ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 3

Cetoacidose diabética associada à hipertrigliceridemia na faixa etária pediátrica - Um relato de caso

Diabetic ketoacidosis associated with hypertriglyceridemia in the pediatric age group - A case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar um caso de cetoacidose diabética (CAD) na faixa etária pediátrica associado à hipertrigliceridemia.Descrição do caso: Paciente do sexo feminino, 13 anos, previamente hígida, com queixa de dor abdominal, náusea e vômitos, apresentava na ocasião rebaixamento do nível de consciência e hiperglicemia. Feito diagnóstico de primodescompensação de diabetes mellitus tipo 1 com CAD. Após coleta de exames laboratoriais, a amostra mostrou-se lipêmica, sendo constatada hipertrigliceridemia. Além do tratamento da CAD, necessitou de tratamento com estatina, evoluindo com melhora do perfil lipídico. Durante a internação, a paciente não apresentou elevação dos níveis de amilase ou lipase séricas ou alteração nos exames de imagem que pudessem sugerir pancreatite.
COMENTÁRIOS: O diagnóstico diferencial entre CAD associada ou não à pancreatite aguda é desafiador, devido à sobreposição dos sintomas e exames laboratoriais. A CAD é uma complicação grave, principalmente relacionada ao diabetes mellitus tipo 1, e a associação com outros distúrbios pode piorar o prognóstico do paciente. Existe uma escassez na literatura em relação ao tratamento de hipertrigliceridemia aguda. Até onde os autores têm conhecimento, este é o primeiro relato de caso brasileiro na faixa etária pediátrica de CAD associada à hipertrigliceridemia grave.

Palavras-chave: Diabetes mellitus tipo 1, Cetoacidose diabética, Hipertrigliceridemia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Report a case of diabetic ketoacidosis (DKA) in the pediatric age group associated with hypertriglyceridemia. Case description: Female patient, 13 years old, previously healthy, with abdominal pain, nausea, vomiting, lowered level of consciousness and hyperglycemia. Diagnosis of primary decompensation of type one diabetes mellitus with DKA was made. After collecting laboratory tests, a lipemic sample was identified and hypertriglyceridemia was confirmed. In addition to the DKA treatment, the patient required statin treatment with an improvement in lipid profile. During hospitalization, the patient did not present elevated levels of serum amylase or lipase or change in imaging tests that could suggest pancreatitis.
COMMENTS: The differential diagnosis between DKA associated or not with acute pancreatitis is challenging due to the overlapping symptoms and laboratory tests. DKA is a severe complication mainly related to type 1 diabetes mellitus and its association with other disorders can worsen the prognosis. There is a lack of data in the literature regarding the treatment of acute hypertriglyceridemia. As far as the authors are aware, this is the first Brazilian case report in the pediatric age group of DKA associated with severe hypertriglyceridemia.

Keywords: Diabetic ketoacidosis, Hypertriglyceridemia, Diabetes Mellitus, Type 1


INTRODUÇÃO

A cetoacidose diabética (CAD) é considerada uma emergência hiperglicêmica, podendo ser potencialmente fatal quando associada, principalmente, ao diabetes mellitus tipo 1 (DM1).1 Os principais sinais e sintomas clínicos são desidratação, taquicardia, taquipneia, náuseas, vômitos, hálito cetônico, dor abdominal e redução do estado de consciência. Os critérios bioquímicos para o diagnóstico da CAD incluem hiperglicemia (glicemia sérica >200 mg/dL), pH sérico <7,3 ou bicarbonato sérico <18 mmol/L, cetonúria ou cetonemia.2

A CAD é classificada como leve (pH <7,3 ou bicarbonato <18 mmol/L), moderada (pH <7,2 ou bicarbonato <10 mmol/L) ou grave (pH <7,1 ou bicarbonato <5 mmol/L).2 No Brasil, cerca de 20% dos pacientes apresentam CAD como descompensação primária da DM1.3 As complicações mais frequentes são hipoglicemia, hipocalemia e hiperglicemia, seguidas de edema cerebral e acidose hiperclorêmica.1,2

A associação entre CAD e pancreatite aguda já foi discutida anteriormente em relatos de casos e estudos epidemiológicos, com prevalência estimada de 2% em crianças e 11% em adultos.3 Dados epidemiológicos na faixa pediátrica são escassos e pouco estabelecidos.

