ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Apendicite aguda em um adolescente com situs inversus totalis: relato de caso

Acute appendicitis in an adolescent with situs inversus totalis: a case report

RESUMO

A apendicite é a emergência cirúrgica mais comum em pediatria, estando presente em 1% a 8% das crianças com dor abdominal aguda. O quadro clínico clássico é caracterizado pela presença de dor abdominal aguda migratória em fossa ilíaca direita. Entretanto, em pacientes com situs inversus totalis, a dor se manifesta na fossa ilíaca esquerda, o que pode retardar o diagnóstico e predispor ao desenvolvimento de complicações. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é relatar um caso de apendicite em um adolescente com situs inversus totalis. Este estudo trata-se de um relato de caso de apendicite em um adolescente portador de situs inversus totalis. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos e aprovado sob o número do CAAE 53591321.0.0000.5237. A incidência de apendicite em portadores de situs inversus totalis é de 0,016% a 0,024%. Em função da apresentação clínica atípica nesses pacientes, tem-se uma tendência ao retardo no diagnóstico da apendicite, especialmente quando o situs inversus totalis não foi previamente identificado. Com isso, existe um maior risco de desenvolvimento de complicações graves, como a perfuração intestinal e a sepse, o que eleva consideravelmente a morbimortalidade. Portanto, ressalta-se a importância de elencar a apendicite como um possível diagnóstico em pacientes com dor abdominal aguda em fossa ilíaca esquerda pela possibilidade de situs inversus totalis.

Palavras-chave: Apendicite, Situs inversus, Diagnóstico, Adolescente.

ABSTRACT

Appendicitis is the most common surgical emergency in pediatrics, being present in 1% to 8% of children with acute abdominal pain. The classical clinical presentation is characterized by the presence of acute migrating abdominal pain in the right iliac fossa. However, in patients with situs inversus totalis, the pain manifests in the left iliac fossa, which may delay the diagnosis and predispose to the development of complications. Thus, the aim of this study is to report a case of appendicitis in an adolescent with situs inversus totalis.
METHODS: This study is case report of appendicitis in an adolescent with situs inversus totalis. The research was submitted to the Ethics in Human Research Committee and approved under CAAE number 53591321.0.0000.5237.
RESULTS: The incidence of appendicitis in patients with situs inversus totalis is 0.016% to 0.024%. Due to the atypical clinical presentation in these patients, there is a tendency to delay the diagnosis of appendicitis, especially when the situs inversus totalis was not previously identified. Thus, there is a greater risk of developing severe complications such as intestinal perforation and sepsis, which considerably increases morbidity and mortality.
CONCLUSIONS: We emphasize the importance of listing appendicitis as a possible diagnosis in patients with acute abdominal pain in the left iliac fossa because of the possibility of situs inversus totalis.

Keywords: Appendicitis, Situs Inversus, Diagnosis, Adolescent.


INTRODUÇÃO

A apendicite corresponde à emergência cirúrgica mais comum em crianças1,2. O risco de seu desenvolvimento é de 7% a 8% ao longo da vida e a maior parte dos casos ocorre durante a adolescência2. O quadro clínico clássico é caracterizado pela presença de dor abdominal aguda migratória, que se manifesta, inicialmente, na região periumbilical e que, após cerca de 24 horas, migra para a fossa ilíaca direita. Outras manifestações clínicas incluem: anorexia, febre, náuseas e vômitos, sinais de irritação peritoneal e aumento da sensibilidade no quadrante inferior direito3.

O situs inversus totalis é uma desordem autossômica recessiva4 definida pelo arranjo anormal dos órgãos torácicos e abdominais ao longo do eixo direito e esquerdo5. Essa condição apresenta baixa prevalência e incidência, estando presente em apenas 0,001% a 0,01% da população geral6 e acometendo um entre cada 10.000 a 20.000 nascidos vivos4. A maior parte desses pacientes é assintomática e não apresenta repercussões clínicas ao longo da vida. Entretanto, o diagnóstico dessa anomalia é muito importante para a melhor interpretação dos sinais e sintomas de patologias clínicas e cirúrgicas, como a apendicite4.

Em um portador de situs inversus totalis, o diagnóstico de apendicite pode ser tardio, em função da apresentação atípica do quadro clínico4,7, caracterizado pela presença de dor abdominal aguda em fossa ilíaca esquerda. O atraso no diagnóstico da apendicite eleva o risco de complicações graves e, até mesmo, letais4.

Mediante a importância da identificação precoce da apendicite, é relevante suscitar essa hipótese diagnóstica em um paciente com dor abdominal aguda em fossa ilíaca esquerda pela possível existência de situs inversus totalis. Assim, o objetivo deste estudo é relatar um caso de apendicite em um adolescente portador de situs inversus totalis, não diagnosticado previamente, atendido na emergência pediátrica.


