ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Síndrome nefrótica congênita secundária à infecção congênita: um relato de caso

Congenital nephrotic syndrome secondary to congenital infection: a case report

RESUMO

Síndrome nefrótica congênita (SNC) é uma doença glomerular rara caracterizada por proteinúria maciça, hipoproteinemia e edema generalizado que se manifesta nos primeiros 3 meses de vida. Este relato descreve o caso de uma paciente com síndrome nefrótica congênita secundária à infecção congênita em um paciente pediátrico. O artigo visa sensibilizar o pediatra para a patologia e suas etiologias, tendo em vista que a suspeição clínica possibilita a melhor condução terapêutica dos pacientes acometidos e a prevenção de sequelas em potencial.

Palavras-chave: Síndrome nefrótica, Sífilis congênitas, Infecções por citomegalovírus.

ABSTRACT

Congenital nephrotic syndrome (CNS) is a rare glomerular disease characterized by massive proteinuria, hypoproteinemia, and generalized edema that manifests in the first 3 months of life. This report describes the case of a patient with congenital nephrotic syndrome secondary to congenital infection in a pediatric patient. The article aims to sensitize pediatricians to the pathology and its etiologies, considering that clinical suspicion allows for better therapeutic management of affected patients and the prevention of potential sequelae.

Keywords: Nephrotic Syndrome, Syphilis, Congenital, Cytomegalovirus Infections.


INTRODUÇÃO

Síndrome nefrótica congênita (SNC) é uma doença glomerular rara caracterizada por proteinúria maciça (>50 mg/kg/dia ou >40 mg/m²/h em urina de 24h), hipoproteinemia (albumina <2,5g/dL) e edema generalizado que se manifesta durante os primeiros 3 meses de vida1. Pode ser classificada, quanto à sua etiologia, em primária, majoritariamente de origem genética, e secundária, com origem em doenças sistêmicas como infecções congênitas, doenças metabólicas, autoimunes, tumores, drogas e intoxicação por mercúrio2. Esses dois grandes grupos se diferenciam de modo marcante quanto aos seus tratamentos e prognósticos, tendo em vista que as causas genéticas cursam com alto índice de mortalidade e as secundárias têm possibilidade de tratamento curativo com resolução total do quadro3. Há poucos dados na literatura brasileira que indiquem a incidência geral de síndrome nefrótica congênita, e dados internacionais demonstram 1-3 casos/100.000 crianças menores de 16 anos4. A vasta maioria dos casos está ligada à herança genética, sendo a mais comum a do tipo Finlandês, relacionada à mutação do gene NPHS1. Não há resposta à terapia imunossupressora e são mantidas medidas de suporte, sendo em muitos tipos o transplante renal o único tratamento curativo1. A SNC secundária a infecções congênitas, de origem materna, tem como característica singular a sua resolução com o tratamento da doença de base. Há descrição na literatura de associação da SNC com sífilis, toxoplasmose, CMV e rubéola, apesar de representar uma rara complicação dessas4


