Relato de Caso
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
1
Neuroblastoma estágio 4S e hepatomegalia maciça: relato de caso
Stage 4S neuroblastoma and massive hepatomegaly: a case report
Ricardo Pasquini Neto1; Ana Julia Pereira de Paula1; Fernanda de Almeida Vieira1; Hadelle Habitzreuter Hassmann2; Ana Paula Kuczynski1,2
RESUMO
OBJETIVO: Relatar um caso de neuroblastoma estágio 4S e hepatomegalia maciça que prejudicou o prognóstico da doença.
DESCRIÇÃO DO CASO: Lactente de 3 meses do sexo masculino apresentou 7 dias de piora de distensão abdominal, sudorese significativa, choro incessante e irritabilidade. Seu abdome era globoso e exibia hepatomegalia maciça. Os exames de imagem detectaram múltiplos nódulos em parênquima hepático e um nódulo hipoecoico em suprarrenal direita. As lesões foram biopsiadas, com achados revelando neuroblastoma infiltrativo em tecido hepático. O paciente foi estadiado com International Neuroblastoma Staging System 4S, e o tratamento foi iniciado conforme protocolo da International Society of Paediatric Oncology - Paediatric Oncology in Developing Countries. No primeiro ciclo de quimioterapia, sua condição exigiu ventilação mecânica prolongada e hemodiálise. Decidiu-se então mudar para o regime POG 9341-Modified em modo de urgência. Uma melhora clínica importante foi observada após o terceiro ciclo de quimioterapia. Os ciclos subsequentes foram administrados com base no protocolo inicialmente proposto. A remissão completa foi alcançada após o oitavo ciclo.
COMENTÁRIOS: O neuroblastoma estágio 4S geralmente apresenta bom prognóstico; entretanto, quando associado à hepatomegalia maciça, este torna-se desfavorável. As complicações durante o primeiro ciclo exigiram mudança no manejo para o regime POG 9341-Modified, o que contribuiu para a redução do número e tamanho dos nódulos hepáticos e suprarrenal. Visto à significativa melhora clínica, os demais ciclos foram realizados conforme o protocolo inicial. Apesar da associação incomum e da falta de consenso para um tratamento específico, a remissão completa foi alcançada pela combinação de regimes terapêuticos.
Palavras-chave:
Neuroblastoma, Hepatomegalia, Lactente.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To report a case of stage 4S neuroblastoma and massive hepatomegaly that worsened the disease prognosis.
CASE REPORT: A 3-month-old male infant presented with 7 days of worsening abdominal distension, significant sweating, incessant crying, and irritability. His abdomen was globular and exhibited massive hepatomegaly. Imaging examinations detected multiple nodules in the liver parenchyma and a hypoechoic nodule in the right adrenal gland. The lesions were biopsied, with findings revealing infiltrative neuroblastoma in the liver tissue. The patient was diagnosed with International Neuroblastoma Staging System stage 4S, and treatment was started according to the International Society of Paediatric Oncology - Paediatric Oncology in Developing Countries protocol. During the first chemotherapy cycle, his condition required prolonged mechanical ventilation and hemodialysis. It was then decided to switch to the POG 9341-Modified regimen in an emergency mode. A significant clinical improvement response was observed after the third chemotherapy cycle. Subsequent cycles were administered based on the initial proposed protocol. Complete remission was achieved after the eighth cycle.
DISCUSSION: Stage 4S neuroblastoma usually has a good prognosis; however, when associated with massive hepatomegaly, the prognosis becomes unfavorable. Complications during the first chemotherapy cycle required a change in management to the POG 9341-Modified regimen, which resulted in a reduction in the number and size of hepatic and adrenal nodules. Owing to significant clinical improvement, the remaining cycles were performed using the initial protocol. Despite the uncommon association and the lack of consensus for a specific treatment, complete remission was achieved by combining therapeutic regimens.
Keywords:
Neuroblastoma, Hepatomegaly, Infant.
INTRODUÇÃO
O neuroblastoma é uma neoplasia embrionária caracterizada por uma proliferação desordenada de células primitivas da crista neural. O tumor pode estar localizado ao longo de toda a cadeia ganglionar simpática, sendo a região medular da glândula suprarrenal sua principal topografia.1,2
O neuroblastoma é o tumor sólido extracraniano maligno mais comum em crianças e o câncer mais frequentemente diagnosticado no primeiro ano de vida.1 Dada a sua agressividade, o neuroblastoma é responsável por aproximadamente 15% da mortalidade relacionada à oncologia pediátrica.3
Especificamente, esses tumores apresentam uma alta taxa de regressão espontânea em crianças com idade <12 meses e com doença em estágio 4S.4 Embora as metástases sejam frequentes no momento do diagnóstico, esta categoria geralmente é uma exceção ao mau prognóstico.1,5,6
Apresentamos aqui um caso de neuroblastoma estágio 4S que apresentou hepatomegalia maciça, complicando o prognóstico da doença. A associação foi incomum e nenhum consenso foi estabelecido sobre o tratamento específico da condição.2,6,7
RELATO DE CASO
Um bebê de 3 meses de idade, previamente hígido, do sexo masculino, foi admitido no ambulatório de oncologia de um hospital pediátrico com 7 dias de piora da distensão abdominal, sudorese significativa, choro incessante e irritabilidade. Não apresentava febre nem esforço respiratório. Ele nasceu de parto cesáreo a termo, sem complicações. A carteira vacinal apresentada na admissão estava atualizada e sua evolução era adequada à idade.
