Relato de Caso
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
2
Síndrome diencefálica (síndrome de Russell): relato de caso clínico
Diencephalic Syndrome (Russell Syndrome): A Clinical Case Report
David Richer Araujo Coelho1; Stephanie Pascoal de Miranda Martins2; Anna Cecília Silveira Rissi2; Victoria Holcman de Marsillac2; Tatiana Mendonça Fazecas e Costa3; Bruno Pereira Ribeiro Da Rocha4,5
RESUMO
A síndrome diencefálica, ou síndrome de Russell, é caracterizada por um extremo emagrecimento com ausência do tecido adiposo subcutâneo associado a sintomas como vômitos, hipercinesia, euforia, irritabilidade, nistagmo, atrofia óptica e palidez sem anemia. Embora rara, a síndrome diencefálica deve ser pensada em crianças com atraso no desenvolvimento e com preservação do crescimento linear. Apresentamos a seguir um relato de caso clínico de um lactente com síndrome de Russell.
Palavras-chave:
Relatos de casos, Pediatria, Neurologia.
ABSTRACT
Diencephalic syndrome, or Russell syndrome, is characterized by extreme weight loss without subcutaneous adipose tissue associated with symptoms such as vomiting, hyperkinesia, euphoria, irritability, nystagmus, optic atrophy, and pallor without anemia. Although rare, diencephalic syndrome should be considered in children with developmental delay and preservation of linear growth. We present below a clinical case report of a child with Russell syndrome.
Keywords:
Case reports, Pediatrics, Neurology.
INTRODUÇÃO
Em 1951, Russell descreveu uma síndrome marcada por extremo emagrecimento e ausência do tecido adiposo subcutâneo, apesar do aporte calórico adequado, associado a vômitos, hipercinesia, euforia, irritabilidade, nistagmo, atrofia óptica e palidez sem anemia1.
Ao se deparar com essa sintomatologia, o pediatra investiga diversas causas de emagrecimento, como erros inatos do metabolismo, fibrose cística, doença celíaca, Kwashiorkor e problemas gastrointestinais, sendo raramente aventada a hipótese de um tumor envolvendo o hipotálamo2.
Com isso, os pacientes enfrentam um atraso importante no diagnóstico. Embora rara, a síndrome diencefálica deve ser pensada em crianças com atraso no desenvolvimento, que seja inexplicável por outras causas, e com preservação do crescimento linear3.
Com o objetivo de chamarmos atenção para a síndrome de Russell como diagnóstico diferencial, apresentamos a seguir um caso clínico de um lactente com síndrome diencefálica.
CASO CLÍNICO
A.N.D.S., 9 meses, sexo masculino, natural do Rio de Janeiro/RJ, iniciou aos 6 meses de idade quadro de perda ponderal e êmese pós-prandial. Após aproximadamente 3 meses com persistência do quadro, recorre ao serviço de saúde próximo de sua residência, com marcos antropométricos alterados, pesando 5,700 kg (score Z abaixo de -3), apesar da estatura dentro dos limites da normalidade para a idade.
Na avaliação clínica, emagrecimento intenso visível, hipotrofia muscular, com perda de bola de gordura de Bichart, redução do tecido celular subcutâneo e panículo adiposo, sobretudo nas nádegas, sem edemas ou visceromegalias. Lactente apresentava-se ativo, sem irritabilidade, com apetite preservado, assim como diurese e evacuações sem alterações.
Foi internado para investigação do quadro de desnutrição grave do tipo marasmo (peso abaixo do Z-3) e imediatamente iniciada conduta preconizada pelo Manual de Atendimento da Criança com Desnutrição Grave em Nível Hospitalar4, realizando metronidazol 40 mg endovenoso de 8/8 horas por 7 dias, mebendazol 5 ml via oral de 12/12 horas por 3 dias e sulfametoxazol + trimetoprima 35 mg + 7 mg endovenoso de 12/12 horas por 7 dias. Além do tratamento com antibióticos e anti-helmíntico, a equipe de nutrição do hospital seguiu o protocolo de preparação alimentar do Ministério da Saúde4 para crescimento rápido com 100 kcal e 2,9 g por 100 ml com a meta de 130 ml/kg diariamente. No entanto, apesar das medidas adotadas, nosso paciente não obteve sucesso para ganho de peso.
Tendo classificado o caso como failure to thrive5 – atraso no desenvolvimento ou falha de crescimento quando os parâmetros antropométricos da criança se encontram muito abaixo dos valores esperados –, foram levantadas algumas hipóteses diagnósticas, como doença celíaca, alergia à proteína do leite de vaca, tuberculose e síndrome de Russell. Mãe e paciente iniciaram dieta com restrição à proteína do leite de vaca e foi introduzida fórmula láctea extensamente hidrolisada sem lactose. Durante o período de internação, não apresentou êmese, manteve-se afebril, com boa aceitação da dieta ofertada e do seio materno.