RELATO DE CASO

Paciente AVS, sexo feminino, parda, natural e procedente de Recife, com 1 mês e 22 dias de vida, encaminhada de Unidade de Pronto Atendimento (UPA) para emergência de hospital de nível quaternário com história de 1 pico febril associado a vômito em grande quantidade, bem como outro episódio febril há 1 semana. Genitora, ao relatório sintomatológico, negava outras queixas. Ao exame físico, paciente apresentava-se hipocorada e taquicárdica. Palpação abdominal evidenciava hepatoesplenomegalia e extremidades com edema em membros inferiores e descamação leve em bordas dos pés, sugestivo de pênfigo plantar. Na história médica pregressa, parto cesáreo por não progressão do parto normal. Nasceu a termo, com peso ao nascimento de 3325 gramas, com boas condições de vitalidade. Pré-natal com 12 consultas e testes para sífilis e HIV não reagentes e sorologia para toxoplasmose com fração IgG positiva, todos do primeiro trimestre. Sem demais intercorrências durante gestação e parto. Realizado internamento para investigação da paciente e iniciado antibioticoterapia com penicilina cristalina e gentamicina. Hemograma demonstrando bicitopenia (Hb: 7,2, Plaquetas: 105.000), associada à leucocitose com desvio à esquerda. Sumário de urina revelou proteinúria e hemoglobinúria maciças, sem achados sugestivos de infecção do trato urinário. Posteriormente, complementada investigação com achados de hipoalbuminemia (1,85g/dL) e elevada relação proteína/creatinina em urina (16; valor de referência para níveis nefróticos: maior que 2) que definiram o diagnóstico de síndrome nefrótica, com achados adicionais de elevação do colesterol e dos triglicerídeos, além de C3 normal. O método de mensuração da proteinúria por meio da relação urinária em amostra isolada foi optado por maior facilidade técnica devido à baixa idade da paciente. Como esta apresentava anemia hemolítica grave com descompensação hemodinâmica, indicada a transfusão de concentrado de hemácias, esta dificultada inicialmente devido à presença de provas cruzadas sequencialmente positivas. Durante investigação etiológica, evidenciado VDRL 1/64 associado a acometimento neurológico com presença de crises epilépticas (avaliação liquórica com pleocitose à custa de linfomononucleares e com VDRL negativo), assim como sorologias IgM e IgG para toxoplasmose, CMV, HSV 1 e 2 e rubéola positivas. Além disso, menor ainda apresentava uma ultrassonografia transfontanela com septo interventricular no corno ventral do ventrículo lateral, podendo ser sugestivo de infecção congênita. Fundoscopia e BERA sem alterações.

Paciente evoluiu ainda com piora da proteinúria e da hipoalbuminemia após realização do esquema completo para sífilis congênita com tratamento pós-neonatal, e como com evidência de PCR urinário para CMV positivo (269 cópias), optado por início de tratamento com ganciclovir, feito por 21 dias, associado ao enalapril devido ao seu efeito antiproteinúrico. Apresentou, em seguida, melhora progressiva do edema e do número de cópias de CMV, bem como melhora laboratorial, recebendo alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial. Durante seguimento ambulatorial, ela manteve-se bem clinicamente, com proteinúria ausente, sendo repetidas as sorologias para TORCHS — com evidência de VDRL negativo, CMV IgG positivo e IgM negativo, e demais TORCHS não reagentes (IgG e IgM).


DISCUSSÃO

A sífilis congênita ainda representa, especialmente em países em desenvolvimento, importante causa de morbidade na faixa etária pediátrica5. O diagnóstico de infecção congênita pela sífilis tem sido realizado em apenas 1-2% das mulheres tratadas adequadamente durante a gestação, e observado em 70-100% de gestantes não tratadas6. Trata-se de uma doença passível de prevenção, por meio da implementação de estratégias efetivas de diagnóstico precoce e tratamento de sífilis nas gestantes e suas parcerias sexuais5,6.

Os sinais e sintomas de sífilis congênita são inespecíficos e frequentemente encontrados em outras síndromes congênitas. Envolvem quadro clínico variável, podendo cursar com alterações gestacionais/perinatais, incluindo abortos, prematuridade e baixo peso ao nascer; comprometimento sistêmico, como febre, hepatoesplenomegalia e linfonodomegalia generalizada; alterações hematológicas, incluindo anemia, trombocitopenia e variação do número de leucócitos; acometimento central, mucocutâneo e musculoesquelético, além de outras manifestações, como pneumonite e envolvimento renal6. Sua relação com lesão renal já está bem estabelecida na literatura, podendo causar nefropatia com a presença ou não de hematúria e proteinúria em diferentes graus. A síndrome nefrótica se manifesta geralmente do 1º ao 4º mês de vida e a análise histológica pode evidenciar depósitos de imunocomplexos na região de membrana basal glomerular, proliferação mesangial e fusão e achatamento podocitário7,8. O tratamento com penicilina leva à resolução dessas alterações, a depender do momento em que é instituído — Wiggelinkhuizen et al. (1973)9 demonstraram que pacientes nos quais o tratamento foi iniciado tardiamente apresentaram glomeruloesclerose em mais da metade dos glomérulos em biópsia após 6 meses do término do tratamento9.

