ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 3

Neurotuberculose na infância: um relato de caso

Neurotuberculosis in childhood: a case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de um paciente pediátrico com diagnóstico de neurotuberculose, uma forma rara de manifestação da doença, relacionando-o com a literatura.
RELATO DE CASO: Paciente masculino, 10 meses, com quadro de tosse crônica e febre, linfonodomegalia cervical, além de paresia de dimídio direito e crises convulsivas. Relatado contato domiciliar com portador de tuberculose pulmonar tratado inadequadamente. Realizada prova tuberculínica para triagem, com resultado negativo. A análise do liquor evidenciou teste rápido negativo para Mycobacterium tuberculosis, hipoglicorraquia, aumento das proteínas e da celularidade à custa de linfócitos, com bacterioscopia negativa. A associação dos achados da tomografia computadorizada e ressonância magnética de crânio com os dados clínicos indicou a possibilidade de neurotuberculose com vasculite complicada e infarto cerebral. A confirmação diagnóstica foi possível após uma semana de internamento, com o resultado positivo do teste rápido molecular para Mycobacterium tuberculosis em amostra de lavado gástrico. Optou-se pelo início do esquema de tratamento com rifampicina 15mg/Kg, isoniazida 10mg/Kg, pirazinamida 35mg/Kg e dexametasona 0,3mg/Kg. Após 20 dias, o paciente se encontrava em bom estado geral e recebeu alta para seguimento ambulatorial.
CONCLUSÃO: A neurotuberculose é uma apresentação clínica rara e desafiadora na prática pediátrica. O diagnóstico rápido e o manejo precoce impactam diretamente na morbimortalidade da criança, devendo ser considerada como diagnóstico diferencial em quadros neurológicos variados.

Palavras-chave: Criança, Pediatria, Tuberculose, Tuberculose meníngea.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the case of a pediatric patient diagnosed with neurotuberculosis, a rare manifestation of the disease, relating it to the literature.
CASE REPORT: Male patient, 10 months old, started with chronic cough associated with fever, lymphadenopathy, in addition to right hemibody paresis and episodes of convulsive crises. In the anamnesis, there was evidence of home contact with a patient with pulmonary tuberculosis who had not been adequately treated. Tuberculin test was performed, with negative result. Cerebrospinal fluid analysis showed negative rapid test for tuberculosis, hypoglycorrhachia, increased proteins and cellularity at the expense of lymphocytes and negative bacterioscopy. The association of computed tomography and magnetic resonance imaging findings with clinical data, then, indicated the possibility of neurotuberculosis with complicated vasculitis and cerebral infarction. Diagnostic confirmation was only possible after a week of hospitalization, with the positive result of the rapid molecular test for Mycobacterium tuberculosis in a sample of gastric lavage. It was decided, then, to start the scheme rifampicin 15 mg/Kg, isoniazid 10 mg/Kg, pyrazinamide 35 mg/Kg and dexamethasone 0.3 mg/Kg. After 20 days, the patient was in good general condition and was discharged for outpatient follow-up.
CONCLUSION: Neurotuberculosis is a rare and challenging clinical presentation in the pediatrics practice. The fast diagnosis and the early treatment impact directly in the child morbimortality. Therefore, it must be considered as a differential diagnosis in various neurological presentations.

Keywords: Child, Pediatrics, Tuberculosis, Central nervous system infections.


INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) é uma doença infectocontagiosa que ainda apresenta alta incidência e morbimortalidade na sua forma multirresistente1,2. A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2016 foi de 10,4 milhões de novos casos no mundo, sendo que 6,9% desses foram notificados em crianças1.

As manifestações mais comuns da TB na criança são pulmonar e adenopatia intratorácica, representando 60%-80% dos casos1,3. A faixa etária pediátrica possui maior tendência em apresentar quadros extrapulmonares comparadas aos adultos1. Os sintomas em destaque são fadiga, inapetência, perda de peso, sudorese e febre noturna1,4. Além disso, podem estar presentes linfonodomegalias, tosse, sibilos, dispneia, hepatoesplenomegalia, eritema nodoso e artralgia1.

O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) pode acarretar quadro clínico muito variável, incluindo vômitos, rigidez de nuca, hemiparesia, paralisia de nervos cranianos, déficits focais, crises convulsivas, distonia de membros e hidrocefalia2,5.

O objetivo deste trabalho é relatar o caso de um paciente pediátrico com neurotuberculose (neuroTB), uma forma rara de apresentação da doença e de difícil diagnóstico laboratorial. Pretende-se avaliar as particularidades diagnósticas, evolução e tratamento, assim contribuindo para a resolução de casos semelhantes.


METODOLOGIA

Trata-se de um estudo observacional descritivo do tipo relato de caso. O objetivo desta revisão é sintetizar e analisar as evidências na literatura sobre a neurotuberculose pediátrica, com foco em relatos de caso.


