ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Conhecimento dos médicos residentes de Pediatria quanto aos conceitos e ensino dos cuidados paliativos durante a pós-graduação

Knowledge of pediatric residents about concepts and teaching of palliative care during postgraduate studies

RESUMO

INTRODUÇÃO: Os cuidados paliativos consistem na assistência multidisciplinar capaz de melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças graves, ameaçadoras, integrando aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais ao tratamento chamado “convencional”, aliviando a dor e o sofrimento em todas a suas faces. Objetivo: Avaliar o conhecimento de médicos residentes de pediatria quanto aos conceitos e ensino dos cuidados paliativos durante a pós-graduação.
MÉTODOS: Trata-se de um estudo descritivo, qualitativo e fenomenológico. Resultados: Participaram 12 residentes do último ano do programa de Residência Médica, que, ao manifestarem suas concepções sobre a temática, apresentaram peculiaridades de um cuidado que vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo, quebrando paradigmas, como a busca pela cura e manutenção da vida a qualquer preço, sem propiciar espaço para uma abordagem voltada para o ser humano em sua integralidade. Para eles, esse nó górdio pode ser solucionado com a aquisição de habilidades técnicas, de comunicação, de reabilitação e o conhecimento do processo de morrer e da morte.
DISCUSSÃO: De forma muito inata, os seres humanos são resistentes em encarar a morte de forma natural, como parte da vida; isso decorre de aspectos sociais, culturais, espirituais, emocionais e do próprio ensino na área da saúde, evidenciado pelo desconhecimento dos entrevistados quanto à dimensão dos cuidados paliativos, sem, contudo, ignorarem sua importância.
CONCLUSÃO: Tais personagens não se sentem capacitados para interagir com pacientes e familiares com o intuito de discutir a terminalidade. Esses resultados mostram um posicionamento tímido e a necessidade peremptória dessa temática na formação profissional.

Palavras-chave: Cuidados paliativos, Pediatria, Programas de pós-graduação em saúde, Internato e residência.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Palliative care consists of multidisciplinary assistance capable of improving the quality of life of patients with serious and threatening illnesses, integrating physical, psychological, social and spiritual aspects to the so-called “conventional” treatment, relieving pain and suffering in all its aspects faces.
OBJECTIVE: to evaluate the knowledge of pediatric residents about the concepts and teaching of palliative care during postgraduate studies.
METHODS: This is a descriptive, qualitative and phenomenological study. Results: 12 residents of the last year of the medical residency program participated, who, when expressing their conceptions on the subject, presented peculiarities of a care that has been improved over time, breaking paradigms, such as the search for cure and maintenance of life at any time. price, without making room for an approach aimed at the human being in its entirety. For them, this Gordian knot can be resolved with the acquisition of technical skills, communication, rehabilitation and knowledge of the process of dying and death.
DISCUSSION: Human beings are very innately resistant to facing death naturally, as part of life; this stems from social, cultural, spiritual, emotional aspects and teaching in the health area itself, evidenced by the interviewees lack of knowledge about the dimension of palliative care, without, however, disregarding its importance.
CONCLUSION: Such characters do not feel empowered to interact with patients and family members in order to discuss the terminality. These results show a timid posture, and the peremptory need for this topic in professional training.

Keywords: Pediatrics, Palliative care, Health postgraduate programs, Fellowships and scholarships.


INTRODUÇÃO

Em 1982, o Comitê de Câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS) criou um grupo de trabalho responsável por elaborar políticas para o alívio da dor e cuidados paliativos. No ano de 1990, esse mesmo grupo definiu os cuidados paliativos como sendo o cuidado ativo e total para pacientes cuja doença não é responsiva ao tratamento de cura, e em 1998 estabeleceram a primeira definição específica para crianças. Nessa definição, sugeriam que a avaliação e o alívio do sofrimento deveriam ser prioridades na abordagem, ultrapassando o campo biológico, alcançando as esferas psíquica, social e espiritual, a fim de oferecer um cuidado ativo e total à criança e toda sua família1,2. Já em 2002, em nova revisão conceitual, a OMS passa a não distinguir os cuidados paliativos da criança e do adulto. A definição revisada estabelece uma abordagem multidisciplinar com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças ameaçadoras da vida, integrando os aspectos psicológicos e espirituais ao tratamento, prevenindo a dor e o sofrimento, seja ele físico, psicossocial ou espiritual. Ainda de acordo com a revisão, a morte deve ser considerada um processo normal, que não deve ser apressado ou adiado, devendo-se oferecer ao paciente e seus familiares um sistema de apoio que auxilie nos cuidados de fim de vida, no processo de morte e luto3.

