ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 1

Fístula cardiocutânea com corpo estranho em ventrículo direito: complicação tardia e rara do uso de cateter venoso central de inserção periférica

Cardiocutaneous fistula with foreign body in the right ventricle: late and rare complication of the use of peripherally inserted central catheter

RESUMO

INTRODUÇÃO: Corpos estranhos (CE) no coração são raros e pouco se relata sobre esse evento. Existem diferentes mecanismos pelos quais objetos podem chegar até uma câmara cardíaca e causar perfuração miocárdica, e uma abordagem diagnóstica individualizada deve ser feita para definir o manejo desses casos.
OBJETIVOS: Relatar caso de paciente pediátrico, de cinco anos de idade, com fístula cardiocutânea provocada por um fragmento de um cateter central de inserção periférica (PICC) no ventrículo direito (VD).
RELATO DE CASO: Paciente de 5 anos, masculino, com história de trauma torácico contuso devido à queda da própria altura há um ano, evoluindo, após 20 dias, com abscesso parede torácica. Após realização da drenagem, persistiu com saída recorrente de secreção sero-hemática pela lesão. Iniciou, após 11 meses do evento, febre alta diária, hiperemia local e aumento da secreção drenada. A investigação diagnóstica evidenciou CE intracardíaco com presença de fístula cardiocutânea. Pelo histórico de passagem de PICC durante período neonatal, acredita-se que o cateter se fragmentou e permaneceu alojado no VD de forma assintomática, com exteriorização pela pele após 5 anos.
CONCLUSÃO: Fístula cardiocutânea provocada por um corpo estranho no coração é um evento raro, podendo ser causado por fratura e migração de PICC. O diagnóstico deve ser feito por meio de uma história clínica detalhada, alinhados a exames de imagem adequados.

Palavras-chave: Migração de corpo estranho, Fístula, Cateteres, Coração.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Foreign bodies in the heart are rare and a small number of cases are reported about this event. There are different mechanisms by which objects can reach a cardiac chamber axnd cause myoxcardial perforation, so an individualized diagnostic approach must be taken to define the management of these cases.
OBJECTIVES: To report the case of a five-year-old pediatric patient with a cardiocutaneous fistula caused by a caused by a fragment of a peripherally inserted central catheter (PICC) in the right ventricle (RV).
CASE REPORT: A 5-year-old male patient with a history of blunt chest trauma due to a fall from his own height a year ago, followd by a chest wall abscess, after 20 days. After drainage, a recurrent outflow of serous and bloody secretion from the lesion persisted. Eleven months after the event, the patient started to present daily high fever, local hyperemia, and increased drainage secretion. The diagnostic investigation showed an Intracardiac foreign body with the presence of a cardiocutaneous fistula. Due to the past of peripherally inserted central catheter (PICC) during the neonatal period, it is believed that the catheter fragmented and remained asymptomatically lodged in the RV, with exteriorization through the skin after 5 years.
CONCLUSION: Cardiocutaneous fistula caused by a foreign body in the heart is a rare event and may be caused by fracture and migration of a PICC. The diagnosis must be made through a detailed clinical history, aligned with adequate imaging exams.

Keywords: Foreign-body migration, Fistula, Vascular access devices, Heart.


INTRODUÇÃO

A presença de corpo estranho (CE) no coração é um achado pouco descrito na literatura, podendo ser resultado de complicações de procedimentos médicos intravenosos, como migração e fratura de cateteres, de atos cirúrgicos, como acesso cardíaco, ou de um evento traumático penetrante1. Em pacientes pediátricos, o diagnóstico é realizado, principalmente, de forma incidental ou em investigação de complicações relacionadas à permanência do objeto no local2. As opções de tratamento, seja por procedimento cirúrgico ou optando pela abordagem conservadora, são indicadas de acordo com o caso clínico, a depender dos sintomas presentes, dos riscos e do tempo do diagnóstico3.