Ao exame físico apresentava-se hemodinamicamente estável, ativo, reativo, hidratado, não pálido, anictérico e acianótico. Seu abdômen era globular e exibia hepatomegalia maciça. Ruídos hidroaéreos intestinais eram audíveis. Não foram identificados sinais de irritação peritoneal, nem outras alterações sistêmicas.
Os resultados dos exames laboratoriais realizados na admissão foram os seguintes: hemoglobina, 10,2 g/dL; leucócitos, 11.800 células/mm3; varetas, 5%; segmentado, 57%; linfócitos, 35%; plaquetas, 145.000/µL. Os níveis de aspartato aminotransferase e alanina aminotransferase foram 49 U/L e 22 U/L, respectivamente. Os níveis séricos de bilirrubina direta e total estavam dentro dos limites da normalidade.
A ultrassonografia abdominal mostrou fígado aumentado, contornos levemente rombos e ecotextura difusamente heterogênea. Também foi identificada imagem nodular heterogênea na topografia da glândula suprarrenal direita. A ressonância magnética (RM) com contraste revelou múltiplos nódulos difusos no parênquima hepático, além de nódulo sólido hipoecogênico na glândula suprarrenal direita, sem plano de clivagem com segmento VII do fígado (Figura 1). A tomografia computadorizada de tórax não detectou alterações.
Figura 1. Ressonância magnética mostrando nódulo sólido hipoecogênico na glândula suprarrenal direita, medindo 27 × 18 × 24 mm, sem plano de clivagem com o segmento VII do fígado.
Na biópsia, as lesões hepáticas mostraram neoplasia maligna indiferenciada de células redondas e azuis infiltrando o parênquima hepático (Figura 2). O exame imuno-histoquímico revelou sinaptofisina, ++/3; MIC2/CD99, negativo; CD56, +++/3; Cromogranina, +++/3; e hepatócito (Clone OCH1E5 – Código IS624), negativo. O NMYC não foi amplificado e a amostra foi considerada insuficiente para pesquisa de deleções 1p e 11q. Os achados foram consistentes com neuroblastoma infiltrativo no tecido hepático.
Figura 2. Achado histológico compatível com neoplasia maligna indiferenciada de células redondas e azuis infiltrando o parênquima hepático.
Posteriormente, a cintilografia com metaiodobenzilguanidina (MIBG-I131) revelou infiltração difusa de tecidos da linhagem neuroectodérmica na projeção hepática e linha média do abdome superior. Os níveis séricos de ferritina, lactato desidrogenase e ácido vanilmandélico (VMA) foram 161 ng/mL, 1.151 U/L e 75 mg/24 h, respectivamente. A biópsia de medula óssea não identificou sinais de infiltração tumoral.
O paciente foi diagnosticado com estágio 4S do International Neuroblastoma Staging System e o tratamento foi iniciado com carboplatina e etoposídeo seguindo o protocolo da Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica - Oncologia Pediátrica em Países em Desenvolvimento (SIOP-PODC). No primeiro ciclo, devido à restrição abdominal causada pela hepatomegalia maciça, o paciente necessitou de ventilação mecânica prolongada e hemodiálise na unidade de terapia intensiva. Assim, o tratamento foi alterado para o regime POG 9341-Modificado em modo de emergência. Após o terceiro ciclo de quimioterapia foi observada resposta ao tratamento evidenciada pela melhora clínica significativa associada à redução dos níveis de VMA (342 mg/24 h), intensidade da concentração do radiofármaco no exame MIBG-I131, número e tamanho dos nódulos hepáticos e desaparecimento de lesão expansiva na glândula suprarrenal direita na ressonância magnética. Diante dessas alterações, nos cinco ciclos seguintes o tratamento foi realizado com o protocolo inicial proposto. Após o oitavo ciclo de quimioterapia, foi verificado nível de VMA de 10,2 mg/24 h. Na ressonância magnética, o fígado apresentava dimensões e contornos regulares, além do desaparecimento das lesões hepáticas.
No momento deste estudo, o paciente estava em remissão completa e estabilidade clínica laboratorial. Realizava consultas e exames ambulatoriais mensais.
