.

O presente artigo visa relatar um caso da SPB destacando as inúmeras apresentações e as particularidades do manejo clínico através da revisão da literatura atual.


RELATO DE CASO

Gestante, 31 anos, G3P2A0, adicta em drogas, com idade gestacional de 36 semanas e 1 dia estimada por ultrassonografia obstétrica do 2º trimestre. Admitida no hospital em trabalho de parto prematuro. Afirmou uso de cocaína, maconha, risperidona, clonazepan e fluoxetina durante a gestação. Não realizou acompanhamento pré-natal adequado. Apresentava cartão de pré-natal com sorologias negativas para HIV, sífilis, hepatite B, toxoplasmose e rubéola no 2º trimestre de gestação e laudo de ultrassonografia obstétrica evidenciando polidrâmnio, feto com ascite volumosa, desproporção tóraco-abdominal, dilatação pielocalicial bilateral e bexiga não visualizada. Acrescentou ter dois filhos hígidos.

Ao exame físico, parturiente com dinâmica uterina presente e dilatação de 8 centímetros do colo uterino, evoluiu para parto vaginal espontâneo sem intercorrências. Durante a avaliação do recém-nascido, verificou-se genitália externa masculina, criptorquidia bilateral, abdome flácido e escavado com pele apergaminhada sugestivo de ausência da musculatura abdominal, esforço respiratório leve, bradicardia, sendo iniciada ventilação com pressão positiva com boa resposta (Figura 1).


Figura 1. Abdome em ameixa seca



O recém-nascido foi conduzido à UTIn onde recebeu suporte ventilatório mecânico invasivo sob sedação contínua. Exames laboratoriais da admissão evidenciaram anemia normocítica e normocrômica, plaquetopenia, hiperpotassemia (5,0 mEq/L), elevação da ureia (22 mg/dL) e da creatinina (1,5 mg/dL). No segundo dia de vida, apresentou anúria, drenagem de urina pelo coto umbilical e deterioração da função renal apresentando piora da hipercalemia (6,0 mEq/L), da ureia (26 mg/dL) e da creatinina (2,8 mg/dL).

À avaliação ultrassonográfica das vias urinárias, verificou-se dilatação do sistema pielocalicial à esquerda e bexiga não totalmente visualizada.

Durante a internação, progrediu para complicações infecciosas do trato urinário, complicações hemorrágicas, instabilidade hemodinâmica refratária a drogas vasoativas, piora progressiva da função renal alcançando níveis de ureia de 167 mg/dL e creatinina de 3,48 mg/dL, postergando a vesicostomia indicada pela urologia. Atingiu condições para realização do procedimento, porém não apresentou melhora significativa da função renal após intervenção cirúrgica.

Na pesquisa de malformações associadas, o ecocardiograma identificou comunicação interatrial tipo ostium secundum moderada, persistência do canal arterial moderado e aumento moderado do átrio e do ventrículo direitos.

Diante da deterioração da função renal, o recém-nascido foi avaliado por equipe multidisciplinar com objetivo de transferência para centro de referência, devido à indicação de terapia renal de substituição. Contudo mantinha-se arresponsivo ao exame neurológico sem sedação e apresentava dificuldade para desmame da ventilação mecânica invasiva. Assim, tendo em vista o prognóstico reservado do paciente, foi determinado, juntamente com os familiares, a limitação dos esforços terapêuticos destinados ao paciente, que evoluiu com óbito após 1 mês e 1 dia de idade cronológica.


DISCUSSÃO

A SPB é caracterizada por um amplo espectro de apresentação. Há 3 formas de apresentação possível. A categoria I, mais rara, decorre da hipoplasia renal severa ou obstrução grave da uretra determinando oligodrâmnio severo, hipoplasia pulmonar e fácies de Potter. Os pacientes acometidos pela categoria II apresentam a tríade completa e geralmente evoluem para insuficiência renal devido à displasia renal moderada. A categoria III é caracterizada pela doença clínica leve, sem displasia renal e hipoplasia pulmonar5,7.

O diagnóstico é comumente realizado no período pós-natal, porém a ultrassonografia obstétrica, especialmente quando realizada por profissional treinado, é capaz de detectar a presença das alterações sugestivas da síndrome a partir da 10ª a 13ª semana de gestação, permitindo o planejamento terapêutico precoce no período neonatal1,8,9. Dessa forma, a ultrassonografia fetal é ainda mais importante em gestantes com maior risco para as malformações, como casais consanguíneos ou com história familiar de anomalias urogenitais4,5.

