ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2024 - Volume 14 - Número 4

Caracterização das crianças com síndrome de Down concomitante ao hipotireoidismo congênito no estado de Mato Grosso, Região Central do Brasil, 2010–2021

Characterization of children with Down syndrome concomitant with congenital hypothyroidism in the state of Mato Grosso, Central Region of Brazil, 2010–2021

RESUMO

OBJETIVO: O hipotireoidismo congênito é uma doença frequente na endocrinologia pediátrica, com alta prevalência entre crianças com síndrome de Down. No Brasil, publicações sobre a coexistência dessas duas síndromes na população infantil são escassas. Objetivou-se neste estudo caracterizar clínica e laboratorialmente crianças com síndrome de Down concomitante ao hipotireoidismo congênito.
METODOLOGIA: Trata-se de estudo transversal e retrospectivo com dados de prontuários de pacientes com síndrome de Down concomitante ao hipotireoidismo congênito, entre nascidos vivos do período de janeiro de 2010 a dezembro de 2021, acompanhados em serviço de triagem neonatal de Mato Grosso, Brasil.
RESULTADOS: Foram analisadas 318 crianças com hipotireoidismo congênito, 11 delas com síndrome de Down (prevalência de 1:28,9 entre as crianças com hipotireoidismo congênito). O achado clínico mais comum foi a icterícia (90,0%), seguida de macroglossia (80,0%), hipotonia (66,7%) e livedo reticular (62,5%). Anomalias cardíacas congênitas ocorreram em todas as crianças com síndrome de Down estudadas. A comunicação interatrial e persistência do canal arterial foram as anomalias cardíacas mais frequentes. Os níveis séricos de tireotropina estavam entre 10µUI/mL e 20µUI/mL em 63,6% da amostra e em dois pacientes, esses valores encontravam-se acima de 100µUI/mL. Em 81,8% das crianças, os níveis da tiroxina livre estavam normais. A maioria absoluta das crianças não apresentou alteração ultrassonográfica da tireoide.
CONCLUSÕES: Alta prevalência da síndrome de Down foi observada entre pacientes com hipotireoidismo congênito, sendo a forma subclínica do hipotireoidismo a de apresentação mais comum. Icterícia, macroglossia e cardiopatias congênitas foram os achados clínicos mais relevantes deste estudo.

Palavras-chave: Hipotireoidismo congênito, Síndrome de Down, Triagem neonatal, Tireotropina.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Congenital hypothyroidism is a frequent disease in pediatric endocrinology, with a high prevalence among children with Down syndrome. In Brazil, publications on the coexistence of these two syndromes in children are scarce. The aim of this study was to clinically and laboratory characterize children with Down syndrome concomitant with congenital hypothyroidism.
METHODOLOGY: This is a cross-sectional and retrospective study with data from medical records of patients with Down syndrome concomitant with congenital hypothyroidism among live births from January 2010 to December 2021, followed at a neonatal screening service in Mato Grosso, Brazil.
RESULTS: 318 children with congenital hypothyroidism were analyzed, 11 of them with Down syndrome (prevalence of 1:28.9 among children with congenital hypothyroidism). The most common clinical finding was jaundice (90.0%), followed by macroglossia (80.0%), hypotonia (66.7%) and livedo reticularis (62.5%). Congenital cardiac anomalies occurred in all children with Down syndrome studied. Interatrial communication and patent ductus arteriosus were the most frequent cardiac anomalies. Serum levels of thyrotropin were between 10 µIU/mL and 20 µIU/mL in 63.6% of the sample and in two patients, these values ??were above 100 µIU/mL. In 81.8% of the children, free thyroxine levels were normal. The absolute majority of children did not show thyroid ultrasonographic alteration.
CONCLUSIONS: A high prevalence of Down syndrome was observed among patients with congenital hypothyroidism, with the subclinical form of hypothyroidism being the most common presentation. Jaundice, macroglossia and congenital heart disease were the most relevant clinical findings in this study.

Keywords: Congenital Hypothyroidism, Down syndrome, Neonatal screening, Thyrotropin.