RELATO DE CASO

Masculino, 10 meses de idade, deu entrada no pronto atendimento com quadro de tosse associada à febre há 29 dias, além de paresia de dimídio direito e episódios de crises convulsivas caracterizadas por olhar vago e movimentos em face e membro superior à direita. Paciente previamente hígido, com relato de internamento anterior por sibilância e imunizações atualizadas conforme previsto pelo Ministério da Saúde (MS). Há 7 meses, foi contactante domiciliar de portador de TB pulmonar não tratado adequadamente.

Na admissão, encontrava-se hipoativo e febril. À palpação cervical, identificaram-se linfonodos bilaterais, de 1-2 centímetros, móveis, fibroelásticos e indolores. Ao exame neurológico, apresentava paralisia facial central à direita, com oftalmoplegia conjugada na mirada esquerda, menor movimentação em dimídio direito, hiperreflexia (3+/4) e presença de clonus à direita. O perímetro cefálico estava no percentil 50 para a idade e a fontanela anterior era puntiforme.

Devido à possibilidade de meningite, foi iniciada antibioticoterapia empírica com oxacilina 200mg/kg/dia e ceftriaxona 100mg/kg/dia, associado a fenobarbital para controle das crises convulsivas.

A triagem com prova tuberculínica (PPD) demonstrou resultado negativo. A análise do liquor foi realizada por meio da técnica de PCR e teste rápido Mycobacterium tuberculosis, ambos negativos. Evidenciou-se hipoglicorraquia (22mg/dL), aumento das proteínas (84mg/dL) e da celularidade (195/mm3, sendo 75% de linfócitos, 19% de neutrófilos e 6% de monócitos) e bacterioscopia negativa.

A tomografia computadorizada (TC) de tórax demonstrou linfonodomegalias mediastinais com calcificações e consolidação necrotizante na língula. A TC de crânio evidenciou impregnação de meninge em cisternas da base e fissura de Sylvius a esquerda, além de discreta dilatação dos ventrículos laterais. A ressonância magnética (RNM) de crânio constatou áreas de infarto isquêmico extenso em território da artéria cerebral média esquerda, associado a realce leptomeníngeo pelo contraste envolvendo as cisternas da base, provavelmente relacionadas a processo inflamatório/infeccioso (Figuras 1 e 2).


Figura 1. Ressonância Magnética de Crânio. Extensas áreas de restrição à difusão no território da artéria cerebral média esquerda caracterizadas por alto sinal nas sequências DWI e baixo sinal correspondente no mapa ADC, compatíveis com insultos isquêmicos recentes.




Figura 2. Ressonância Magnética de Crânio. Múltiplos focos de realce leptomeníngeo frontoparietotemporais esquerdos, assim como nas cisternas da base ipsilaterais, compatíveis com acometimento infeccioso (meningite), dentro de contexto clínico condizente.



A associação dos achados de imagem com os dados clínicos indicou a possibilidade de neurotuberculose com vasculite complicada e infarto cerebral. Foi realizada uma Angio-RNM do crânio, que demonstrou irregularidade de contornos com redução do calibre do sifão carotídeo esquerdo associada a sinais de oclusão das porções proximais da artéria cerebral média ipsilateral. Desse modo, reforçou a hipótese de vasculite por intenso realce parietal pelo contraste dessas artérias. Na ecografia de região cervical, foram encontrados linfonodos em número aumentado bilateralmente, heterogêneos e com focos de calcificação.

A confirmação diagnóstica laboratorial só foi possível após 1 semana de internamento, com o resultado positivo do teste rápido molecular positivo para Mycobacterium tuberculosis, sensível à rifampicina, em amostra de lavado gástrico. Também foi realizada biópsia de linfonodo cervical, a qual identificou linfadenite granulomatosa necrotizante e PCR qualitativo detectável para Mycobacterium tuberculosis.

Optou-se, então, pela suspensão dos antibióticos e início do tratamento para neuroTB com rifampicina 15mg/kg, isoniazida 10mg/kg, pirazinamida 35mg/kg e dexametasona 0,3mg/kg. Após 20 dias de tratamento intra-hospitalar, o paciente se encontrava em bom estado geral, afebril e com persistência da hemiparesia direita. Recebeu alta para seguimento ambulatorial com tratamento domiciliar e a família foi encaminhada para acompanhamento médico em sua cidade de origem.


DISCUSSÃO

Devido à resposta imune imatura, as crianças são mais propensas a desenvolver formas graves da doença, como a neuroTB relatada no caso1. Cerca de 5% a 10% dos casos de TB têm envolvimento do SNC3,4. Entre estes, 70% a 80% consistem em meningite tuberculosa, com mortalidade de 5% a 43% e déficits neurológicos permanentes em 13% a 17% dos casos3. As sequelas são mais comuns nos quadros pediátricos e ocorrem em 14%-52% dos casos de neuroTB6,7.