Dados publicados em 2014 estimavam que cerca de 40 milhões de pessoas necessitariam de cuidados paliativos em todo o mundo, dos quais 78,0% viviam em países pobres e emergentes, e apenas 14,0% recebiam assistência devida, o que, segundo a OMS, é resultado da falta de conhecimento da população sobre o tema, crenças culturais e sociais, a falta de competência e habilidade dos profissionais de saúde, e até mesmo o excesso de regulamentações que restringem o uso de opioides e outras medicações analgésicas4.

No Brasil, os cuidados paliativos, em sua perspectiva mais moderna, combinando cuidados clínicos, formação e investigação, reporta-se ao final dos anos 50 e início dos anos 60 do século passado. O Atlas Global de Cuidados Paliativos publicado em 2014 pela OMS apresentou um panorama dos cuidados paliativos pelo mundo. Nesse documento, o Brasil recebeu a classificação 3 A, o que significa que os cuidados paliativos ainda são prestados de forma isolada, financiamento insuficiente, disponibilidade limitada de analgésicos e um pequeno número de serviços especializados4,5.

O país não dispõe de nenhuma política de saúde pública que estruture ou oriente especificamente o desenvolvimento dos cuidados paliativos, sendo que as normatizações se resumem a sete portarias publicadas entre 1998 e 2014, destinando esses cuidados quase que exclusivamente a pacientes e centros oncológicos5,6.

Diante desse cenário, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos realizou um levantamento sobre os cuidados paliativos disponíveis no Brasil até agosto do ano de 2018. Nessa data, eram 177 serviços especializados, dos quais 58% estavam localizados na região Sudeste, seguido pelo Nordeste (20%), Sul (14%), Centro-Oeste (5%) e Norte (3%), sendo que metade desses serviços entraram em atividade após o ano de 2010. Em posse desses dados, a academia sugeriu a criação de uma Política Nacional norteadora dos cuidados paliativos no Brasil, incorporando-os ao sistema de saúde, garantindo diagnóstico, tratamento, acompanhamento em centros especializados graduados por complexidade e acesso a medicamentos essenciais, além de programas de educação e capacitação de profissionais de saúde6.

Os avanços tecnológicos vivenciados nas últimas décadas propiciaram o desenvolvimento de todas as áreas de cuidados da saúde, inclusive da pediatria, modificando o perfil dos pacientes e suas doenças, enaltecendo a prevenção como foco de cuidado e demonstrando a necessidade dos cuidados paliativos pediátricos na identificação e tratamento de crianças que sofram com doenças crônicas, progressivas e avançadas, suas famílias e equipes que os atendem, buscando oferecer a melhor qualidade de vida possível ao longo do processo de adoecimento2,7-9.

Todavia, o ensino dos cuidados paliativos na formação médica é recente e, em muitos cursos, restrito à disciplina de oncologia. A definição das competências dos cuidados paliativos visando sempre o desenvolvimento profissional contínuo e a comunicação, seja na graduação e/ou na Residência Médica, são demandas legítimas e uma necessidade que cada vez mais se impõe10.

As escolas médicas canadenses foram as primeiras a tentarem implementar um currículo voltado ao ensino dos cuidados paliativos, no ano de 1993. No Brasil, a Universidade Federal de São Paulo foi a primeira escola médica a disponibilizar cursos de Cuidados Paliativos em caráter eletivo a alunos da graduação de 1994 a 2008, seguido pela Universidade de Caxias do Sul com a criação da disciplina obrigatória de Cuidados Paliativos no ano de 200211,12.

Portanto, o objetivo deste trabalho foi avaliar o conhecimento adquirido na pós-graduação, relacionado aos cuidados paliativos em suas múltiplas dimensões e a capacidade de comunicação. Acreditamos que tais competências possibilitariam que esses profissionais fossem capazes de demonstrar mais sensibilidade, empatia e compaixão em situações difíceis, como aquelas que envolvem a morte, eventos adversos em fim de vida e más notícias, por exemplo. A comunicação em cuidados paliativos envolve uma complexa mistura de questões espirituais, sociais, psicológicas e físicas no contexto do processo de morte, acarretando ainda mais ao paciente uma insatisfação com o cuidado que recebe no caso de uma comunicação ineficaz. Assim, a avaliação desse conhecimento pode refletir a realidade do ensino na Residência Médica, possibilitando o desenvolvimento de ferramentas de intervenção a fim de formar profissionais com uma visão ampla, humana e mais sensível13,14.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo descritivo, qualitativo e fenomenológico, posto que procura explicar a realidade do ponto de vista das pessoas que a vivem, resultando numa descrição fina, densa e fiel da experiência relatada. As descrições foram documentadas em entrevista semiestruturada, cuja amostra foi não probabilística acidental, tendo como sujeitos 12 residentes do último ano do Programa de Residência Médica em Pediatria. O estudo foi iniciado após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa vinculado à Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP (Parecer: 4.836.536; CAAE: 47938921.3.0000.5411), leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos participantes, garantindo o anonimato de suas identidades. Para a entrevista foram elaboradas quatro questões norteadoras:

1) Na sua concepção, o que são os cuidados paliativos?
2) Como você classifica o ensino dos cuidados paliativos na sua formação como médico pediatra?
3) Baseado em seus conhecimentos sobre o tema, qual paciente é candidato aos cuidados paliativos?
4) Quais limitações você encontra na implementação dos cuidados paliativos na unidade em que você é residente?

Para análise dos dados qualitativos aplicamos a “Técnica de Análise do Conteúdo”, descrita como: “um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que visam obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”, categorizando as falas em três fases: a) a pré-análise, b) a exploração do material, e o c) tratamento dos resultados obtidos pela inferência e interpretação, a sistematização da descrição dos dados coletados e a realização da leitura flutuante15.


RESULTADOS

Participaram desta pesquisa doze residentes do terceiro ano do programa de Residência Médica em Pediatria de um hospital terciário, universitário, de grande porte, do interior do estado de São Paulo. Ao manifestarem suas concepções quanto ao aprendizado dos cuidados paliativos durante a Residência, apresentaram as peculiaridades de um cuidado que vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo, sobretudo na formação médica, principalmente no que se refere ao manejo da dor e do sofrimento, visando promover qualidade de vida e conforto aos pacientes e seus familiares.

O que são cuidados paliativos

Para compreendermos a percepção dos residentes quanto ao ensino dos cuidados paliativos na Residência, é necessário avaliar o quão familiarizados estão com o tema:

[…] são cuidados prestados a pacientes com doenças crônicas ou agudas em risco de vida, visando a qualidade de vida […] (E4)
[…] oferecer e garantir qualidade de vida, tanto do paciente quanto de seus familiares, diante de uma determinada condição de doença […] (E1)
[…] uma forma de garantir o alívio do sofrimento, tratamento da dor, acolhimento da família e do próprio paciente, assegurando e respeitando a dignidade do paciente e seus desejos diante de suas condições clínicas […] (E12)
[…] é toda forma de cuidado visando o bem-estar global do paciente, seja físico ou mental […] (E7)
[…] na faixa etária pediátrica, abrange crianças e adolescentes com comorbidades crônicas, associadas ou não à finitude da vida, mas que comprometem a qualidade de vida […] (E10)
[…] representam uma terapia que tem por objetivo fornecer medidas de conforto e bem-estar não necessariamente curativas […] (E2)

O ensino dos cuidados paliativos na Residência Médica

[…] considero insuficiente, contando com poucos profissionais capacitados para aplicar a disciplina aos alunos de pediatria […](E3)
[…] apesar da extrema relevância, o ensino é insuficiente, tanto na graduação quanto na Residência […] (E9)
[…] o ensino é essencial e necessário, porém tem muito a ser aperfeiçoado, sobretudo por ser uma área relativamente nova na pediatria […] (E5)
[…] subestimado […] (E6)
[…] deveria ser entendido como área de atuação médica, e não como um ‘braço’ da oncologia […] (E1)


Candidatos aos cuidados paliativos

[…] todo paciente é potencialmente um candidato, considerando que os cuidados paliativos não se resumem aos cuidados prestados no processo de morrer […] (E8)
[…] doentes crônicos ou agudos com risco de morte […] (E7)
[…] qualquer paciente gravemente enfermo ou com doenças que causam algum grau de incapacidade […] (E5)
[…] pacientes nos quais suas condições clínicas não permitiram retorno às plenas condições de saúde anteriores […] (E4)
[…] pacientes com doenças ameaçadoras à vida e prognóstico ruim […] (E1)
[…] pacientes com comorbidades crônicas que de alguma forma comprometem sua qualidade de vida ou acarretam prejuízo em qualquer aspecto, seja físico, emocional, psicológico ou espiritual […] (E11)