INTRODUÇÃO

O hipotireoidismo congênito (HC) é considerado uma enfermidade comum na endocrinologia pediátrica, presente em aproximadamente 1:2.000 a 1:4.000 recém-nascidos (RN), sendo uma causa frequente de deficiência intelectual em todo o mundo, mas evitável se realizada a triagem neonatal e o diagnóstico precocemente1. Essa enfermidade é ocasionada por falha na síntese de hormônios pela tireoide (hipotireoidismo primário) ou por defeito na produção de tireotropina (TSH) devido à disfunção hipofisária ou hipotalâmica (hipotireoidismo central)2. Os hormônios tireoidianos exercem importante papel no desenvolvimento normal do sistema nervoso central e, quando ausentes, levam a alterações no desenvolvimento cerebral3. A maioria dos casos de HC é classificada como hipotireoidismo primário, sendo a disgenesia tireoidiana responsável por cerca de 85% dos casos e a dishormonogênese pelos 15% restantes4. O hipotireoidismo primário pode apresentar-se na forma subclínica ou compensada3,5 quando o nível de TSH está alto, mas o valor de tiroxina (T4) livre ou total é normal, ou na forma clássica quando há TSH alto e T4 baixo3.

A síndrome de Down (SD) ou trissomia do 21 é a anomalia cromossômica mais comum6,7na população e ocorre devido à falha do cromossomo 21 em separar durante a gametogênese, resultando em um cromossomo extra em todas as células corporais8. Esta cromossomopatia está associada ao comprometimento cognitivo e à dificuldade de aprendizagem6,7, acometendo a cada ano aproximadamente 14 em 10.000 nascidos vivos nos Estados Unidos da América6, cifra bem acima da estatística nacional (4 em 10.000 nascidos vivos)7. As disfunções tireoidianas, incluindo todas as formas de doença tireoidiana8, estão frequentemente presentes em cerca de 7 a 40% dos indivíduos com SD9, com destaque para o HC que se faz presente em 1%10,11 a 12% nessa população11. Estima-se que a prevalência de RN com essa cromossomopatia seja de até 1:50 entre aqueles com HC detectado pelos programas de triagem neonatal1, com uma frequência de 285,12 a 50 vezes maior do que a esperada na população geral13.

É relativamente comum que o HC entre as crianças com SD apresente discreta elevação do nível de TSH sem, contudo, alterar os valores de tiroxina1,10,14. As justificativas para a ocorrência de HC entre as crianças com SD não são claras5, mas foi cogitada uma desregulação do eixo hipotálamo-hipófise-tireoide15, bem como, para os casos de disgenesia tireoidiana, a presença de eventos relacionados à migração e diferenciação das células da tireoide no período embrionário e atraso do crescimento da glândula tireoide na vida fetal16.

O HC tem como características clínicas a presença de hipotonia, icterícia, livedo reticular, hérnia umbilical, fontanelas amplas, macroglossia, alteração no crescimento ponderoestatural, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor com deficiência intelectual e outras alterações. Em razão das semelhanças clínicas entre as duas doenças em pauta, seguramente ocorre uma subnotificação do hipotireoidismo em crianças com SD, principalmente quando não é realizada a triagem neonatal6,17. Portanto, alguns casos de HC em crianças com SD só são identificados tardiamente, em avaliação rotineira dos primeiros 6 meses de vida18. Baseado nisso, Pierce et al. (2017)8 recomendaram que a triagem para o HC seja mais frequente durante o primeiro semestre de vida em crianças com SD, embora a Associação Americana de Pediatria (AAP)11 considere que não há evidências suficientes para recomendar essa triagem adicional rotineira.

A associação de HC com doenças extratireodianas encontra-se na faixa de 10,5% a 59%, sendo as malformações cardíacas as mais frequentes13. Gu et al. (2009)19 constataram defeitos cardíacos em 54 (62,8%) crianças com SD em concomitância com HC primário, sendo a comunicação interatrial (CIA) e a persistência do canal arterial (PCA) os mais preponderantes.

