ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 4

Hipertrigliceridemia grave numa criança com Diabetes Mellitus tipo 1 inaugural - o papel da plasmaferese terapêutica

Severe hypertriglyceridemia in a child with new onset type 1 Diabetes Mellitus - role of therapeutic plasmapheresis

RESUMO

A hipertrigliceridemia grave pode constituir uma complicação da cetoacidose diabética mas é raramente descrita na populaçao pediátrica. O reconhecimento desta entidade é importante para uma abordagem adequada no sentido de prevenir as comorbilidades a ela associadas. Os autres relatam o caso de uma criança com 6 anos de idade com diabetes mellitus tipo 1 inaugural e que se apresentou com cetoacidose e hiperlipidemia. Para além do tratamento com insulina endovenosa, foi realizada plasmaferese para tratamento da hipertrigliceridemia. Pretendemos demonstrar a aplicabilidade desta técnica na presença de níveis muito elevados de triglicéridos no sangue como prevenção primária de complicações associadas à hipertrigliceridemia.

Palavras-chave: Hypertriglyceridemia, Diabetic Ketoacidosis, Diabetes Mellitus, Type 1, Plasmapheresis Pediatrics.

ABSTRACT

Severe hypertriglyceridemia can complicate diabetic ketoacidosis but is rarely reported in the pediatric population. The recognition of this entity is important for proper management and to prevent associated morbidities. We report a 6-year-old girl with new onset type 1 diabetes mellitus, who presented with diabetic ketoacidosis and hyperlipidemia. In addition to treatment with intravenous insulin, plasmapheresis was performed for management of hypertriglyceridemia. We intend to demonstrate the applicability of this technique in the presence of extremely high serum triglyceridemic levels, as primary prevention of hypertriglyceridemia complications.

Keywords: Hypertriglyceridemia, Diabetic Ketoacidosis, Diabetes Mellitus, Type 1, Plasmapheresis Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A cetoacidose diabética (CAD) é uma apresentação comum do diabetes mellitus tipo 1 (DM1) caracterizada por hiperglicemia, acidose e cetonemia, que exige tratamento urgente1.

A insulina é necessária para a atividade da lipoproteína lipase (LPL), que hidrolisa e degrada os triglicérides transportados por quilomícrons e lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL). Portanto, discretas elevações na concentração lipídica sérica são comumente observadas na CAD. Hiperlipidemia grave raramente é relatada em casos de CAD pediátrica2,3.

O presente artigo descreve um caso pediátrico de diabetes recém-diagnosticada com hipertrigliceridemia grave tratada com plasmaferese.


RELATO DE CASO

Uma menina de 6 anos previamente hígida deu entrada no pronto-socorro com histórico de fadiga e letargia há uma semana. Foi relatada perda ponderal de 3kg apesar da ingestão normal de alimentos. Sem poliúria, polidipsia dor abdominal, vômitos ou história familiar de dislipidemia.

À internação: índice de massa corporal normal (percentil 10), pressão arterial 93/50 mmHg, frequência cardíaca 105 batimentos/min, frequência respiratória 18/min e temperatura corporal 36,6oC. Ao exame físico, as mucosas estavam secas e o tempo de enchimento capilar foi de dois segundos. Nada digno de nota foi identificado no restante do exame.

Os exames de sangue denotaram presença de soro lipêmico (Figura 1). A química sérica revelou hiperglicemia (643 mg/dL; intervalo de referência: 74-109 mg/dL), hipertrigliceridemia (5.369 mg/dL; intervalo de referência: < 150 mg/dL), hipercolesterolemia (colesterol total 699 mg/dL; intervalo de referência: < 170 mg/dL) , creatinina 0,81mg/dL (intervalo de referência: 0,32-0,59 mg/dL), BUN 25,6mg/dL (intervalo de referência: 15-36 mg/dL), sódio 126,7mmol/L (intervalo de referência: 135-145mmol/L), amilase 119 U/L (intervalo de referência 28-100U/L), hematócrito 39,7% (intervalo de referência: 35-45%), hemoglobina glicosilada 12,9% (intervalo de referência: 3,8-5,8%) e função tireoidiana normal. As enzimas hepáticas não puderam ser medidas devido à hipertrigliceridemia grave. O nível de cetona no sangue foi de 6,9 mmol/L. A gasometria venosa revelou acidose metabólica com pH 7,227, pCO2 28,6mmHg, HCO3- 11,6mmol/L, ânion gap 17,1 mEq/L.