Vários estudos correlacionam CAD com hipertrigliceridemia. Contudo, tais ocorrências também são comumente associadas à pancreatite aguda. A etiologia da associação ainda não totalmente elucidada entre CAD, hipertrigliceridemia e pancreatite é conhecida como "triângulo críptico", uma condição rara e grave.4-7

O presente artigo relata um caso de CAD associada a hipertrigliceridemia grave (>7000 mg/dL), sem presença de pancreatite aguda. Não foram encontrados outros relatos na literatura com tais valores de triglicérides para essa faixa etária.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 13 anos, parda, natural de São Paulo, encaminhada por CAD grave e hipertrigliceridemia. Inicialmente, foi avaliada no pronto-socorro de sua cidade natal por dor abdominal com duração de dois dias, associada a náuseas e vômitos. Recebeu a hipótese diagnóstica de gastroenterocolite viral aguda e recebeu alta com tratamento sintomático. Evoluiu no dia seguinte com piora dos vômitos, sonolência excessiva e dispneia, com necessidade de acionamento do serviço de atendimento pré-hospitalar por rebaixamento do nível de consciência (escala AVDI – respondeu à estimulação verbal), taquicardia, taquipneia e glicemia capilar de 484 mg/dL, sendo encaminhada a hospital secundário. Foi levantada hipótese de CAD grave (glicemia sérica de 354mg/dL, gasometria arterial pH 7,14, bicarbonato 2,1mmol/L e urina com cetonas).

Durante a coleta do exame, foi constatada intensa lipemia sérica, com dosagem de triglicerídeos confirmada em 7110mg/dL. A amilase sérica estava dentro da normalidade e não foi detectado SARS-CoV2 no teste de PCR.

A paciente recebeu expansão volêmica, bicarbonato de sódio e insulina regular na unidade de saúde de sua cidade natal. Foi transferida para internação em unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP). À internação, a paciente estava em estado geral regular, desidratada, sonolenta, mas reativa a chamadas e orientada, com glicemia capilar de 178mg/dL. A gasometria arterial mostrou acidose metabólica com hipocalemia, hipercloremia e hiperglicemia (Tabela 1). A Figura 1 ilustra a elevada turbidez da amostra de sangue.









Após 24 horas de internação na UTIP, houve resolução da CAD e dieta oral e insulina subcutânea foram iniciadas. Sinvastatina foi introduzida após 48 horas com melhora significativa da hipertrigliceridemia (652 mg/dL) no quinto dia de internação (Tabela 1).

A hipótese de pancreatite associada com base nos exames de imagem.

A paciente recebeu alta após 16 dias de internação, com orientação de acompanhamento ambulatorial, em uso de sinvastatina (20 mg/dia), insulina NPH (20 UI/dia) e insulina regular (17 UI/dia) em esquema basal-bolus (0,8 UI/kg/dia).

Durante o seguimento ambulatorial, a sinvastatina foi suspensa após três meses de uso por conta da diminuição dos níveis de triglicérides. Em função da pandemia, a paciente retornou para reavaliação após um ano, apresentando dosagem de triglicérides de 102 mg/dL. Durante o seguimento, evoluiu com normalização dos níveis de triglicérides após dois anos do diagnóstico (64 mg/dL). Infelizmente, a paciente se encontra institucionalizada. Portanto não temos dados do seu histórico familiar.