O presente estudo teve como objetivo descrever a prevalência e caracterizar as crianças com SD em concomitância com HC no estado de Mato Grosso entre 2010 a 2021.


METODOLOGIA

Trata-se de um estudo transversal com análise retrospectiva de dados registrados em prontuários físicos e eletrônicos do aplicativo de gestão para hospitais universitários, de crianças acompanhadas em Serviço de Referência em Triagem Neonatal (SRTN) do hospital de ensino da Universidade Federal de Mato Grosso. Esse serviço de triagem tem garantido uma cobertura média superior a 75% para a população de nascidos vivos do estado desde 200320.

Recém-nascidos submetidos à triagem neonatal pelo SRTN foram selecionados entre os nascidos vivos registrados no Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC) no período de 1º de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2021. Desses, foram analisados apenas os que tiveram o diagnóstico de SD, confirmado pelo cariótipo, concomitante ao HC. Foram excluídas as crianças com diagnóstico de hipotireoidismo adquirido. Os dados relativos ao número de nascidos vivos do período analisado e da cobertura de triagem neonatal foram obtidos na Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Mato Grosso, a partir do SINASC e do Sistema Nacional de Triagem Neonatal (SISNEO), respectivamente.

Em Mato Grosso, a triagem e o diagnóstico de HC seguem o protocolo estabelecido pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal (PETN). Inicialmente é feita a dosagem de TSH neonatal (TSHneo) no sangue colhido em papel-filtro e utilizando o método fluoroimunoensaio por tempo resolvido (valor de referência menor ou igual a 5µUI/mL). Se entre 5 e 10µUI/mL ou se nascido prematuro, a criança é convocada para uma nova coleta de sangue para dosagem de TSHneo. Se for igual ou superior a 10µUI/mL, o recém-nascido é convocado para consulta médica especializada e dosagens de TSH e hormônios tireoidianos. O diagnóstico de HC é confirmado quando os níveis séricos de TSH são superiores a 10µUI/mL e sua classificação em clássico e subclínico depende de os níveis séricos de T4 livre serem baixos ou normais, respectivamente. A ultrassonografia da tireoide foi realizada para esclarecimento etiológico do HC, utilizando o aparelho da marca Madison, modelo Sonoace 9900 com sonda linear de 5 a 13mHz.

As crianças foram descritas em relação às seguintes variáveis: sexo, idade gestacional, idade na época da triagem neonatal, idade da primeira consulta de acompanhamento, concentrações séricas de TSHneo, de TSH e de tiroxina livre pós-natais, achados clínicos na primeira consulta, presença de anomalias congênitas, resultado do ultrassom da tireoide e idade em que iniciou o tratamento. Para a análise dos dados, foi utilizado o Programa Microsoft® Office Excel 2010 e, após a compilação dos dados, foram descritas a mediana, a média e o desvio-padrão (DP) das variáveis quantitativas e a distribuição de frequência das categóricas. A prevalência de HC foi calculada pela razão de nascidos vivos que tiveram o diagnóstico confirmado no período, entre aqueles com triagem realizada no mesmo período. Para a prevalência de crianças com SD concomitante ao HC, calculou-se a razão daquelas com diagnóstico de SD entre aquelas que tiveram o diagnóstico confirmado de HC.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana do hospital sob o parecer de número 5.775.975 e registro CAAE número 64310422.3.0000.5541.


RESULTADOS

Entre os anos de 2010 e 2021, Mato Grosso registrou 660.571 crianças nascidas vivas, das quais 488.580 foram triadas pelo PETN, alcançando uma cobertura populacional de aproximadamente 74%. Entre as crianças triadas no período de estudo, 318 tiveram o diagnóstico de HC (prevalência de 1:1.536), e dessas, 11 (3,5%) com diagnóstico concomitante de SD, uma prevalência de 1:28,9 (Tabela 1).