Este relato objetiva descrever o caso de um paciente com diagnóstico de fístula cardiocutânea, provocada por um fragmento de um cateter central de inserção periférica (PICC) localizado no ventrículo direito (VD). Espera-se colaborar com as evidências atuais ao relatar o processo diagnóstico e uma intervenção terapêutica para evitar complicações secundárias.


RELATO DE CASO

Paciente de 5 anos, sexo masculino, com história de trauma torácico contuso devido à queda da própria altura há um ano. Evoluiu, após 20 dias desse evento, com edema e hiperemia na região inframamilar do hemitórax esquerdo, sendo submetido à drenagem de abscesso em parede torácica. Não manteve acompanhamento médico e persistiu com saída recorrente de secreção sero-hemática pelo orifício de drenagem. Iniciou, após 11 meses do evento, febre alta diária, hiperemia local e aumento da secreção drenada, quando buscou o pronto atendimento pediátrico em hospital terciário, com investigação diagnóstica complementar inicial sugerindo corpo estranho no coração.

Na radiografia de tórax da admissão, foi evidenciado objeto radiopaco linear em região de terço médio de hemitórax esquerdo e linha paraesternal. Inicialmente, foram colhidas culturas e iniciada antibioticoterapia com oxacilina. Durante o internamento, permaneceu estável hemodinamicamente, negando sintomas como palpitações, dispneia ou dor torácica. Por persistência da febre e alteração dos marcadores inflamatórios (aumento de PCR e de contagem de leucócitos), a despeito de culturas negativas, foi optado por escalonar antibioticoterapia para vancomicina.

Para elucidação diagnóstica, realizou ultrassonografia de parede torácica que mostrou imagem hipoecogênica de aspecto fistuloso comunicando pele com planos mais profundos da parede torácica anterior em íntimo contato com pericárdio. O ecocardiograma transtorácico constatou imagem hipoecogênica, brilhante, medindo 0,7x0,7cm no VD, correspondendo a corpo estranho. Angiotomografia de tórax evidenciou cateter no interior de VD com extensão de sua extremidade até parede torácica esquerda onde se destaca trajeto com realce pelos planos musculoadiposos até a pele (fístula cardiocutânea associada a corpo estranho?) (Figura 1).



Figura 1. Angiotomografia computadorizada de tórax.
Legenda: Cateter no interior de VD (seta) com extensão de sua extremidade à parede torácica esquerda onde se destaca trajeto com realce pelos planos musculoadiposos até a pele (fístula cardiocutânea associada a corpo estranho?). Opacidades com atenuação em vidro fosco e pequenos focos de consolidação esparsos pelos pulmões.



Optado por abordagem cirúrgica por toracotomia para exploração da parede torácica. Submetido à toracotomia esquerda com pericardiectomia, ressecção de fístula cardiocutânea, remoção de corpo estranho até o ponto delimitado no VD, ventriculorrafia e ressecção de cartilagem costocondral, com envio de material cirúrgico para análise anatomopatológica e culturas (Figura 2).



Figura 2. Material ressecado.
Legenda: Ressecção de fístula cardiocutânea e remoção de corpo estranho até o ponto delimitado no VD.



Procedimento cirúrgico sem intercorrências, permaneceu em UTI até o segundo dia pós-operatório, sem necessidade de suporte ventilatório ou uso de drogas vasoativas. Necessitou de escalonamento de antibiótico para meropenem devido a picos febris.

Não foi identificado crescimento de colônias bacterianas em nenhuma das culturas coletadas. O resultado do histopatológico da peça cirúrgica evidenciou fragmentos de tecido fibroconjuntivo denso e muscular estriado (focal) com áreas de hemorragia e presença de artefato térmico. Recebeu alta após 12 (doze) dias do procedimento com orientação para acompanhamento ambulatorial com grupo de cardiologia pediátrica / cirurgia cardíaca.