DISCUSSÃO

A hipertrigliceridemia pode induzir pancreatite aguda e, portanto, causar CAD pela destruição das células beta pancreáticas. No entanto, pode ser também consequência da CAD, pois a falta de insulina leva ao aumento dos triglicérides, que por sua vez pode causar pancreatite aguda.4,5,8 Quanto mais elevado o nível sérico de triglicérides, maior a correlação com a gravidade do acometimento pancreático.4,5 A tríade hipertrigliceridemia, CAD e pancreatite está relacionada a aumento da mortalidade e intercorrências.6

Estudo realizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) identificou que 41% dos casos analisados apresentaram CAD como primeira manifestação da DM1 na faixa etária pediátrica.7 Contudo, há poucos relatos na literatura sobre hipertrigliceridemia grave associada a CAD.9,10

A associação entre CAD e hipertrigliceridemia ocorre devido à falta de insulina, levando ao aumento da lipólise, da produção de lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL) pelo fígado por conta do aumento do fluxo hepático de ácidos graxos, que, além da cetogênese, podem ser secretados como VLDL. Além disso, a depuração de VLDL é diminuída pela inibição da atividade da lipoproteína lipase, responsável pela hidrólise de triglicérides em ácidos graxos nos tecidos periféricos.4,6

Dois mecanismos principais para pancreatite causada por alterações no metabolismo lipídico resultantes da CAD foram sugeridos: (a) quando transportados pela albumina, os ácidos graxos não são tóxicos, mas se estiverem em grandes quantidades, a lipase endotelial os degrada, elevando a atividade da lisolecitina pancreática11; (b) os quilomícrons danificariam a circulação pancreática distal, induzindo isquemia e alterando a função acinar, além de expor o tecido aos triglicérides e ativar a lipase pancreática.12

Durante a coleta dos exames na internação, o aspecto lipêmico do sangue da paciente alertou para a possibilidade de descompensação metabólica. Os resultados confirmaram a suspeita diagnóstica (Figura 1).

As razões pelas quais alguns pacientes apresentam níveis tão elevados de triglicérides não são totalmente compreendidas. Algumas mutações nos genes LPL, APOC2 e APOA5 foram identificadas como prováveis causas de alguns casos em adultos13, mas ainda não há dados na literatura para a faixa etária pediátrica.

A sobreposição de sintomas (náuseas, dor abdominal, vômitos, saúde geral precária) e os exames laboratoriais tornam desafiador o diagnóstico diferencial entre CAD associada ou não à pancreatite aguda. Sabe-se que a CAD pode levar ao aumento das enzimas pancreáticas. Em contrapartida, a pancreatite aguda secundária à hipertrigliceridemia pode apresentar valores normais de enzimas pancreáticas, sendo necessário exame de imagem para o diagnóstico.4-6

Durante toda a internação hospitalar, a paciente não apresentou níveis séricos elevados de amilase ou lipase que pudessem sugerir pancreatite, com redução importante do nível de triglicérides durante a evolução. Além disso, os exames de imagem não apresentaram alterações, descartando o diagnóstico de pancreatite aguda.

Há escassez de dados na literatura sobre recomendações de tratamento para hipertrigliceridemia aguda, com a maioria dos relatos de casos utilizando fibratos em seu manejo.9,11,14 Carlesso et al, 2023 citam no artigo de revisão as estatinas como primeira escolha de tratamento.15 Há um único relato de caso brasileiro sobre um paciente adulto com comorbidades (diabetes mellitus tipo 2 e obesidade), CAD leve e hipertrigliceridemia grave (11758 mg/dl)9. Até onde sabemos, este é o primeiro relato de caso brasileiro na faixa etária pediátrica de CAD associada a hipertrigliceridemia grave.


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UNICAMP, Departamento de Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:
Júlia Piano Seben
UNICAMP, Departamento de Pediatria, Campinas, São Paulo, Brasil
Cidade Universitária Zeferino Vaz - Barão Geraldo
Campinas, SP, Brasil. CEP: 13083-970
E-mail: juliapseben@gmail.com

Data de Submissão: 24/07/2023
Data de Aprovação: 05/10/2023