O histórico de infecção por citomegalovírus na população geral demonstrado por sorologia também é alto, em especial em países em desenvolvimento; no Brasil, cerca de 90-95% das mulheres já apresentaram a infecção primária pelo CMV6. Tem maior importância clínica no contexto de pacientes imunossuprimidos e na infecção congênita — quando há detecção viral em até 3 semanas de vida — e perinatal — com detecção viral da 4ª a 12ª semana de vida, tendo em vista que pode deixar sequelas tardiamente até nos indivíduos a princípio assintomáticos. Apesar de, em recém-nascidos termos, ser majoritariamente assintomática, pode apresentar quadro variável com presença ou não de hepatoesplenomegalia, plaquetopenia, acometimento de sistema nervoso central, colestase, perda auditiva neurossensorial, entre outros6. A infecção por CMV tem sido frequentemente relatada na literatura em associação com a SNC como agente causador desta, sempre em consonância com outras manifestações clínicas da infecção pelo vírus10. Os mecanismos de lesão renal ainda não foram bem estabelecidos, sendo sugeridos lesão direta pelo vírus ou secundário à resposta imune4. A lesão histológica renal mais descrita é do tipo esclerose mesangial difusa, com a presença ou não de corpúsculos de inclusão virais10. O diagnóstico por isolamento de DNA viral com reação em cadeia da polimerase tem boa sensibilidade e especificidade e o tratamento com ganciclovir tem boa eficácia10. Sugere-se atualmente que pacientes com defeito genético causador de síndrome nefrótica congênita possam ter susceptibilidade maior à ocorrência de SNC secundária ao CMV. Desse modo, a infecção por CMV não exclui causa genética e em especial a ausência de resposta ao ganciclovir deve atinar à necessidade de investigação de causa genética subjacente3

No caso relatado, a anemia apresentada pela paciente mostrava características de hemólise, Coombs direto positivo, além de provas cruzadas positivas dos concentrados de hemácias solicitados. Sabe-se que há associação da infecção pelo Treponema pallidum com anemia hemolítica autoimune. Apesar de o mais comum ser anemia hemolítica com Coombs negativo, a positividade do Coombs relaciona-se ao subtipo Hemoglobinúria Paroxística ao Frio (HPF). Esta tem como peculiaridade a hemólise associada à elevada amplitude térmica11. Acreditamos que a positividade sequenciada de provas cruzadas possa se relacionar à dificuldade no manejo e/ou conservação dessas amostras.

Em relação ao plano terapêutico, foi realizado inicialmente tratamento para sífilis congênita com posterior necessidade de tratamento também da infecção por CMV. A positivação de exames sorológicos para as demais TORCHS foi atribuída à reação cruzada, como já descrito na literatura, e havia ainda registro no pré-natal de positividade da fração IgG para toxoplasmose do 1º trimestre da gestação. No caso descrito, a biópsia renal não foi realizada, uma vez que a paciente apresentava quadro clínico e testes sorológicos positivos de agentes já reconhecidos como causadores de SNC. A resposta clínica sustentada durante seguimento ambulatorial, bem como o resultado das sorologias de seguimento corroboram a etiologia nosológica.


CONCLUSÃO

Síndrome nefrótica congênita, apesar de rara, deve sempre ser considerada em lactentes com edema. Diante de populações como a brasileira, com alta prevalência de infecções congênitas, é mandatória a investigação destas como causadoras dessa glomerulopatia, objetivando diagnóstico precoce, com melhor tratamento e prognóstico desses pacientes.


REFERÊNCIAS

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Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, Pediatria Geral - Recife - Pernambuco - Brasil

Endereço para correspondência:

Camila Maria Florencio Santos
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E-mail: camimfs@gmail.com

Data de Submissão: 05/09/2021
Data de Aprovação: 26/10/2021