DISCUSSÃO

Relatamos o caso de uma criança com corpo estranho no coração com perfuração miocárdica e fístula cardiocutânea. Paciente com antecedente de prematuridade com necessidade de internamento em UTI neonatal, portava relatório de alta que descrevia radiografia de tórax com presença de PICC.

O PICC é um dispositivo utilizado em larga escala na pediatria, especialmente em UTIs, para infusão de medicamentos, hidratação, hemoderivados e monitorização hemodinâmica. Apesar de ser considerado seguro e estável, o número de complicações decorrentes é expressivo. Dentre as possíveis complicações estão migração e fratura do cateter, extravasamento de substâncias, perfuração de vasos ou de órgãos, infecção e tromboembolismo4,5.

A fratura de cateter intravenoso é uma complicação ocasionada, na maioria dos casos, por baixa qualidade do material, técnica incorreta de inserção ou tempo de permanência muito prolongado6,7. Em estudo conduzido com coordenadores de 83 Unidades de Terapia Intensiva Neonatais nos Estados Unidos, aproximadamente um quarto (24%) dos participantes relatou experiência com morte neonatal causada por perfuração miocárdica ou arritmia cardíaca relacionada ao acesso venoso central de inserção periférica8.

Devido à presença de aderências intracardíacas observadas no intraoperatório e ao aspecto macroscópico da peça cirúrgica, os autores postulam que o cateter venoso central de inserção periférica se fragmentou e permaneceu alojado no VD de forma assintomática, com exteriorização após 5 anos.

Os sintomas da presença de um corpo estranho no coração podem se apresentar em horas até anos após o evento9. Leitman et al. (2015)1 analisaram 104 casos de corpos estranhos cardíacos, apresentando-se de forma sintomática em 56% dos pacientes, sendo 20% com manifestações clínicas nas primeiras 24 horas e 30% após anos da penetração do corpo estranho.

Inicialmente, a criança foi encaminhada ao serviço de cardiologia pediátrica por hipótese diagnóstica de trauma torácico penetrante recente, associado à complicação infecciosa local. Paciente permaneceu assintomático até o evento da queda da própria altura, há 1 ano da admissão no serviço de cardiologia, quando do aparecimento de lesão cutânea com drenagem de secreção purulenta, negando síncope, dor torácica ou palpitação. Acredita-se que o evento da queda da própria altura com trauma torácico contuso ocorreu de forma coincidente e sem relação com o início dos sintomas do paciente.

O manejo após a confirmação da presença de um CE em câmaras cardíacas, apesar de divergente na literatura, depende de fatores que incluem a sintomatologia do paciente, as complicações implicadas e o tempo do diagnóstico, devendo as condutas serem adotadas de forma individualizada. Actis Dato et al. (2003)3 avaliaram quatorze casos de corpos estranhos no coração e elaboraram diretrizes para manejo dessa condição clínica. Segundo o estudo, pacientes sintomáticos apresentando, ao diagnóstico, arritmia ou infecção secundárias à presença do corpo estranho possuem indicação de abordagem cirúrgica; igualmente, pacientes assintomáticos com fatores de riscos para infecção, embolização ou erosão devem ser abordados cirurgicamente; nos casos de pacientes assintomáticos, sem fatores de risco e diagnosticados tardiamente, há possibilidade de tratamento conservador, principalmente quando houver inserção completa do CE no pericárdio ou no miocárdio3. Uma complicação rara, temida e com alto potencial de letalidade é a perfuração cardíaca, podendo levar ao tamponamento cardíaco10. No caso apresentado, a indicação cirúrgica ocorreu devido à perfuração cardíaca e à complicação infecciosa presente ao diagnóstico.

