ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 4

Gastrite eosinofílica - Relato de caso

Eosinophilic gastritis - Case report

RESUMO

A gastrite eosinofílica é uma patologia rara caracterizada por uma densa infiltração de eosinófilos na mucosa gástrica. Os processos fisiopatológicos sugeridos são multifatoriais e envolvem mecanismos que se situam entre uma resposta mediada por imunoglobulina E e outra do tipo T helper 2 tardia. A apresentação clínica é variável e há forte associação entre distúrbios alérgicos e gastrite eosinofílica. Neste relato descrevemos os achados clínicos e laboratoriais da gastrite eosinofílica em um menino de 9 anos, tratado com prednisolona e esomeprazol em dose dobrada.

Palavras-chave: Gastrite, Esomeprazol, Esofagite eosinofílica, Relatos de casos, Eosinófilos.

ABSTRACT

Eosinophilic gastritis is a rare condition characterized by a dense infiltration of eosinophils in the gastric mucosa. The suggested pathophysiological processes are multifactorial and involve mechanisms that lie between an immunoglobulin E-mediated response and a late T helper 2 response. The clinical presentation is variable and there is a strong association between allergic disorders and eosinophilic gastritis. In this report we describe the clinical and laboratory findings of eosinophilic gastritis in a 9-year-old boy treated with prednisolone and double-dose esomeprazole.

Keywords: Gastritis, Esomeprazole, Eosinophilic esophagitis, Case reports, Eosinophils.


INTRODUÇÃO

A gastrite eosinofílica (EoG) é uma patologia rara com evidências limitadas, majoritariamente baseadas em relatos de caso ou série de casos1. É caracterizada por uma densa infiltração de eosinófilos na mucosa gástrica, na ausência de causas secundárias para eosinofilia gastrointestinal1. A EoG é tipicamente parte de um espectro das doenças eosinofílicas gastrointestinais (EGID) e costuma acometer simultaneamente outros segmentos gastrointestinais além do estômago, sendo a segunda apresentação mais comum entre as doenças eosinofílicas do trato gastrointestinal2,3. A manifestação clínica é variável e inespecífica e o diagnóstico é feito a partir da análise histopatológica da mucosa gástrica1,2. Considerando a raridade da apresentação e os desafios para o tratamento, apresentamos este relato de caso. Este estudo foi aprovado por um comitê de ética e pesquisa de seres humanos.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, escolar, 9 anos, asmático, em tratamento com budesonida e fumarato de formoterol por via inalatória. Compareceu à consulta em ambulatório pediátrico no dia 07/10/2021, queixava-se de dor em região epigástrica e torácica do tipo pontada associada a mau hálito e despertar noturno pela dor há 2 meses, com piora no último mês. Estava em uso de omeprazol 20mg e ondansetrona 4mg há 15 dias, com melhora parcial dos sintomas. Negava febre e alterações nas fezes. O hemograma, proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação estavam dentro dos limites da normalidade em 06/09/2021. Como mantinha sintomas dispépticos apesar do tratamento, foi solicitada uma endoscopia digestiva alta e suspenso o omeprazol.

A endoscopia digestiva alta (EDA) realizada em 13/10/2021 evidenciou gastrite endoscópica com erosões planas do antro moderada e H. pylori negativo pelo método da urease, conforme descrito na Tabela 1.



Em 15/10/2021 foi prescrito pantoprazol 40mg 1 vez ao dia. Em 28/10/2021 foi definido o diagnóstico de gastrite eosinofílica baseado na análise histopatológica de fragmentos da mucosa gástrica coletados no dia 13/10/2021 nos quais foi identificada invasão eosinofílica com mais de 30 eosinófilos por campo de grande aumento, enquanto o número de eosinófilos no esôfago e duodeno era normal, conforme descrito na Tabela 2. Após 13 dias em uso de pantoprazol, apresentou melhora parcial dos sintomas.



Em 03/11/2021 houve uma piora importante da pirose e da epigastralgia. Foi então suspenso o pantoprazol e iniciada a prednisolona 1,4 mg/kg por 14 dias. No dia 11/11//2022, apresentou epigastralgia intensa, sem melhora após ingerir 5ml de hidróxido de alumínio. Foi então solicitada uma investigação complementar para exclusão de causas secundárias de eosinofilia gastrointestinal que resultou em um parasitológico de fezes negativo, imunoglobulina E (IgE) total aumentada, enquanto as IgE específicas (caseína, alfa-lactoalbumina, beta-lactoglobulina, glúten, ovo, clara do ovo, amendoim, aveia, castanha-do-pará, camarão, atum, salmão, mexilhão) eram normais, conforme descrito na Tabela 3. As transaminases, proteínas totais e frações estavam dentro da normalidade e não havia eosinofilia sanguínea.