Limitações na implementação dos cuidados paliativos em seu serviço

[…] ausência de médicos pediatras capacitados em cuidados paliativos […] (E11)
[…] resistência de chefes de disciplinas, que não permitem que seus pacientes sejam acompanhados pelos cuidados paliativos […] (E12)
[…] desconhecimento dos médicos, resultando em falta de encaminhamentos e seguimentos […] (E4)
[…] falta de equipe multidisciplinar e interdisciplinar […] (E7)
[…] especialistas que têm por máxima a cura, não ponderando os benefícios e malefícios de sucessivas intervenções invasivas […] (E8)
[…] desconhecimento da área por pais e profissionais, que muitas vezes encaram os cuidados paliativos como sentença de morte […] (E1)
[…] falta de comunicação efetiva […] (E6)
[…] ausência de vínculo médico-paciente-família que transpareça segurança […] (E3)



DISCUSSÃO

O termo cuidados paliativos surgiu na sociedade com a necessidade de reformular o conceito e o cuidado voltado a pacientes portadores de doenças ameaçadoras da vida, que requerem cuidados constantes. De forma muito inata, os seres humanos são resistentes em encarar a morte de forma natural, como parte da vida; isso decorre de aspectos sociais, culturais, espirituais, emocionais e do próprio ensino na área da saúde, o que pode ser evidenciado pelo desconhecimento por parte dos entrevistados quanto à dimensão do tema, caracterizando-o por repetições de “jargões” como crônico, risco de vida, conforto e dignidade; entretanto, há de se reconhecer a valorização desse cuidado na fala dos residentes16,17.

Tal paradigma é reforçado na formação científica, que tende a buscar a cura e manutenção da vida a qualquer preço, e por vezes não propicia espaço para uma abordagem dos aspectos emocionais e espirituais do indivíduo. Nessa perspectiva, a morte é associada muitas vezes à perda e frustração, tanto pelos familiares quanto pelos profissionais da saúde, o inverso do conceito aplicado atualmente aos cuidados paliativos17,18.

Para os entrevistados, o ensino dos cuidados paliativos na Residência Médica é insuficiente; subestimado. Diante dessa realidade, somente uma mudança substancial na gestão e nos currículos de graduação dos profissionais de saúde e pós-graduação (como a Residência Médica) é que os cuidados paliativos se consolidarão no Brasil18.

A formação desses profissionais deve incluir, entre outras, as habilidades de comunicação, o trabalho em equipe, a competência na condução diante da doença ameaçadora, o manejo da dor e outros sintomas, além das técnicas de suporte de enfrentamento da morte e do luto; contudo, o ensino na área de saúde, inclina-se para formação técnico-científica em detrimento da abordagem dos aspectos emocionais, espirituais e sociais18,19.

Atuar nesse campo exige não apenas um profundo conhecimento médico-científico, como também um constante enfrentamento da morte e de suas implicações do processo de morrer, demandando o desenvolvimento de habilidades humanitárias e emocionais, comumente pouco trabalhadas nos cursos de graduação e pós-graduação médica. Espera-se desse profissional a capacidade de agir prontamente perante sintomas como o sofrimento oriundo da dor física, da dispneia, da náusea, do delirium e da constipação, independentemente da causa18-20.

Paliativar pressupõe cuidar, de forma integral, do indivíduo e seus entes queridos, buscando influenciar positivamente na condição de saúde e qualidade de vida, oferecendo orientação, tratamento e cuidados mesmo nos casos em que não há possibilidade de cura; no entanto, identificar quem é candidato a esse cuidado constitui-se um desafio para os serviços de saúde, e muitas vezes gera conflitos e confusão quanto à terminologia, tanto para o paciente e seus familiares quanto para profissionais, graduandos e pós-graduandos da área de saúde21,22.

Muitos pesquisadores sugerem como uma opção para indicação de cuidados paliativos a avaliação do grau de capacidade e de dependência funcional, utilizando escores de performance, permitindo graduar o risco de terminalidade de cada paciente; entretanto, apesar de existirem métodos de avaliação específicos para crianças, a fala dos entrevistados sugere desconhecimento e/ou baixa aplicabilidade na prática diária23,24.

Em contraste à população adulta, na qual a maioria dos pacientes em cuidado paliativo tem doenças oncológicas, e que seu seguimento geralmente é realizado em hospices ou home care, na faixa etária pediátrica, as doenças congênitas e genéticas são as maiores responsáveis pela indicação desse cuidado. Em seguida, aparecem as doenças neurológicas crônicas, e as onco-hematológicas, sendo que, nessa idade, o final de vida ainda ocorre, em sua maior parte, no ambiente hospitalar25-27.