Figura 1. Soro lipêmico



Após reposição volêmica adequada, a paciente iniciou infusão de insulina, mantendo jejum. O perfil lipídico 18 horas após a internação revelou hipertrigliceridemia grave e persistente (4.568mg/dL) e hipercolesterolemia (colesterol total 562mg/dL; HDL-colesterol 12mg/dL), com nível de amilase normal (77U/L). A paciente permaneceu assintomática. Ultrassonografia abdominal excluiu anomalias pancreáticas. Considerando os riscos associados à hipertrigliceridemia grave e à pancreatite, foi realizada plasmaferese de metade do volume plasmático através de cateter central (Equipamento: Spectra Optia® Apharesis System – Terumo BCT®; anticoagulação com citrato na proporção de 13:1, fluido de reposição com albumina humana a 5%). O tratamento foi bem tolerado e não produziu efeitos adversos. A Figura 2 mostra plasma lipêmico coletado na bolsa de efluente. O nível de triglicérides caiu para 1.058 mg/dL.


Figura 2. Bolsa de efluente durante plasmaferese



A resolução da CAD ocorreu após uma infusão de insulina de 16 horas. Foi feita a transição bem-sucedida para insulina subcutânea. Testes genéticos foram realizados para distúrbios do metabolismo lipídico e os resultados exibiram uma mutação no gene APOA5. A paciente recebeu alta no oitavo dia com nível de triglicérides de 463mg/dL. Após um mês e controle glicêmico adequado, os níveis de triglicérides chagaram a 115mg/dL.


DISCUSSÃO

Este caso destaca a ocorrência de hipertrigliceridemia no contexto de surgimento de DM1 e as implicações deste quadro clínico.

Pacientes recém-diagnosticados com DM1 e que apresentam CAD sofrem de deficiência absoluta de insulina, o que pode resultar em hiperlipidemia grave. Discretas elevações nas concentrações séricas de lípides são comuns em quadros de deficiência de insulina (30-50% dos casos de CAD3,4), mas a ocorrência de hipertrigliceridemia grave, definida como nível de triglicérides > 1000 mg/dL3, e plasma com aspecto leitoso é rara2-6. Esta combinação de achados se manifesta em 8-12,5% da população adulta com CAD, mas os dados sobre a população pediátrica são escassos3,6.

O mecanismo da hipertrigliceridemia na CAD envolve a deficiência de insulina, causando o aumento da mobilização de gordura pela ativação da lipólise e liberação de ácidos graxos livres. Tais ocorrências aceleram a formação de VLDL, que aliada à redução da atividade da LPL diminui a remoção de VLDL do plasma, resultando em hipertrigliceridemia1-6.

Vários autores defendem a tese de que variações genotípicas que afetam a LPL ou cofatores são o motivo pelo qual apenas algumas crianças diabéticas apresentam hiperlipidemia grave1. Mutações no gene APOA5, como a do nosso caso, foram descritas em associação com hipertrigliceridemia.7

O reconhecimento desta associação é importante, pois a hipertrigliceridemia grave pode complicar a CAD e levar ao desenvolvendo de pancreatite1. Pancreatite aguda ocorre em 2% das crianças e 11% dos adultos com CAD8.

O tratamento da hipertrigliceridemia inclui vários dias de insulina intravenosa e, em casos graves ou refratários, a plasmaferese surge como opção3.