As características demográficas da amostra e a idade na abordagem, da triagem neonatal até o tratamento do HC, são apresentadas na Tabela 1. Dos 11 indivíduos analisados, cinco (45,4%) eram do sexo feminino, sendo a razão entre os sexos masculino e feminino de 1,2. Quanto à idade gestacional, três (27,3%) foram classificados como prematuros tardios e os demais a termo. Os prematuros realizaram o segundo teste de triagem neonatal, conforme protocolo do PETN, e todos tiveram resultados alterados. A triagem neonatal foi realizada na primeira semana de vida em 63,6% das crianças, com tempo de vida médio (DP) de 5,4 (DP=1,6) dias. Quanto à primeira consulta ambulatorial, cinco (45,4%) crianças tinham idade inferior a três meses, quatro (36,4%) compareceram à consulta no segundo trimestre de vida e as demais (18,2%) apenas no segundo semestre de vida. O início do tratamento se deu com menos de 3 meses para cinco (45,4%) delas, entre 3 e 6 meses de vida para 27,3% e após os 6 meses de vida para as demais (n=3; 27,3%).

As concentrações do primeiro TSH neonatal, do TSH e do T4 livre no soro, assim como os achados da ultrassonografia de tireoide são apresentadas na Tabela 2. Sete (63,6%) crianças apresentaram alterações no primeiro TSHneo e em duas as alterações ocorreram apenas na recoleta da triagem. Apesar do rastreio inicial normal nas outras duas crianças, o HC foi comprovado na investigação ambulatorial rotineira. A média (DP) do primeiro TSHneo foi de 33,1 (73,0) µUI/mL.



O diagnóstico de HC foi confirmado em oito crianças através do primeiro TSH sérico. Para os demais, a comprovação deu-se em exames subsequentes. A média (DP) das concentrações de TSH sérico das 11 crianças com SD e HC concomitantes foi de 37,5 (43,8) µUI/mL. Valores entre 10µUI/mL e 20µUI/mL foram observados em sete (63,6%) pacientes. Para os quatro pacientes restantes, o TSH sérico resultou entre 20,1µUI/mL e 100µUI/mL ou, até mesmo, acima de 100 µUI/mL. Em relação ao T4 livre, a concentração sérica média (DP) foi de 1,1 (0,4) ng/dL, estando em níveis baixos (<0,7ng/dl) em apenas duas crianças (18,2%). Estas com concentrações baixas de tiroxina livre foram as mesmas que apresentaram TSH sérico acima de 100µUI/mL, sendo classificadas como HC clássico.

De acordo com o resultado da ultrassonografia, apenas uma, de 10 crianças que realizaram, apresentou disgenesia tireoidiana compatível com hipoplasia da glândula.

Em virtude da falta de informações completas dos prontuários analisados, não foi possível uma abordagem clínica de 100% das crianças da amostra. A Tabela 3 apresenta os achados mais frequentemente encontrados: icterícia (90,0%), macroglossia (80,0%), hipotonia e livedo reticular (62,5%). Alguns sinais clínicos foram registrados em torno de 30,0% a 45,0%, quais sejam: palidez cutânea (44,4%), distensão abdominal (44,4%), letargia (42,9%), pele fria e seca (37,5%), hérnia umbilical (30,0%) e obstipação intestinal (28,6%). As manifestações clínicas menos frequentemente encontradas foram a hérnia inguinal (14,3%) e as fontanelas amplas (11,1%).



Todas as crianças do estudo apresentaram anomalias cardíacas congênitas. A CIA isoladamente e a PCA associada à CIA ou ao defeito do septo atrioventricular (DSAV) foram as anomalias mais prevalentes, com frequência igual a 18,2% para cada uma delas. A anomalia gastrointestinal como a doença de Hirschsprung esteve presente em apenas um paciente.


DISCUSSÃO

No presente estudo, demonstrou-se uma alta prevalência da SD entre pacientes com HC, sendo a forma subclínica a mais comum. Anomalias congênitas cardíacas foram presentes em todas as crianças do estudo.

