ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 3

Hipoglicemia persistente na Síndrome de Shashi-Pena: um relato de caso pediátrico

Persistent hypoglycemia in Shashi-Pena Syndrome: a pediatric case report

RESUMO

A hiperinsulinemia é a principal causa de hipoglicemia persistente e recorrente na infância. Este relato de caso apresenta o desafio diagnóstico e de tratamento da hipoglicemia hiperinsulinêmica em uma lactente com síndrome genética. Descrevemos um paciente nascido a termo, pequeno para idade gestacional, com estigmas genéticos, que foi internado em UTI neonatal devido ao baixo peso e complicações. Descrevemos também a evolução clínica até os dois anos de idade. Com a suspeita de síndrome genética, foi realizado o exame genético, confirmando a síndrome de Shashi-Pena.

Palavras-chave: Hipoglicemia, Hipertricose, Hiperinsulinismo, Doenças raras.

ABSTRACT

Hyperinsulinemia is the leading cause of persistent and recurrent hypoglycemia in infancy. This case report presents the diagnostic and treatment challenge of hyperinsulinemic hypoglycemia in an infant with a genetic syndrome. We describe a patient born at term, small for gestational age, with genetic stigmata, who remained hospitalized in neonatal ICU due to low weight and complications. We also describe the clinical evolution up to two years of age of the child. With the suspicion of genetic syndrome, genetic testing was performed, confirming Shashi-Pena syndrome.

Keywords: Hypoglycemia, Hypertrichosis, Hyperinsulinism, Rare diseases.


INTRODUÇÃO

A hipoglicemia persistente é uma condição desafiadora, sendo a hiperinsulinemia a principal causa de hipoglicemia persistente e recorrente na infância. Descrevemos um caso de hipoglicemia grave em uma lactente com estigmas sindrômicos diagnosticada com Síndrome de Shashi-Pena após teste genético. Como há variabilidade na apresentação e gravidade dos sintomas das pessoas com essa síndrome, o presente relato de caso tem como finalidade apresentar e auxiliar na compreensão da síndrome de Shashi-Pena e no tratamento da hipoglicemia hiperinsulinêmica.


RELATO DE CASO

Lactente de 2 anos, sexo feminino, filha de pais caucasianos e não consanguíneos. Mãe primípara de 19 anos, apresentou hipotireoidismo gestacional tratada com levotiroxina. Não houve consumo de álcool, substâncias ilícitas e tabaco durante a gestação. Como na última ecografia fetal do pré-natal foi evidenciada restrição do crescimento intrauterino grau 2, optou-se por interromper a gestação por meio de parto cesárea. A paciente nasceu com peso 1985g (Z escore -2,77), comprimento 42,5cm (Z escore -3,16) e perímetro cefálico 32cm (Z escore -1,13), em bom estado geral, sem necessidade de reanimação neonatal. Ao exame físico, verificou-se a presença de nevus flammeus na glabela, sobrancelhas arqueadas e longas, sinofris, lábio superior fino, palato ogival, frênulo sublingual, micrognatia, sulcos plantares profundos, hipertricose lanuginosa generalizada e hipotonia axial. Devido ao baixo peso ao nascer e um episódio assintomático de hipoglicemia, foi encaminhada à Unidade de Terapia Intensiva neonatal. A figura 1 demonstra a paciente com síndrome de Shashi-Pena logo após o nascimento.





No período neonatal, apresentou importante dificuldade alimentar via oral devido à incoordenação de sucção-deglutição-respiração, com necessidade de sondagem. Evoluiu com episódios recorrentes de hipoglicemia, com necessidade de uma taxa de infusão máxima de 12mg/kg/min para manter a glicemia dentro da normalidade. Apresentou, ainda, diarreia persistente, sendo necessário introduzir fórmula infantil extensamente hidrolisada, com boa resposta após.

Devido recém-nascido com restrição de crescimento uterino, pequeno para idade gestacional e com episódios recorrentes de hipoglicemias, foram realizados exames de imagem com os seguintes resultados: potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (alteração auditiva bilateral); ecocardiograma com doppler (persistência do canal arterial e comunicação interatrial pequena); ultrassonografia do aparelho urinário (rins em ferradura); ressonância magnética do crânio (hipoplasia do vérmis cerebelar e dilatação do quarto ventrículo, achados sugestivos de malformação de Dandy-Walker); eletroencefalograma (atividade epileptiforme frequente localizada nas regiões fronto-centro-temporais).

Como a hipoglicemia persistiu além do período neonatal, foi optado por iniciar prednisolona 2,5 mg/m2 diária, inicialmente isolada e posteriormente associada ao GH, porém sem melhora. Aos 8 meses de idade, foi possível coletar amostra crítica durante um episódio de glicemia <50mg/dL e realizado teste de estimulação com glucagon (importante para o diagnóstico da hipoglicemia hiperinsulinêmica). Aos 12 meses de idade, foi possível iniciar o medicamento diazóxido (na dose de 5mg/Kg/dia), evoluindo com adequado controle glicêmico.

Diante desses achados, foi realizada a análise molecular por sequenciamento de exoma e identificada a variante patogênica chr2:25.749.716 G>A, em heterozigose no gene ASXL2 confirmando condição geneticamente determinada conhecida como Síndrome de Shashi-Pena (OMIM # 617190).