Em uma revisão de literatura de pacientes pediátricos com CAD e hipertrigliceridemia, a maioria dos casos foi tratada apenas com insulina intravenosa. O tempo para normalização variou de três a 60 dias1-6. Apenas três casos pediátricos foram tratados com plasmaferese, dois com falência de órgãos e um com pancreatite aguda. O fracasso do tratamento conservador ministrado a uma menina de 10 anos com CAD, hipertrigliceridemia grave (16,334mg/dL), pancreatite aguda e insuficiência renal levou à prescrição bem-sucedida de plasmaferese9. Em outro caso, uma menina de 14 anos com CAD e hipertrigliceridemia grave exibiu piora grave da acidose metabólica, apesar de reidratação adequada e terapia com insulina. Plasmaferese por membrana foi tentada uma primeira vez sem sucesso, dado que o sangue lipêmico obstruiu o filtro de plasma. Em seguida, o método por centrifugação foi tentado com sucesso2. Um jovem de 16 anos com diabetes mellitus tipo 2 e hipertrigliceridemia grave (28.040 mg/dL), pancreatite aguda e CAD sofreu piora dos sintomas da pancreatite e aumento dos níveis de lipase apesar da instituição de tratamento com infusão de insulina e fluidos intravenosos. Posteriormente, duas sessões de plasmaferese foram realizadas com bons resultados10.

A plasmaferese, também conhecida como troca de plasma terapêutica (TPT), é um procedimento extracorpóreo no qual o plasma é separado dos componentes celulares do sangue, descartado e trocado por fluido de reposição. Pode ser realizada por meio de dois sistemas: membrana, baseado no tamanho molecular, e centrifugação, baseado na densidade molecular11. Uma comparação entre dispositivos de membrana e Spectra OptiaÒ Apheresis System de centrifugação identificou diversas vantagens com o uso do segundo, principalmente uma maior eficiência de remoção de plasma (27-53% x 80-93%) e necessidade de acesso vascular mais flexível (catéter de hemodiálise x catéter central agudo), com menos efeitos colaterais11.

A frequência e os tipos de complicações da aférese terapêutica dependem do estado geral do paciente e do número de procedimentos. Embora os princípios da TPT sejam os mesmos em adultos e crianças, existem diferenças técnicas, como menor volume sanguíneo total e dificuldades de acesso venoso. No entanto, diversas revisões sobre complicações relatadas sugerem que a incidência de complicações na TPT em adultos e crianças é semelhante (2,2-12%) e a maioria delas são leves. As complicações mais comuns relatadas num estudo em que foram incluídos 1.201 procedimentos foram prurido e urticária, seguidas de hipertensão e hipotensão. Outras possíveis complicações incluem reação anafilática, sepse/infecção bacteriana, reação transfusional febril não hemolítica, distúrbios hidroeletrolíticos e hemorragia12.

O uso bem-sucedido de plasmaferese foi descrito em pacientes com hipertrigliceridemia grave complicada por pancreatite aguda13,14. De acordo com as diretrizes da Sociedade Americana de Aférese, a pancreatite por hipertrigliceridemia é uma indicação de classe III para TPT, o que significa que o papel da aférese não está estabelecido e a tomada de decisão deve ser individualizada14. Dada a segurança da técnica, a plasmaferese tem sido utilizada na hipertrigliceridemia grave para prevenção de complicações com bons resultados. Alguns autores recomendam aférese em pacientes com triglicérides séricos > 1000mg/dL, independentemente da sintomatologia15. Entretanto, o uso da plasmaferese na prevenção primária das complicações da hipertrigliceridemia é limitado, devido à falta de disponibilidade e ao seu elevado custo11,15.

Nossa Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica realiza mais de cem procedimentos com o equipamento Spectra Optia®. De modo a obter uma redução rápida dos níveis de triglicérides da paciente descrita no presente artigo, realizamos TPT por centrifugação de metade do volume plasmático. O tratamento foi seguro, eficaz, bem tolerado e livre de complicações. O nível de triglicérides da paciente caiu em 70,35%.

Concluindo, não há diretrizes claras na literatura sobre o manejo de pacientes pediátricos com hipertrigliceridemia. Esse procedimento foi realizado em crianças com sinais de falência de órgãos e com manifestações iniciais de pancreatite aguda. Conseguimos mostrar que a TPT por centrifugação foi eficaz e segura em uma paciente com hipertrigliceridemia grave e risco aumentado de desenvolver complicações. Quando disponível, este método deve ser considerado para a prevenção primária de complicações.


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Marta Veríssimo
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Data de Submissão: 28/12/2021
Data de Aprovação: 27/03/2022