A determinação da localização precisa do CE no coração, obtida através de exames complementares de imagem, como o ecocardiograma e a tomografia computadorizada, são essenciais para definir a estratégia cirúrgica mais adequada11. Os exames de imagem realizados mostraram objeto de aspecto metálico no interior do VD com fístula cardiocutânea, sendo proposto toracotomia exploradora para avaliar a extensão da lesão e definir a necessidade de abordagem cardíaca no intraoperatório. Devido à aderência do corpo estranho na parede ventricular e à infecção no trajeto da fístula, no mediastino anterior e na cartilagem costocondral, sem sinais de infecção intracardíaca, decidido por realizar abordagem do trajeto fistuloso com ressecção de fístula cardiocutânea e de cartilagem costocondral, e remoção de corpo estranho até o ponto delimitado no VD.


CONCLUSÃO

Fístula cardiocutânea provocada por um corpo estranho no coração é um evento raro, podendo ser causado por fratura e migração de PICC. O diagnóstico deve ser feito por meio de uma história clínica detalhada, alinhados a exames de imagem adequados, demonstrando sua localização. Devido à perfuração cardíaca e à complicação infecciosa presente ao diagnóstico, o paciente foi submetido à abordagem cirúrgica, devendo essa decisão ser individualizada caso a caso.


REFERÊNCIAS

1. Leitman M, Vered Z. Foreign bodies in the heart. Echocardiography. 2015;32(2):365-71.

2. Al-Musawi M, Rubay D, Ohanisian L, Sidley A, Abed AN. An Unusual Presentation of a Cardiac Foreign Body in a Pediatric Patient. Cureus. 2019 Jun;11(6):e4829.

3. Dato GMA, Aidala E, Zattera GF. Posttraumatic and iatrogenic foreign bodies in the heart: Report of fourteen cases and review of the literature. J Thorac Cardiovasc Surg. 2003 Aug;126(2):408-14.

4. avalcante JS. Complicações decorrentes do uso do cateter central de inserção periférica em neonatos e fatores associados [dissertação]. Brasília: Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos; 2018.

5. Ramasethu J. Complications of Vascular Catheters in the Neonatal Intensive Care Unit. Clin Perinatol. 2008 Mar;35(1):199-222.

6. Khoo PJ, Tay KL, Jamaluddin AA, Gunasaker D. Self-inflicted and iatrogenic peripheral intravenous cannula fracture: A case report. Ann Med Surg (Lond). 2018 Aug;33:44-6.

7. Singh A, Kaur A, Singh M, Kaur S. CT Guided Removal of Iatrogenic Foreign Body: A Broken Intravenous Cannula. J Clin Diagn Res. 2015 Sep;9(9):PD28-9.

8. Nadroo AM, Lin J, Green RS, Magid MS, Holzman IR. Death as a complication of peripherally inserted central catheters in neonates. J Pediatr. 2001 Apr;138(4):599-601.

9. Wang X, Zhao X, Du D, Xiang X. Management of metallic foreign bodies in the heart. J Card Surg. 2012 Nov;27(6):704-6.

10. Kumar R, Rana SS, Kumar S, Das D, Datta M. Management of Accidental and Iatrogenic Foreign Body Injuries to Heart- Case Series. J Clin Diagn Res. 2017 Mar;11(3):PE01-4.

11. Dato GMA, Aidala E, Zattera GF. Foreign bodies in the heart: surgical or medical therapy? Ann Thorac Surg. 1999 Jul;68(1):291-2.











1. Hospital Infantil Albert Sabin, Residência Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Hospital Infantil Albert Sabin, Cardiologia Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil
3. Hospital Infantil Albert Sabin, Cirurgia Cardíaca Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil
4. Hospital Infantil Albert Sabin, Internato - Pediatria - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:
Stéfanie Dias Rodrigues
Hospital Infantil Albert Sabin
R. Tertuliano Sales, 544 - Vila União
Fortaleza - CEP, 60410-794
E-mail: stefaniedrodrigues@gmail.com

Data de Submissão: 13/02/2022
Data de Aprovação: 27/03/2022