Por ano, cerca de 1% da população morre, seja por causas inesperadas, ou previsíveis. Apesar de difícil, o papel dos cuidados paliativos é reconhecer indivíduos em fase final de vida, independentemente do diagnóstico, e fornecer cuidados voltados a uma melhora na qualidade de vida, resultando em aumento na sua sobrevida, além de controle dos sinais e sintomas advindos de sua condição patológica, e conforto a seus entes queridos28-30.

Tais condições impõem ao setor da saúde um horizonte de grandes desafios, econômicos e de gestão, visando a adequação e aprimoramento do modelo de assistência na saúde, sobretudo na formação dos profissionais envolvidos nesse tipo de cuidado31.

Dentre as limitações apresentadas pelos entrevistados, a falta de profissionais que possuam afinidade com essa temática e a resistência de certos médicos, dentre outros da área de saúde, ressalta a necessidade de uma ampla discussão sobre a formação médica na graduação e na pós-graduação. A avaliação técnica precisa é de suma importância diante de pacientes com doenças ameaçadoras e o aprendizado se inicia na prática clínica. O direcionamento dos preceptores e professores para uma leitura focada na finitude, bem como a capacidade técnica, por meio do ensino ao longo da graduação e da pós-graduação, são determinantes para essa avaliação criteriosa18,19,31.

A integração entre ensino e assistência nos cuidados de pacientes com doença terminal é o grande legado deixado por Cicely Mary Saunders, e o chamado movimento Hospice, no Saint Christopher’s Hospice, em Londres, em 1967, espalhando-se por todo o mundo. Após mais de 50 anos, ainda constitui-se um desafio para os profissionais graduados, como relatado nos depoimentos, o que provavelmente se estende aos graduandos dos diversos cursos da área da saúde32.

Refletir sobre a formação acadêmica, em especial sobre a inserção da temática no currículo da graduação e pós-graduação médicas, confere densidade para enfrentar as limitações e implicações a que serão submetidos esses profissionais; entretanto, trata-se de uma medida importante, dado que, a partir dela, podem ser construídos e/ou revistos elementos basilares da formação, de modo a expandir o universo de atuação profissional e, ainda, garantir a assistência aos pacientes e a seus familiares, envolvendo dimensões que afirmem a dignidade do ser humano para além do tratamento com viés exclusivamente curativo33,34.


CONCLUSÕES

Através dos relatos expostos, pode-se concluir que os residentes não se sentem capacitados para interagir com pacientes e familiares com o intuito de discutir a terminalidade naqueles portadores de doenças ameaçadoras. Este estudo representa uma pequena amostra da grande complexidade existente entre duas concepções ainda em construção na formação de profissionais da área de saúde: de um lado, o conceito do cuidado intensivo, pautado na tecnologia e na busca incessante da cura, de outro, os cuidados paliativos, voltados para a manutenção da qualidade de vida, muito além da cura.

Os resultados caracterizam ainda o posicionamento tímido dos profissionais, denotando a necessidade do desenvolvimento de programas que, inseridos nas grades curriculares, possam contribuir para desenvolver as habilidades consideradas intrínsecas à atuação do médico nesse tipo de cuidado, sobretudo a comunicação, a terminalidade, a qualidade de vida, o conforto e o trabalho em equipe, estendendo-se sempre aos familiares e àqueles que integram o círculo do paciente e seus sagrados.


LIMITAÇÕES DO ESTUDO

O objetivo desta pesquisa, a complexidade do tema, assim como as características do público analisado, limitou a exploração de todas as dimensões dos cuidados paliativos, sobretudo na faixa etária pediátrica. Contudo, acreditamos que colabore para uma reflexão profunda quanto à necessidade de inserção obrigatória dos cuidados paliativos na graduação, assim como em todos os programas de Residência Médica. Deve-se também reforçar a necessidade da formação do médico capaz de trabalhar em equipe multidisciplinar e interdisciplinar. Incentivar a busca ativa de conhecimento é pedra fundamental no desenvolvimento de habilidades voltadas aos “novos cuidados paliativos”: aquele que vê a vida muito além da morte.


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Faculdade de Medicina de Botucatu - FMB UNESP, Departamento de Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Haroldo Teófilo de Carvalho
Faculdade de Medicina de Botucatu
Av. Prof. Mário Rubens Guimarães Montenegro, s/n, UNESP, Campus de Botucatu
Botucatu, SP, Brasil. CEP: 18618687
E-mail: haroldoteofilo@gmail.com

Data de Submissão: 28/03/2023
Data de Aprovação: 23/03/2023