DISCUSSÃO
O neuroblastoma estágio 4S, quando acometendo bebês com idade <1 ano, é caracterizado por um tumor primário localizado, com possível disseminação para linfonodos ipsilaterais, pele, fígado ou medula óssea (até 10% das células neoplásicas identificadas). Apresenta bom prognóstico e capacidade de regressão espontânea com taxa de sobrevivência de 90%. Porém, quando associada à hepatomegalia maciça, como descrita no presente caso, o prognóstico torna-se desfavorável.1,8
Em 2019, De Bernardi identificou hepatomegalia e dispneia como os fatores de risco independentes mais importantes para piora da sobrevida em pacientes com neuroblastoma 4S, com taxa de sobrevida de 52,4%.9 Portanto, bebês com essa condição necessitam de manejo precoce e intensivo para reduzir a distensão abdominal, como pode também levar à insuficiência respiratória, prejudicando ainda mais o prognóstico.10
O tratamento deve ser individualizado de acordo com a evolução da doença. Dentro do arsenal terapêutico disponível, destacam-se a quimioterapia intensiva e a quimioembolização intra-arterial hepática como medidas que podem melhorar a evolução clínica dos pacientes.11 A ressecção cirúrgica é reservada para casos complicados onde é necessária a descompressão abdominal.12
Em 2012, Weintraub realizou uma análise retrospectiva e relatou os resultados clínicos de oito pacientes com idade entre 0 e 16 semanas com diagnóstico de neuroblastoma em estágio 4S, nos quais a hepatomegalia foi tratada com diferentes modalidades terapêuticas. Nesse estudo, um paciente apresentou remissão espontânea do tumor, três tiveram resposta completa à quimioterapia com carboplatina e etoposídeo e quatro tiveram progressão tumoral apesar da quimioterapia intravenosa intensiva. Dos pacientes que não responderam ao tratamento, dois faleceram e dois foram tratados com sucesso com quimioembolização intra-arterial hepática. A abordagem sequencial com observação inicial, quimioterapia intravenosa e quimioembolização hepática foi essencial na melhoria dos resultados dos pacientes.13 Além disso, adaptações dos protocolos quimioterápicos para esquemas mais intensivos poderiam ser realizadas, visando melhores possibilidades de remissão completa e cura.14
Em 2021, Ali também descreveu um caso de hepatomegalia em uma criança com neuroblastoma em estágio 4S. A apresentação do caso foi muito semelhante ao presente caso; entretanto, o paciente apresentou má resposta à quimioterapia, evoluindo com neutropenia febril e óbito. Devido à perda de seguimento, os dados relativos ao tratamento foram limitados. Os autores concluíram enfatizando a necessidade de mais estudos que descrevam abordagens terapêuticas com resultados positivos para que seja possível desenvolver um esquema de tratamento bem definido que permita uma abordagem mais unificada para o manejo de casos futuros.7
O presente caso complementa o relato de Ali, pois descreveu uma combinação de esquemas terapêuticos que podem alcançar a remissão completa. O paciente foi inicialmente tratado com protocolo SIOP-PODC; entretanto, devido à significativa hepatomegalia e distensão abdominal no primeiro ciclo de quimioterapia, necessitou de ventilação mecânica prolongada e hemodiálise na unidade de terapia intensiva. Para controlar as complicações, o plano de tratamento oncológico foi alterado para a administração do esquema POG 9341-Modificado em uma unidade de urgência.
Dado o diagnóstico incomum e a falta de consenso na literatura sobre o tratamento específico, o caso foi discutido na Rede Global de Neuroblastoma para indicação da melhor conduta. Como o paciente apresentou melhora significativa do quadro clínico após dois ciclos de tratamento intensivo com redução significativa do volume, do número de nódulos hepáticos e da distensão abdominal, foi possível dar continuidade ao tratamento com o protocolo inicialmente proposto. O paciente obteve excelente resposta e tolerabilidade ao tratamento.
No Brasil, o acesso ao tratamento com anticorpos monoclonais anti-GD2 é muito limitado devido ao alto custo e à baixa disponibilidade. Contudo, nenhum estudo descreveu a eficácia desta imunoterapia no controle da hepatomegalia associada ao neuroblastoma 4S.14 No presente caso, o tratamento consistiu na administração combinada intensiva dos esquemas modificados SIOP-PODC e POG-9341, resultando em eficácia terapêutica.
Aqui, relatamos um caso de uma criança com diagnóstico de neuroblastoma em estágio 4S e hepatomegalia maciça. Apesar do mau prognóstico e da falta de consenso sobre o tratamento específico, o paciente obteve remissão completa através de uma combinação de esquemas terapêuticos. O caso também destaca a importância de considerar o neuroblastoma no diagnóstico diferencial de uma criança com quadro clínico de distensão abdominal e hepatomegalia. Além disso, o reconhecimento precoce do quadro e o encaminhamento para serviço especializado podem evitar complicações e permitir a remissão completa.
REFERÊNCIAS
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1. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Escola de Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Serviço de Oncologia e Hematologia Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
Endereço para correspondência:
Ricardo Pasquini Neto
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
R. Imac. Conceição, 1155 - Prado Velho, Curitiba - PR, 80215-901
E-mail: pasquinirpn@gmail.com
Data de Submissão: 21/05/2022
Data de Aprovação: 12/12/2022