Na história pregressa, lactente acompanhava regularmente com pediatra da Estratégia de Saúde da Família (ESF), mantinha desenvolvimento neuropsicomotor adequado, atingindo todos os marcos estipulados pela Sociedade Brasileira de Pediatria6 nos períodos predeterminados. Peso, altura e perímetro cefálico dentro do percentil esperado para idade (entre Z0 e Z-2). Sem comorbidades ou uso de medicamentos. Calendário vacinal atualizado.
História alimentar inadequada, com seio materno exclusivo até os 2 meses de vida, sendo introduzido leite de vaca. Aos 4 meses, iniciou derivados de leite e farináceos, e, aos 6 meses, introduziu papas salgadas, sempre com boa aceitação. Durante o período, a mãe manteve leite materno em livre demanda. Aos 7 meses, optou-se por acrescentar fórmula polimérica de seguimento à dieta devido à perda de peso importante.
Na história gestacional, a mãe realizou pré-natal completo, GIIPIAI, criança nascida de parto vaginal, com 38 semanas e 2 dias, 3.440 g, 50 cm, AIG, Apgar 9/9, sem intercorrências durante gestação, parto e período neonatal. Triagens neonatais sem alterações.
Durante período de internação hospitalar, foram realizados diversos exames laboratoriais com resultados normais, dentre eles: hemograma, bioquímica, hemocultura, TORCHS, anti-HIV, TSH e T4 livre, antiendomísio IgA e IgG, antitransglutaminase IgA e IgG, imunoglobulina A, IgE total, imunoglobulina M, imunoglobulina G, parasitológico de fezes, EAS, urinocultura, assim como PPD. Recebeu avaliação de fundoscopia pela oftalmologia, sem sinais de hipovitaminose A ou outras alterações.
Além disso, foi submetido à investigação diagnóstica por imagem com radiografia de tórax e ultrassonografia (USG) abdominal sem alterações. USG transfontanela evidenciou formação expansiva ecogênica na projeção de terceiro ventrículo e ectasia dos ventrículos laterais. Realizou ressonância de crânio confirmando a presença de lesão expansiva hipotálamo-quiasmática, com infiltração da porção intracraniana dos nervos ópticos e da haste hipofisária, notando-se área de edema e infiltração ao longo dos tratos ópticos bilateralmente.
No 20º dia de internação, a partir dos achados da ressonância de crânio, a neurocirurgia assumiu a condução do caso, dando seguimento à investigação com biópsia da lesão. O resultado histopatológico foi compatível com glioma de vias ópticas. Nesse procedimento, foi colocada uma derivação ventricular externa (DVE), a qual permaneceu por 30 dias, evoluindo com ventriculite por Staphylococcus aureus, tratada com 20 dias de vancomicina. Após três culturas de liquor negativas, foi realizada derivação ventriculoperitoneal (DVP).
Paciente recebeu alta hospitalar após 54 dias para dar seguimento do acompanhamento nos serviços de oncologia, neurocirurgia e gastroenterologia.
DISCUSSÃO
A síndrome de Russell tem um início insidioso e os primeiros sintomas surgem geralmente antes do primeiro ano de vida, podendo variar entre 2 e 36 meses, havendo uma predominância do sexo masculino7. O paciente do nosso caso clínico iniciou quadro com 6 meses, correspondendo à média encontrada na literatura de 6,2 meses8.
A principal característica da síndrome de Russell é o extremo emagrecimento com ausência do tecido adiposo subcutâneo e crescimento linear preservado1, como também ocorreu com nosso paciente, que tinha marcos antropométricos alterados (escore z abaixo de -3) com marcante redução de panículo adiposo, principalmente em nádegas. Apesar de seu visível emagrecimento, sua estatura estava dentro dos limites da normalidade para a idade.
A etiopatogenia do extremo emagrecimento não é ainda totalmente compreendida. A hipótese de que a presença do tumor seria uma das causas é pouco provável, pois o comprometimento dos núcleos hipotalâmicos leva a uma ingestão diminuída e, consequentemente, diminuição, mas não ausência, do tecido adiposo9. No entanto, isso não ocorre na síndrome, que é caracterizada por apetite preservado com ausência do tecido adiposo10, como apresentava nosso paciente, inclusive com perda da bola de gordura de Bichat.
Algumas outras hipóteses são descritas na literatura. É sugerido que o aumento do nível de GH, que tem uma ação lipolítica e está presente na maioria dos pacientes, esteja relacionado com a fisiopatologia da síndrome. É também encontrado um aumento dos níveis de cortisol, que potencializaria a ação lipolítica do GH, causando, assim, o emagrecimento profundo11.
Outros estudos mostram que o tumor levaria à produção de um peptídeo lipolítico, a β-lipotrofina. Também é relatado que haveria uma hipersecreção do hormônio mobilizador de lipídeos (LMH), que fica sob controle do hipotálamo. Esses fatores explicariam a redução do tecido adiposo subcutâneo desses pacientes12.
Os sinais e sintomas neurológicos da síndrome, como hipercinesia, euforia, irritabilidade e nistagmo, são os mais frequentemente encontrados, enquanto causados pela compressão do tumor na região diencefálica, como vômitos, atrofia óptica, papiledema, tremores, sudorese, hipertermia, convulsões e hidrocefalia, que são mais raros7,8.