RELATO DE CASO

Adolescente, 12 anos, sexo masculino, deu entrada na emergência pediátrica com queixa de dor em fossa ilíaca esquerda e dificuldade para deambular iniciadas há 24 horas. Negou comorbidades. Ao exame físico, encontrava-se em bom estado geral, hidratado, corado, afebril (temperatura axilar: 36,7°C) e eupneico em ar ambiente. Abdome plano, com peristalse presente, doloroso à palpação superficial e profunda em fossa ilíaca esquerda, especialmente após a descompressão da parede abdominal, sem massas ou visceromegalias palpáveis. Demais sistemas sem alterações. Ao exame laboratorial, constatou-se: hemograma: eritrócitos: 4,37 x 106/µL, hemoglobina: 13,7 g/dL, hematócrito: 39%; leucócitos: 20.200/µL, bastões: 7%, segmentados: 74%, monócitos: 4%; plaquetas: 272.000/µL; proteína C-reativa: 55 mg/dL; EAS sem alterações. A radiografia de tórax e de abdome evidenciou a presença de situs inversus totalis. A tomografia computadorizada de abdome demonstrou o aumento do apêndice em fossa ilíaca esquerda, confirmando o diagnóstico de apendicite (Figuras 1, 2, 3 e 4). Em seguida, o paciente foi encaminhado à apendicectomia cirúrgica para a resolução do quadro.



Figura 1. Imagem em axial do plano torácico, evidenciando situs inversus com dextrocardia.




Figura 2. Imagem no plano coronal, evidenciando situs inversus totalis.




Figura 3. Imagem no plano axial, mostrando o apêndice (seta vermelha) na fossa ilíaca esquerda, espessado e de diâmetro aumentado.




Figura 4. Imagem no plano coronal, mostrando o apêndice (seta vermelha) na fossa ilíaca esquerda, espessado e de diâmetro aumentado.



DISCUSSÃO

A apendicite é a indicação mais comum de cirurgia abdominal de emergência na infância, sendo diagnosticada em 1% a 8% das crianças com queixa de dor abdominal aguda8,9. Entretanto, como o situs inversus totalis é uma anomalia rara, a incidência de apendicite associada a essa condição é de 0,016% a 0,024%10.

O diagnóstico de apendicite é realizado através da história clínica e dos exames complementares. Como exames de imagem são utilizadas a ultrassonografia abdominal, a tomografia computadorizada e/ou a ressonância nuclear magnética. As radiografias simples geralmente não são úteis para estabelecer o diagnóstico de apendicite; entretanto, auxiliam na detecção do situs inversus totalis, apresentando, dessa forma, um considerável valor no estabelecimento do diagnóstico2,7.

Embora os exames laboratoriais não tenham alta sensibilidade e especificidade para apendicite aguda, eles podem ser utilizados no auxílio do diagnóstico. Uma contagem normal de leucócitos tem um bom valor preditivo negativo, um aumento no número de formas imaturas de neutrófilos também tem uma forte associação com apendicite e um valor alto de proteína C-reativa pode predizer apendicite complicada ou perfurada2,7.

Em portadores de situs inversus totalis, a apresentação clínica da apendicite difere das manifestações classicamente conhecidas dessa doença11. Em tais casos, a dor abdominal aguda migra da região periumbilical para a fossa ilíaca esquerda, e não para a fossa ilíaca direita, como ocorrido na maior parte dos pacientes4, o que determina uma maior possibilidade de atraso na identificação da apendicite12.

Esse atraso no diagnóstico é corroborado pelo fato de que grande parte dos pacientes com situs inversus totalis, assim como o adolescente deste relato de caso, não sabe que é portador dessa anomalia12, visto que ela geralmente é assintomática4. Dessa forma, tem-se uma maior chance de desenvolvimento de complicações graves e, até mesmo, letais, entre as quais se destaca a perfuração do apêndice e a evolução para a sepse e choque séptico4,7.

Apesar da gravidade e da letalidade dessas complicações, essas podem ser evitadas através da identificação e da resolução precoce dos quadros de apendicite11. Assim, é relevante incluir a apendicite entre os diagnósticos diferenciais de dor abdominal aguda em fossa ilíaca esquerda7, mesmo que o paciente relate que não é portador de nenhuma anomalia, visto que essa ainda pode não ter sido identificada até o momento12.


CONCLUSÃO

o a apendicite corresponde à indicação mais comum de cirurgia pediátrica de emergência, é de suma importância suscitar esse diagnóstico em crianças e adolescentes com dor abdominal aguda. Além disso, mediante às possíveis complicações desencadeadas pelo atraso na sua identificação, torna-se relevante considerar a apendicite como um possível diagnóstico diferencial mesmo em casos que a apresentação clínica não é clássica, como o ocorrido em pacientes portadores de situs inversus totalis.


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Data de Submissão: 24/09/2022
Data de Aprovação: 10/07/2023