Além disso, a análise ultrassonográfica é capaz de indicar a presença de fatores que influenciam diretamente o prognóstico dos pacientes, como a presença da displasia renal, obstrução do trato urinário, oligodrâmnio e malformações associadas10. Deve-se atentar para a possibilidade de hipoplasia pulmonar, visto que, a partir da 8ª a 10ª semana de vida intrauterina, os rins assumem o papel de formadores do líquido amniótico que é essencial para o desenvolvimento pulmonar fetal9,11.

Em casos selecionados, é possível, ainda, realizar o tratamento intrauterino de complicações, como a drenagem de vias urinárias. O shunt vesicoamniótico objetiva reduzir a dilatação das estruturas da via urinária, contribuindo para o melhor desenvolvimento estrutural dos rins e para a prevenção da hipoplasia pulmonar1,9.

Apesar da escassez de dados na literatura médica, o presente artigo chama atenção para a possibilidade da associação da SPB com o uso de cocaína, devido à intensa vasoconstrição dos vasos uteroplacentários induzida pela droga, podendo comprometer a diferenciação do mesoderma e do ectoderma nas primeiras semanas do período embrionário12,13.

O caso relatado neste artigo descreve um recém-nascido com SPB classe II. É importante notar que a ultrassonografia obstétrica de 2º trimestre apresentada pela genitora indicava polidrâmnio. Esse fato pode ser atribuído à presença da fístula vesicocutânea, sendo um determinante para o melhor desenvolvimento pulmonar fetal11. Contudo, devido a complicadores socioculturais, a gestante interrompeu o acompanhamento pré-natal, não sendo possível a programação terapêutica imediata pela equipe médica assistente.

O tratamento pós-natal da SPB visa à preservação da função renal. Cerca de 75% dos pacientes apresentam bexiga aumentada e hipotônica que, apesar de competentes para o armazenamento, apresentam esvaziamento incompleto. Dessa forma, a vesicostomia precoce e imediata é essencial para prevenir a deterioração da função renal. Além disso, a retenção urinária é um importante fator para a ocorrência de infecções do trato urinário de repetição sendo habitualmente recomendado o uso de antibióticos profiláticos visando reduzir injúrias adicionais aos rins. Contudo, apesar dos esforços terapêuticos, 40–50% dos pacientes evoluem com insuficiência renal necessitando de terapia de substituição3,5.

Além disso, mesmo em pacientes com condições cirúrgicas para a reconstrução do trato urinário e da parede abdominal, a presença de alterações pulmonares e cardíacas está associada à insuficiência respiratória e morte súbita após a anestesia geral, dificultando o tratamento cirúrgico da SPB14.

Por fim, devido à alta morbimortalidade na SPB, este artigo destaca a importância da limitação dos esforços terapêuticos. O emprego dos cuidados paliativos, especialmente nas UTIn pediátricas, encontra barreiras culturais na dificuldade ao lidar com a morte15. Para os familiares, a perda de um filho está associada a repercussões psicológicas mais devastadoras que o óbito de um membro adulto. Para a equipe assistencial, optar pelos cuidados paliativos pode denotar fracasso15. Na Neonatologia, examinar de forma crítica os tratamentos implementados para pacientes portadores de doenças raras e condições clínicas complexas é ainda mais importante que em outras áreas da medicina, visto que, apesar do aumento da sobrevida alcançada com o avanço na assistência à saúde, a morbidade que acompanha esses pacientes se mantém significativa e, por vezes, limitante.


CONCLUSÃO

Em conclusão, a SPB, assim como outras síndromes congênitas, demanda diagnóstico precoce e abordagem individualizada para alcançar melhores resultados. O presente artigo relata um caso com evolução desfavorável devido à progressão para insuficiência renal, chamando a atenção para importância no diagnóstico pré-natal e do conhecimento sobre os cuidados paliativos em pediatria.


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1. Santa Casa de Misericórdia de Barbacena, Pediatria - Barbacena - Minas Gerais - Brasil
2. Santa Casa de Misericórdia de Araguari, Medicina de Família e Comunidade - Araguari - Minas Gerais - Brasil
3. EPCAR, Médico - Barbacena - Minas Gerais - Brasil
4. Faculdade de Medicina de Barbacena, FAME - Barbacena - Minas Gerais - Brasil
5. Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Pediatria - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
6. Maternidade Octaviano Neves, Ginecologia e Obstetrícia - Belo Horizonte - Minas Gerais

Endereço para correspondência:

Debora Leticia Silva Gouvêa Viana
Santa Casa de Misericórdia de Barbacena
R. Padre Tolêdo, s/n - São Sebastiao
Barbacena - MG, 36202-290
E-mail: deboralsgouvea@hotmail.com

Data de Submissão: 31/07/2021
Data de Aprovação: 23/12/2021