A paciente apresentou infecções respiratórias de repetição (aos 4, 7, 10, 12, 13 e 15 meses), sendo necessário internamento em enfermaria pediátrica em 4 ocasiões. Devido ao padrão radiológico mantido no lobo superior direito entre os episódios, foi iniciada investigação de imunodeficiência: hemograma completo normal, dosagem de imunoglobulinas dentro dos percentis para a idade e imunofenotipagem por citometria de fluxo com diminuição da contagem de linfócitos B CD19+CD20+ e de linfócitos NK CD16+CD56+. Por ora, mantido sem medicação.

Realizado ecocardiograma com doppler controle com 1 ano e 3 meses de idade: persistência do canal arterial, átrio esquerdo aumentado e ventrículo esquerdo globoso. Encaminhada ao serviço de referência, onde foi indicado cateterismo cardíaco, sem necessidade de tratamento farmacológico.

Durante os dois primeiros anos de vida, observou-se a não recuperação espontânea do crescimento (PIG sem catch up). Houve também atraso global do desenvolvimento: não senta sem apoio, não fala palavras e não se alimenta sozinha. Atualmente, a paciente mantém acompanhamento multidisciplinar e realiza terapias complementares semanalmente. A figura 2 demonstra a paciente com síndrome de Shashi-Pena: A) Com 5 meses de vida; B) Com 1 ano e 4 meses de idade.





DISCUSSÃO

A síndrome de Shashi-Pena é decorrente de variantes patogênicas em heterozigose no gene ASXL2 e é uma condição geneticamente determinada que pode ser de herança autossômica dominante ou secundária a um evento mutacional "de novo", ou seja, uma variante que surge em um indivíduo pela primeira vez e não foi herdada de um dos pais1,2.

Estima-se uma prevalência de 45 casos da síndrome em todo o mundo. A síndrome de Shashi-Pena foi descrita na literatura pela primeira vez em 2016 e é caracterizada por dismorfismos faciais (macrocefalia, nevus flammeus na região da glabela, hipertelorismo e sobrancelhas arqueadas), anormalidades cardíacas congênitas, hipoglicemia, dificuldades alimentares, alterações na densidade mineral óssea, convulsões, hipotonia e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor1-4.

A paciente deste caso apresenta dismorfismos e alterações fenotípicas compatíveis com a síndrome de Shashi-Pena, contudo não apresentou macrocefalia e foi um recém-nascido pequeno para a idade gestacional (por peso e comprimento), o que vai contra o relatado na literatura atual1-4.

Um achado importante neste caso é o diagnóstico de hipoglicemia hiperinsulinêmica congênita. O hiperinsulinismo pode ser transitório (<6 meses) ou persistente (>6 meses) e é a principal causa de hipoglicemia persistente e recorrente na infância. Quando iniciada no período neonatal e mantida posteriormente, classifica-se como forma congênita5-7.

Recém-nascidos pequenos para a idade gestacional (PIG), com restrição do crescimento intrauterino (RCIU) e/ou sinais sugestivos de síndrome genética têm maior risco de apresentar hipoglicemia neonatal devido à alteração em alguma via metabólica (glicogenólise, gliconeogênese, oxidação de ácidos graxos mitocondriais ou cetogênese)6,7. Os sinais e sintomas de hipoglicemia são variados e incluem agitação, irritabilidade, palidez, cianose, hipotermia, letargia, apneia e crise convulsiva7.

Na investigação da hipoglicemia neonatal (dosagem plasmática inferior à 50mg/dL), deve ser coletada no momento da hipoglicemia uma amostra dos seguintes exames de sangue: glicose plasmática, gasometria (arterial ou venosa), lactato, eletrólitos (sódio, potássio e cloro), insulina, amônia, cortisol, GH, peptídeo-C, beta-hidroxibutirato, ácidos graxos livres, perfil de acilcarnitinas e de aminoácidos. É importante coletar concomitantemente um parcial de urina para avaliar a presença de cetonúria e/ou de substâncias redutoras6,7.

Se a hipoglicemia cursar com acidose metabólica, deve-se investigar glicogenoses, distúrbios da gliconeogênese e hipopituitarismo. Se a hipoglicemia ocorrer sem acidose metabólica, investiga-se hiperinsulinismo e distúrbios da oxidação de ácidos graxos6,7.

É essencial determinar a causa da hipoglicemia, pois o tratamento difere conforme a doença de base. No caso da hipoglicemia hiperinsulinêmica, o medicamento de escolha é o diazóxido8. Um análogo da somatostatina (octreotida) deve ser considerado para pacientes com hipoglicemia refratária, como relatado em um caso chinês9.


CONCLUSÃO

Existe variabilidade de sinais e sintomas entre pacientes diagnosticados com uma mesma síndrome genética. O presente relato de caso tem como principal finalidade contribuir com o espectro de fenótipos e variações genéticas da síndrome de Shashi-Pena. Desde 2016, apenas 13 casos foram relatados na literatura. Esta é a primeira vez que o diazóxido foi administrado em um paciente com hipoglicemia persistente secundária à síndrome de Shashi-Pena, ajudando a manter um controle glicêmico adequado.


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1. Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, Departmento de Paediatria - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:
Carolina Oliveira De-Paulo
Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, Department of Paediatric - Curitiba - Paraná - Brasil
Alameda Princesa Izabel, 1585, Bigorrilho
Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80730-080
E-mail: loracoliveira@hotmail.com

Data de Submissão: 03/07/2023
Data de Aprovação: 13/03/2024