A cobertura observada aqui foi de 73,9%, semelhante à de 2010 a 2012 (aproximadamente 74%)22 e discretamente abaixo da registrada por Costa et al. (2020)20 que foi de 75,2% para o mesmo programa. A cobertura continua estável, mas ainda aquém da nacional, que é superior a 80%4.

O estudo obteve uma prevalência de HC de 1:1.536 similar à observada por Mengreli et al. em 201023 (1:1.749). Embora utilizando os mesmos métodos analíticos e ponto de corte de detecção da doença, as cifras atuais estão acima das encontradas em anos anteriores, no mesmo programa (1:2.234)22.

Existe um maior risco de crianças com SD apresentarem disfunção tireoidiana1,10,12 como o HC, sendo 285,13,24a 3513,24e até 5013vezes mais prevalente se comparado à população geral. Neste trabalho, a prevalência de crianças com SD entre todas que confirmaram a doença endócrina foi de 1:28,9, bem acima da mencionada por Connelly e LaFranchi1 (2022) de até 1:50 recém-nascidos. Contudo, Razavi et al. (2012) 25 e Baş et al. (2014)13 encontraram uma frequência de crianças com SD entre aquelas com HC (8% e 6,3%, respectivamente) superior às observadas aqui (3,5%).

Existe uma preponderância feminina no HC o que, geralmente, não é encontrada em pacientes com HC e SD24. Vários estudos corroboraram para esta afirmação, como neste, onde a proporção masculino/feminino foi de 1,2, idêntica à encontrada por Pierce et al. (2017)8 e próxima aos achados de Laignier et al. (2021)7 de 1,1.

Laignier et al. (2021)7 observaram que gestantes com fetos com SD tinham 2,4 vezes mais chances de partos prematuros. No estudo, a prematuridade esteve presente em 27,3% da amostra. As publicações sobre taxa de prematuridade entre as crianças com essas patologias associadas são escassas, mas considerando a maior frequência de anomalias congênitas entre as crianças com SD, a ocorrência de recém-nascidos com idade gestacional menor deve ser considerada.

A triagem neonatal e o início do tratamento precoce melhoram o desfecho em relação ao crescimento e desenvolvimento dessas crianças. Neste estudo, 63,6% das crianças realizaram a triagem neonatal até o 7º dia de vida, estando em concordância com Fort et al. (1984)5 que constataram a primeira triagem sendo realizada num tempo de vida médio de 6 dias. Apesar de a triagem neonatal ter sido realizada oportunamente para a maioria das crianças estudadas, observou-se uma abordagem tardia nas etapas subsequentes.

Das sete crianças que apresentaram o primeiro exame de triagem neonatal alterado, em seis (54,5%) o TSHneo estava acima de 10μU/mL, associado ao TSH sérico elevado, confirmando o HC; dois pacientes eram prematuros e as alterações laboratoriais foram evidenciadas apenas na nova coleta do TSHneo. Nos demais, o exame de triagem neonatal foi normal; contudo, as alterações hormonais séricas surgiram entre a idade de 3 e 5 meses, comportamento esse que corrobora a recomendação da AAP sobre a necessidade de avaliações hormonais periódicas no primeiro ano de vida10. Em 0,1 a 1,0% dos recém-nascidos com HC, as concentrações dos hormônios na triagem neonatal serão normais devido aos erros na coleta e processamento de amostras12ou por aumento tardio do TSH10,12, ou nas formas leves da doença8,12que escapam da detecção na triagem precoce8.

Quanto ao diagnóstico, seis (54,5%) crianças tiveram a confirmação da doença antes dos 2 meses de vida e cinco (45,5%) após este período. Dessas últimas, apenas uma criança em que houve hipertireotropinemia persistente, a decisão de instituir o tratamento ocorreu após os 2 anos de idade. Segundo Myrelid et al. (2009)26 crianças com hipertireotropinemia têm risco aumentado para desenvolver HC subclínico.

