Relato de Caso
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Ano 2015 -
Volume 5 -
Número
3
Síndrome de diferenciação na leucemia promielocítica aguda: relato de caso pediátrico no HC-UFTM
Differentiation syndrome in acute promyelocytic leukemia: report of a pediatric case in HC-UFTM
Síndrome de diferenciación en la leucemia promielocítica aguda: relato de caso pediátrico en el HC-UFTM
Vanessa de Paula Tiago1; Valéria Cardoso Alves Cunali2
RESUMO
O uso do ácido all-trans-retinoico (ATRA) no tratamento de leucemia promielocítica aguda está associado, em 5% a 20% dos pacientes, a uma condição conhecida como síndrome de diferenciação. A apresentação clínica inclui sintomas respiratórios decorrente de lesão pulmonar associados a outros sintomas sistêmicos. Este caso chama a atenção para a necessidade do diagnóstico precoce, devendo o tratamento adequado ser imediatamente introduzido.
Palavras-chave:
insuficiência respiratória, neoplasias, pediatria, leucemia promielocítica aguda.
ABSTRACT
The use of all-trans retinoic acid (ATRA) in the treatment of acute promyelocytic leukemia in 5% to 20% of patients is associated with a condition known as differentiation (retinoic) syndrome. The clinical presentation includes respiratory symptoms caused by lung injury and other systemic symptoms. This case draws attention to the need for early diagnosis immediately proper treatment.
Keywords:
respiratory insufficiency, neoplasms, pediatrics, leukemia, promyelocytic, acute.
RESUMEN
El uso del ácido trans-retinoico (ATRA) en el tratamiento de leucemia promielocítica aguda está asociado en el 5% al 20% de los pacientes a una condición conocida como síndrome de diferenciación. La presentación clínica incluye síntomas respiratorios derivados de lesión pulmonar asociados a otros síntomas sistémicos. Este caso llama la atención por la necesidad de un diagnóstico precoz, asi como también un inmediato y adecuado tratamiento.
Palabras-clave:
insuficiencia respiratoria, neoplasias, pediatría, leucemia promielocítica aguda.
INTRODUÇÃO
As leucemias mieloides agudas (LMA) constituem um grupo heterogêneo de doenças caracterizado pela expansão clonal de progenitores hematopoéticos imaturos na medula óssea levando ao bloqueio da hematopoese normal1.
A leucemia promielocítica aguda (LPA) é um subtipo da LMA, caracterizada pelo predomínio de células com morfologia característica pela translocação t(15,17) e por coagulopatia, que combina coagulação intravascular disseminada e fibrinólise2.
A morfologia corresponde ao subtipo M3 da classificação franco-américo-britânica (FAB) e caracteriza-se pela interrupção da maturação mieloide e acúmulo de células leucêmicas semelhantes a promielócitos na medula óssea1.
Do ponto de vista genético, a LPA está associada a translocações cromossômicas envolvendo o locus gênico do receptor do ácido retinoico (RARa) localizado no braço longo do cromossomo 17. A t(15;17) detectada em mais de 90% dos casos de LPA é o resultado da quebra e fusão dos genes promyelocytic leukemia (PML), localizado no cromossomo 15, e RARa, localizado no cromossomo 17. Os híbridos PML-RARa retêm a maioria dos domínios funcionais das proteínas parentais e atuam como produtos oncogênicos dominante-negativos, interferindo nas funções da via retinoide e do PML1.
O maior impacto no tratamento da LPA foi, sem dúvida, a demonstração de que o ácido all-trans-retinoico (ATRA), em doses farmacológicas, permite a progressão da diferenciação celular3.
O mecanismo de ação da droga é a indução à diferenciação dos precursores leucêmicos em células maduras4. Desta forma, o clone leucêmico progride na maturação mieloide, tornando-se susceptível aos mecanismos de morte celular1.
A utilidade do ATRA é incrementada por sua capacidade de induzir a remissão sem produzir aplasia medular e melhorar rapidamente a coagulopatia, o que contribui para reduzir a morbimortalidade por hemorragias e infecções durante o tratamento de indução5; assim, o tratamento com ATRA deve ser iniciado imediatamente diante da suspeita morfológica, mesmo antes da confirmação genética do diagnóstico6.