No dia 18/11/2021 iniciou esomeprazol 40mg 2 vezes ao dia e redução gradual das doses de corticoide. Em 25/11/2021 relatou redução dos despertares noturnos, mantendo os demais sintomas. Interrompeu o uso de prednisolona no dia 30/11/2021. Em 16/12/2021 completou 4 semanas de esomeprazol 40mg duas vezes ao dia, passando a tomar 40 mg 1 vez ao dia por mais 4 semanas e após 20mg por mais 4 semanas, interrompeu o uso após. Em 23/12/2021 apresentava melhora da epigastralgia e da dor torácica, mantendo episódios eventuais de pirose pela manhã. Em janeiro de 2022 estava assintomático e em uso de 20mg de esomeprazol. Em fevereiro de 2022 mantinha-se assintomático. Em 15/02/2022 realizou nova EDA com biópsias de esôfago, estômago e duodeno e em todos os fragmentos analisados o número de eosinófilos estava dentro da normalidade, conforme descrito na Tabela 2.


DISCUSSÃO

Aqui descrevemos uma apresentação incomum de EoG, com eosinofilia restrita ao estômago. Demonstramos ainda a importância da EoG como um diagnóstico diferencial para doenças que se apresentam com dispepsia e outros sintomas gastrointestinais inespecíficos e os desafios envolvidos no seu tratamento.

A manifestação clínica da EoG é variável e depende da camada gastrointestinal envolvida (mucosa, muscular ou serosa). Os sintomas mais frequentes são dor abdominal, dor torácica, náuseas, vômitos e diarreia2,4. A prevalência de EoG na população pediátrica está estimada em 4,4/100.000, dos quais até 59% possuem alguma condição alérgica5,6.

Os processos fisiopatológicos sugeridos são multifatoriais e envolvem respostas mediadas por IgE, citocinas, quimiocinas e células T helper 2 (Th2). Os mecanismos que estão por trás das EGID situam-se entre uma resposta mediada por IgE e outra do tipo Th2 tardia7. O resultado dessa desregulação imunológica mista mediada por IgE e dependente de Th2 é o recrutamento, a ativação e a sobrevivência prolongada de eosinófilos com produção de IgE específica para um antígeno7.

A endoscopia digestiva alta com biópsias é o principal exame para o diagnóstico de EoG, embora não haja consenso sobre os pontos de corte para o número de eosinófilos gástricos, sugere-se uma densidade média ≥127 eosinófilos/mm² ou ≥30 eosinófilos por campo de grande aumento, em pelo menos 5 campos7,8. Uma investigação complementar é habitualmente necessária para a exclusão de causas secundárias de eosinofilia gástrica como parasitoses, alergias medicamentosas e neoplasias malignas4,9. Os testes de alergia alimentar, Prick Test, teste de contato e dosagem sérica de IgE específica, são pouco eficazes na identificação dos alérgenos relacionados a EGID. A utilidade desses testes é reservada aos pacientes com sintomas de alergia alimentar IgE mediada7.

Os corticoides constituem a base do tratamento, embora o tipo, a duração e a dosagem variem7. A prednisona é frequentemente a primeira escolha, com doses de 20 a 40mg/dia, ou em doses mais altas (0,5–1mg/kg por dia). A duração inicial do tratamento é de 2 semanas, seguida por uma redução gradual da dosagem1,7. Outra importante medicação são os inibidores de bomba de prótons (IBP), cujo mecanismo proposto é que atue diminuindo a expressão de eotaxina-3 (quimioatraente de eosinófilos) estimulada por interleucina-4 e interleucina-13. Além disso, reduz a transcrição de RNA mensageiro e da eotaxina-3 diminuindo a ligação do transdutor de sinal e ativador de transcrição 6 e da RNA polimerase ao promotor da eotaxina-310. Em um estudo prospectivo com 51 crianças com esofagite eosinofílica submetidas a tratamento exclusivo com esomeprazol na dose de 1mg/kg por dose, duas vezes ao dia, houve melhora do padrão histológico em 68,6% das crianças. A melhora clínica foi percebida em 82% das crianças e 47% relataram melhora completa dos sintomas11. No entanto, apesar dos diversos tratamentos disponíveis, ainda não há diretrizes estabelecidas para o manejo clínico de pacientes com EGID distais ao esôfago7.

Nesse caso, a investigação complementar não encontrou alterações que justificassem a eosinofilia gástrica. As dosagens de IgE específicas não foram úteis para a identificação de alergias alimentares apesar de a quantidade de IgE total estar aumentada. As doses de corticoide utilizadas foram maiores do que as habituais para os casos de EoG, e ainda assim não houve melhora clínica satisfatória.


CONCLUSÃO

Ainda que o uso de esomeprazol na EoG em doses dobradas e fracionadas não tenha sido bem estudado como monoterapia, os resultados encontrados para esofagite eosinofílica sugerem que pode haver um importante papel para os IBP na EoG11. Por fim, é indispensável manter um alto índice de suspeição para EGID em pacientes atópicos devido à elevada taxa de associação entre processos alérgicos e as EGID e assim possibilitar diagnósticos mais precoces.


REFERÊNCIAS

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1. Universidade Federal de Santa Catarina, Curso de Medicina - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
2. Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de ciências da saúde - Departamento de pediatria - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:
Bruno Carminatti da Silva
Universidade Federal de Santa Catarina
R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n - Trindade
Florianópolis - SC, 88040-900
E-mail: carminatti94@gmail.com; ratierjaqueline@gmail.com

Data de Submissão: 03/09/2023
Data de Aprovação: 16/01/2024