Quanto às concentrações hormonais, Fort et al. (1984)5encontraram uma média de 27,4µUI/mL para o primeiro TSHneo entre as crianças com SD, próxima da observada no estudo (33,1µUI/mL; DP=73,0). Razavi et al. (2012)25 observaram em crianças com HC concomitante a SD, uma média (DP) para TSH sérico de 42,7 (41,9) µUI/mL, portanto semelhante (p=0,774) à encontrada neste estudo (37,5µUI/mL; DP=43,8). No perfil dessas crianças, Cebeci et al. (2013)27 observaram a mediana de 1,18ng/dL para tiroxina livre, sendo próxima à encontrada aqui (1,2ng/dL).

Segundo Rodriguez et al. (2022)9, a hipoplasia tireoidiana é a principal causa de HC na SD, enquanto ectopia e agenesia são raras. Cebeci et al. (2013)27 encontraram uma alta frequência de hipoplasia tireoidiana nas crianças com as duas enfermidades concomitantes. A ultrassonografia de tireoide foi normal em 90,0% das crianças do estudo e apenas uma criança apresentou a forma clássica do HC decorrente da hipoplasia tireoidiana. Numa amostra semelhante, Fort et al. (1984)5 demonstraram que a posição e o volume da glândula tireoide eram normais em 45,5% de crianças estudadas.

Devido aos achados clínicos semelhantes, é difícil considerar o diagnóstico de hipotireoidismo em crianças com SD em bases clínicas15. O hipotireoidismo apresenta inicialmente sinais e sintomas sutis podendo ser atribuídos inicialmente apenas à síndrome de Down12. Entre os achados, icterícia e macroglossia estavam presentes em 90,0% e 80,0% dos casos, respectivamente. É possível que a macroglossia seja imputada à SD, pois a forma subclínica de HC, que habitualmente é oligossintomática, preponderou entre as crianças deste estudo. Cebeci et al. (2013)27 apontaram a icterícia prolongada como o achado mais frequente (70%) entre crianças com SD associada ao HC.

A ocorrência de malformações cardíacas entre as crianças com HC pode atingir a cifra de 4,67%25. Os defeitos do septo atrioventricular e do septo ventricular são referidos como os mais comuns entre as crianças com SD28. Neste estudo, as malformações cardíacas tiveram preponderância absoluta (100%) sendo CIA e PCA as mais prevalentes, já a doença de Hirschsprung foi detectada em apenas uma criança. Pierce et al. (2017)8 constataram algum tipo de cardiopatia congênita em 52% das crianças com SD. Gu et al. (2009)19 observaram a doença de Hirschsprung apenas em crianças com HC, mas não quando houve coexistência das doenças.

Algumas limitações devem ser consideradas para a interpretação dos resultados deste estudo. Por exemplo, a abordagem apenas retrospectiva foi acompanhada de falha no registro dos dados relativos às manifestações clínicas da amostra, o que pode representar um erro sistemático do estudo por viés de seleção. Além disso, não foi possível calcular a real prevalência de SD concomitante ao HC entre todos os nascidos vivos com síndrome de Down que foram triados pelo PETN, pois as informações referentes a essa entidade não foram disponibilizadas no formulário específico para a triagem neonatal.

Em conclusão, o presente estudo observou uma alta prevalência da síndrome de Down entre pacientes com HC predominantemente subclínico. Cardiopatias congênitas, icterícia e macroglossia foram os achados clínicos mais relevantes entre as crianças com essas duas síndromes em concomitância.

Considerando que os sinais e sintomas assemelham-se àqueles relacionados ao curso natural da SD, pode haver risco significativo para a saúde de crianças com SD se o HC não for identificado precocemente.


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Universidade Federal de Mato Grosso, Departamento de Pediatria - Hospital Universitário Júlio Müller - Cuiabá - Mato Grosso - Brasil

Endereço para correspondência:
Camila Moraes Mello
Universidade Federal de Mato Grosso
R. Luis Philippe Pereira Leite, s/n - Alvorada
Cuiabá - MT, 78048-902
E-mail: camila.mmello@outlook.com; kmilemello@hotmail.com

Data de Submissão: 21/09/2023
Data de Aprovação: 30/11/2023