Geralmente, o tratamento é bem tolerado, exceto por desenvolver uma síndrome conhecida como síndrome de diferenciação (SD), descrita pela primeira vez em 1992 por Frankel et al.7, em nove dos 35 (25%) pacientes diagnosticados recentemente com LPA. O começo da SD tipicamente ocorre após 10-12 dias após o início do tratamento. Hiperleucocitose isolada não é suficiente para o diagnóstico de SD, pois isso pode ser uma manifestação da atividade normal de diferenciação do ATRA. Febre e angústia respiratória ocorrem em mais de 80% dos pacientes, infiltrado pulmonar, derrame pleural ou pericárdico e insuficiência renal aguda têm sido relatados em 50%, 30%, e 10% dos pacientes, respectivamente. Embora não haja nenhum critério estabelecido, tem sido sugerido que, pelo menos, três sinais e sintomas são necessários para o diagnóstico8.
A etiologia desta síndrome não é completamente entendida, porém, a infiltração de diferentes órgãos por células mieloides é um achado invariável1.
As manifestações da síndrome do ATRA são secundárias a três mecanismos fisiopatológicos: 1) resposta inflamatória sistêmica; 2) dano endotelial e obstrução da microcirculação; 3) infiltração tecidual. Estes são desencadeados pelo efeito do ATRA sobre a diferenciação dos promielócitos durante a qual ocorrem síntese e liberação de interleucinas, proteases e expressão de moléculas de adesão endotelial. Os promielócitos expostos ao ATRA formam agregados na microcirculação com obstrução desta por sua interação com as moléculas de adesão9.
Este relato de caso tem como objetivo chamar atenção para as peculiaridades do diagnóstico da síndrome do ATRA, bem como a importância de realizá-lo precocemente e o seu correto tratamento, a fim de diminuir a morbimortalidade do paciente.
RELATO DO CASO
Escolar, 8 anos e 2 meses, com diagnóstico pregresso de leucemia promielocítica aguda com tratamento completo concluído há 1 ano e sem intercorrências durante este período.
Deu entrada no PSI do HC-UFTM, no dia 12 de abril de 2014, com queixa de sangramento gengival, equimoses em membros inferiores e plaquetopenia. Em hemograma inicial, visualizados 70% de blastos, levantada hipótese diagnóstica de recidiva da doença, sendo então iniciado ATRA 25 mg/m2/dia e suporte hemoterápico. Mielograma evidenciou medula óssea hiperplásica e homogênea, com 90% de mieloblastos e imunofenotipagem compatível com leucemia promielocítica aguda, confirmada com identificação do gene de fusão PML-RARA.
No quarto dia de internação iniciou quadro de edema de face associado a surgimento de sopro cardíaco, hiperleucocitose e febre. Na radiografia de tórax foi evidenciado infiltrado instersticial perihilar bilateral.
Apresentou paralelamente, no pós-operatório de cateter totalmente implantado, hemotórax, sendo necessária drenagem torácica à esquerda.
No segundo dia do pós-operatório, oitavo dia pós-início do ATRA, mantinha drenagem de grande quantidade de secreção serossanguínea à esquerda associada a desconforto respiratório, com piora progressiva e queda da saturação. À ausculta cardíaca, sopro sistólico panfocal evidente, e ao exame do aparelho respiratório notado diminuição do murmúrio vesicular também em base direita. A radiografia mostrava piora do infiltrado perihilar bilateralmente associado a derrame pleural à direita, que evoluiu com aumento progressivo. Ao ecocardiograma, evidenciado derrame pericárdico de pequeno volume.
Realizada hipótese diagnóstica de síndrome do ATRA, iniciado então dexametasona 20 mg/dia durante 3 dias, suspenso ATRA por 72 horas e oferecido suporte respiratório e hemodinâmico.
Paciente evoluiu satisfatoriamente, com melhora do desconforto respiratório e resolução dos derrames cavitários nas 72 horas do uso da dexametasona.
Reintroduzido novamente ao esquema quimioterápico de indução o ATRA, sem intercorrências.
DISCUSSÃO
A LPA é tratada com uma droga específica, o ácido all-trans-retinoico (ATRA), que induz diferenciação terminal seguida de apoptose das células leucêmicas. A terapia com ATRA contribuiu para melhora do prognóstico, induzindo remissão em mais de 90% dos casos10.