Poucos casos similares foram descritos na literatura com apresentação semelhante ao presente relato de neuroTB. Perez-Alvarez et al. relataram um caso de neuroTB em paciente de 5 anos, com manifestação clínica semelhante ao descrito acima, apresentando infarto cerebral na RM de crânio e hemiparesia como principal achado no exame físico8,9. Outro relato, com lactente de 9 meses, demonstrou crises convulsivas focais e generalizadas secundárias ao acometimento do SNC pela TB7.

A transmissão da doença ocorre por inalação de aerossóis pela tosse, fala ou espirro de pessoas com TB ativa10. Até 90% das pessoas não adoecem após a infecção primária, desenvolvendo a forma latente11. A evolução posterior para TB ativa depende da interação entre o patógeno e a imunidade do hospedeiro11.

O principal consenso internacional publicado pela OMS sobre TB infantil aponta que o diagnóstico inclui anamnese, especialmente história de contato com casos positivos, e sintomas compatíveis com a doença1,2. Além disso, destaca-se a importância do exame clínico minucioso, achados da radiografia de tórax, confirmação bacteriológica sempre que possível, investigação específica do órgão envolvido e teste para HIV1,3,11.

A confirmação microbiológica ocorre em apenas 15%-50% dos casos pediátricos. Há dificuldade em obter amostras de boa qualidade, especialmente em crianças abaixo de 7 anos1,4. Além disso, a maioria dos casos não são bacilíferos nessa faixa etária3. A utilização de técnicas semi-invasivas, como aspirado gástrico ou indução do escarro, pode ser necessária para a obtenção da amostra, como no exemplo do paciente em questão1. Os testes utilizados são o exame microscópico direito, teste rápido molecular e cultura, que é o padrão-ouro devido à alta sensibilidade e especificidade1,4. 

Exames de imagem auxiliam no diagnóstico e devem ser realizados conforme a suspeita clínica3,11. A radiografia e a TC de tórax são essenciais, especialmente em imunossuprimidos5,11. Nos casos de TB meningoencefálica, o liquor tem como achados mais comuns a celularidade aumentada com predomínio de linfócitos, proteína elevada e glicose baixa3,10. Salienta-se que nas primeiras 48 horas o liquor pode ser normal e nos primeiros 10 dias pode haver predomínio de polimorfonucleares3. É essencial relembrar que a taxa de detecção pela baciloscopia do liquor é baixa. A meningite tuberculosa é uma doença paucibacilar. Portanto, um resultado negativo não exclui o diagnóstico3,13.

Nos exames de imagem, como TC e RM de crânio, os achados mais comuns são hidrocefalia, espessamento meníngeo basal e infartos do parênquima cerebral5,6,12,13.

O tratamento é dividido em duas fases. A fase de ataque visa reduzir rapidamente a população bacilar e a contagiosidade. A fase de manutenção busca eliminar os bacilos latentes ou persistentes e reduzir a possibilidade de recidiva11. O tratamento em geral é ambulatorial, preferencialmente sob regime diretamente observado3,10. A hospitalização é necessária nos casos de TB meningoencefálica, intolerância aos medicamentos, intercorrências clínicas ou vulnerabilidade social11. O esquema básico de tratamento para todas as formas clínicas, exceto meningoencefálica e osteoarticular, dura 6 meses1,3,11.

Segundo o MS, nos 2 primeiros meses (fase de ataque), recomenda-se o esquema com rifampicina (R), isoniazida (H), pirazinamida (Z) e etambutol (E), seguindo de mais 4 meses do regime com rifampicina e isoniazida (fase de manutenção)7,11. As formas meningoencefálica e osteoarticular exigem tratamento mais prolongado, com duração total de 12 meses, sendo RHZE por 2 meses, seguido de RH por mais 10 meses1,10. Já a Academia Americana de Pediatria preconiza, nesses casos, esquema de tratamento inicial com RHZ, associado a aminoglicosídeo ou etionamida por 2 meses no lugar do etambutol, seguido de 7 a 10 meses de RH1. Além disso, nos casos de TB meningoencefálica, a associação de corticoide ao esquema por pelo menos 4 semanas demonstrou maior taxa de sobrevida e melhor desempenho intelectual1,3,13.


CONCLUSÃO

A neuroTB é uma apresentação clínica rara e desafiadora na prática pediátrica. O diagnóstico rápido e o manejo precoce impactam diretamente na morbimortalidade da criança, devendo ser considerada como diagnóstico diferencial em quadros neurológicos variados.

Não houve conflito de interesse ou financiamento do estudo.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Pequeno Príncipe, Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Faculdades Pequeno Príncipe, Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil
3. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Paula Pozzolo Ogeda
Hospital Pequeno Príncipe, Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil.
Rua Desembargador Motta, 1070, Água Verde
Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80250-060.
E-mail: paulaogeda@gmail.com

Data de Submissão: 16/07/2023
Data de Aprovação: 03/09/2023