Nosso paciente apresentava êmese pós-prandial e euforia, que são descritos na síndrome13. Também é comum fácies de espanto e alerta devido à retração palpebral (sinal de Collier) e proptose bilateral decorrente da lesão diencefálica14.
As alterações oftalmológicas, como nistagmo, diminuição da acuidade visual e palidez óptica, foram relatadas em 56-66% dos pacientes em alguns estudos15. O nistagmo, que geralmente é rotatório, seria resultado da deficiência de fixação pela baixa acuidade visual decorrente da compressão dos nervos ópticos pelo tumor.
São encontradas também algumas manifestações neurovegetativas, como sudorese, hipotensão e distúrbios da termorregulação (hipo ou hipertermias sem causa aparente)1. As causas dos distúrbios da termorregulação seriam decorrentes da lesão do centro da termólise e da termogênese levada pelo tumor. Essas alterações vegetativas levariam também à palidez na ausência de anemia.
Em relação ao metabolismo, não há alterações nos níveis de proteínas, mas hipoglicemia foi relatada em alguns casos1. Sobre as mudanças de comportamento, é hipotetizado que seriam resultado da interrupção das vias fronto-tálamo-hipotalâmicas, o que seria equivalente a uma lobectomia pré-frontal.
Inicialmente, o eletroencefalograma (EEG) e o fundo de olho são normais. Podem ser encontradas alterações difusas no EEG e atrofia óptica relacionadas à hipertensão intracraniana, conforme descrito em alguns casos2. Nosso paciente não realizou EEG e não houve alteração no exame de fundo de olho.
A radiografia de crânio é geralmente sem alterações. Com a evolução da doença, podem ser encontrados sinais de hipertensão intracraniana. Em alguns casos, pode ser necessária a derivação do líquido cefalorraquidiano.
No caso do nosso paciente, foi realizada uma USG transfontanela, que evidenciou ectasia dos ventrículos laterais e formação expansiva ecogênica na projeção de terceiro ventrículo. Foi feita ressonância de crânio, que confirmou processo expansivo em terceiro ventrículo, como na maioria dos casos da literatura12.
Os tumores envolvidos na síndrome de Russell são geralmente gliomas, dentre os quais o astrocitoma é o mais frequentemente encontrado. No entanto, são descritos também ependimomas, gangliogliomas e disgerminomas8. Nosso paciente apresentou histopatológico compatível com glioma de vias ópticas. Cabe ressaltar que os tumores do Sistema Nervoso Central (SNC) são a segunda causa mais comum de neoplasias pediátricas depois da leucemia, e a sua incidência é estimada em torno de 2,8 por 100.000 crianças por ano16. Os tumores da síndrome de Russell são mais raros, sendo relatados poucos casos na literatura1,2,7,8,10.
O prognóstico desses pacientes é reservado. No geral, a expectativa de vida é de apenas até o segundo ou terceiro ano de vida6. Há, entretanto, relatos de sobrevida de 12 anos17.
Em relação ao tratamento, há divergências na literatura sobre o assunto. Em grande parte dos casos, pelo atraso no diagnóstico, pelo volume do tumor e localização anatômica, fica impossibilitada a ressecabilidade total. Por isso, alguns autores defendem apenas o tratamento radioterápico e quimioterápico. Outros já consideram a radioterapia e a quimioterapia ineficazes7,8. É importante destacar que a radioterapia é contraindicada até os 3 anos de idade18.
Uma análise de casos evidenciou que a média de sobrevida dos pacientes sem tratamento foi igual a de 12,3 meses. Com o tratamento cirúrgico, a sobrevida foi maior, atingindo 20 meses, e o tratamento feito apenas com a radioterapia teve um resultado de 25 meses. Já a associação da cirurgia com a radioterapia aumentou a média de sobrevida para 29 meses8.
Nosso paciente está sendo acompanhado atualmente pelo serviço de oncologia com proposta de realização de quimioterapia. Não houve ressecção do tumor pela difícil localização anatômica para abordagem cirúrgica. O paciente hoje se encontra com 1 ano e 1 mês de vida e ainda não ganhou peso. Ele segue sendo acompanhado pelos serviços de neurocirurgia e gastroenterologia.
Em suma, embora seja rara, a síndrome diencefálica deve ser pensada como diagnóstico diferencial nos pacientes pediátricos com atraso no desenvolvimento e que apresentem preservação do crescimento linear.
REFERÊNCIAS
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1. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Medicina - Macaé - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Municipal Jesus, Residente de Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
3. Hospital Municipal Jesus, Radiologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
4. Hospital Municipal Jesus, Gastroenterologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
5. Hospital Federal de Bonsucesso, Gastroenterologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Endereço para correspondência:
David Richer Araujo Coelho
Av. Aluizio da Silva Gomes, 50 - Granja dos Cavaleiros
Macaé, RJ, Brasil
E-mail: david.richer.spa@hotmail.com
Data de Submissão: 29/09/2022
Data de Aprovação: 30/11/2022