Cuidado é necessário durante o tratamento com ATRA devido ao potencial de desenvolver a síndrome de diferenciação, formalmente conhecida como síndrome do ATRA. É uma síndrome cardiorrespiratória caracterizada por febre inexplicável, ganho de peso, desconforto respiratório, infiltrado pulmonar intersticial, derrames pleural e pericárdico, insuficiência renal aguda, falência cardíaca e hipotensão11, e pode estar relacionada à hiperleucocitose. Tem sido sugerido que pacientes que apresentem a contagem de células brancas (leucócitos) que excede 5000/µL no primeiro dia do tratamento, 6000/µL no quinto dia, 10 000/µL no décimo, ou 15 000/µL no décimo quinto dia de tratamento têm risco aumentado para desenvolver a síndrome do ATRA12.
A letalidade observada por Frankel et al.7 foi de três mortes num universo de 35 doentes, mas desde a sua descoberta a mortalidade dessa síndrome diminuiu aproximadamente 2-10% devido à intervenção clínica precoce8.
Os fatores de risco para desenvolvimento da síndrome ainda não foram completamente definidos, no entanto, os pacientes com leucócitos (WBC) de partida superior a 5x109/L devem ser objeto de uma supervisão de perto para detectar quaisquer sinais e sintomas de SD durante a terapia de indução8.
O diagnóstico é feito clinicamente e deve ser suspeitado em todo paciente que apresente a associação de pelo menos três dos seguintes sinais na ausência de outra causa aparente: febre, ganho de peso, desconforto respiratório, infiltrado pulmonar, derrames pleural ou pericárdico, hipotensão e falência renal13 (Tabela 1).
A terapêutica com corticosteroides tem se mostrado efetiva quando administrada nos estágios iniciais, mas o mecanismo exato de ação da droga ainda não foi completamente esclarecido. Foi demonstrado in vitro e in vivo que os corticosteroides podem impedir a infiltração pulmonar de células da LPA, por meio da redução da secreção de citocinas alveolar e, desse modo, impedir o desenvolvimento de SD14.
Ao primeiro sinal ou sintoma da síndrome, o ATRA deve ser descontinuado e dexametasona iniciada a 10 mg duas vezes ao dia por pelo menos 3 dias12. Se a síndrome for resolvida, o ATRA pode ser retomado com 75% da dose inicial e, em seguida, aumentado para a dose completa após 3 a 5 dias, se a síndrome não se repetir13 (Tabela 2).
No nosso caso, se trata de uma criança apresentando recidiva da leucemia promielocítica aguda, em que foi iniciado prontamente o tratamento com ATRA. A mesma desenvolveu, após 1 semana do início do mesmo, sintomas como desconforto respiratório associado a infiltrado pulmonar e derrames pericárdico e pleural bilateral. O diagnóstico se baseou em sinais e sintomas clínicos, sendo, então, iniciado o tratamento recomendado com dexametasona. A resposta ao mesmo se mostrou nas 72 horas do tratamento, sendo o ATRA reintroduzido sem intercorrências.
CONCLUSÃO
O uso do ATRA está associado, em 5% a 20% dos pacientes, a um quadro conhecido como síndrome ATRA, síndrome retinoide ou síndrome de diferenciação (SD), potencialmente fatal.
Outros dados da literatura mostram que, embora o ATRA seja bem tolerado, aproximadamente um para cada quatro pacientes desenvolvem a síndrome de diferenciação, e a mortalidade gira em torno de 1% a 7%.
A rápida identificação do quadro clínico e o início precoce do tratamento são essenciais, pois a síndrome retinoide leva à diminuição da sobrevida livre de eventos e da sobrevida global.
Isso reforça a importância do diagnóstico precoce, uma vez que a SD responde bem ao tratamento com dexametasona (10 mg duas vezes ao dia, por pelo menos 3 dias).
A letalidade da síndrome ATRA está diretamente relacionada principalmente ao atraso na identificação desta.
Esse relato chama atenção para a necessidade do diagnóstico precoce da síndrome ATRA, devendo ser imediatamente introduzida a dexametasona para se alcançar o sucesso terapêutico.
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1. Médica - Residente de Pediatria da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
2. Professora Doutora - IV adjunto da disciplina de pediatria da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Supervisora da Residência em UTI pediátrica da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Endereço para correspondência:
Vanessa de Paula Tiago
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Av. Frei Paulino, nº 30, Bairro Abadia
Uberaba - MG. Brasil. CEP: 38025-180