ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2016 - Volume 6 - Supl.1

Ética em pesquisa em crianças e adolescentes

Ethics research among children and adolescents

RESUMO

Esta revisão propõe apresentar breve histórico da evolução da ética em pesquisa com participação de crianças, com posterior discussão sobre a legislação brasileira que trata do assunto. Aponta fragilidades na atuação de profissionais de saúde, consequente à formação profissional deficiente na área de humanidades e aponta necessidades para melhor entendimento sobre pesquisa em crianças e adolescentes.

Palavras-chave: ética em pesquisa, criança.

ABSTRACT

This review aims to present brief history of ethics research evolution with the participation of children, with further discussion on the Brazilian legislation that deals of the subject. Points out weaknesses in the performance of professional health , resulting to poor training in the humanities and points needs to better understanding of research in children and adolescents.

Keywords: Ethics, Research, Child


"Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos"
Paulo Freire
Pedagogia da Autonomia,1996
Esta revisão propõe apresentar breve histórico da evolução da ética em pesquisa com participação de crianças, com posterior discussão sobre a legislação brasileira que trata do assunto. Aponta fragilidades na atuação de profissionais de saúde, consequente à formação profissional deficiente na área de humanidades e aponta necessidades para melhor entendimento sobre pesquisa em crianças e adolescentes.


I. FUNDAMENTOS HISTÓRICOS

1767
– Primeiros esboços de consentimento e informação entre pacientes e ortopedistas.

1830 – Primeira publicação sobre legislação e exercício profissional da medicina.

1833 – Primeiro conjunto de diretrizes para a pesquisa em humanos, organizado por Beaumont.

Antes do século XIX, havia uma total liberalidade em pesquisas, em que não se reconhecia o respeito à dignidade das crianças como pessoas. Há diversos relatos de testes e pesquisas em crianças, principalmente com vacinas1.

O livro "Memórias de um Médico", de 1901, do médico russo Veresaev, descreveu inúmeras pesquisas abusivas realizadas com crianças, denominadas por ele de "mártires da ciência"2.

1874 - Criação da Society for the Prevention of Cruelty to Children, de Nova York, inspirada na American Society for the Prevention of Cruelty to Animals, de 1866.

1947 – Declaração de Nuremberg, com seus 10 princípios. Em seu artigo primeiro, estabelecia a condição essencial para a realização de pesquisas em seres humanos: O consentimento voluntário. As crianças e os adolescentes foram excluídos, devido à incapacidade legal.

1964 – Declaração de Helsinque, documento promulgado pela Associação Médica Mundial (AMM). Traz a possibilidade de participação de crianças em pesquisas, desde que haja consentimento do responsável legal. Benefícios da pesquisa em crianças, pois traz novos conhecimentos com tratamentos mais adequados às crianças e, consequentemente, redução do desconforto1.

A Declaração é considerada um "documento vivo", pois, após sua promulgação em 1964, passou por algumas atualizações de seus princípios (1975, 1983, 1989, 1996, 2000, 2008), duas notas de esclarecimento (2002, 2004) e o último processo de revisão (2013), na Assembleia Geral da AMM que ocorreu no Brasil.

1978 – Relatório Belmont, em que, pela primeira vez, é estabelecido o uso sistemático de princípios (respeito às pessoas, beneficência e justiça) na abordagem de dilemas bioéticos.

1988 - Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.246/88, DOU 26/01/1988). O Conselho Nacional de Saúde aprova normas de pesquisa em saúde (Resolução nº 1, de 1988, CNS, MS)3,4.

1996 – O Conselho Nacional de Saúde divulga nova Regulamentação Brasileira de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (Resolução 196/96)5. Com texto abrangente e prático, a Resolução organiza os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), definindo composição, mandato, atribuições e, principalmente, a multidisciplinaridade. Cria Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP e o sistema CEP-CONEP.

"Toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa e, cabe à instituição onde se realizam pesquisas, a constituição do CEP."

2000 - Declaração de Mônaco. Simpósio Internacional sobre a Bioética e os Direitos da Criança, organizado pela Associação Mundial dos Amigos das Crianças - AMADE e a UNESCO. Realizada com o propósito de promover o respeito à dignidade e a proteção dos direitos da criança. Em relação à origem, aos laços familiares e ao corpo da criança. Uma das principais proposições refere-se à promoção, em especial, de pesquisas relativas a doenças raras e ao desenvolvimento de terapias eficazes6.

2004 - Declaraçã o Universal sobre Bioética e Direitos Humanos7.

2012 - 2013 – Revisão das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos (Resolução 466 de 12/12/2012, CNS, MS)8.


II. LEGISLAÇÃO NACIONAL E DE PESQUISAS EM CIÊNCIAS DA SAÚDE, SOCIAIS E HUMANAS

A Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde – MS, rege as pesquisas em seres humanos no Brasil, por meio do sistema CEP-CONEP, que visa à proteção dos participantes de pesquisa do Brasil, de forma coordenada e descentralizada por meio de um processo de acreditação8.

O papel e os objetivos do CEP são descritos na Resolução na seção VII.2 - Os CEP são colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos8.

No último levantamento deste Sistema, realizado em novembro de 2015, havia 739 CEP aprovados e 12 em tramitação, pela CONEP9.

A definição sobre quais projetos devem ser submetidos ao CEP encontra-se na seção II.14 - pesquisa envolvendo seres humanos - pesquisa que, individual ou coletivamente, tenha como participante o ser humano, em sua totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos8.

Desta forma, também envolvem entrevistas, aplicações de questionários, utilização de banco de dados e revisões de prontuários. O CEP deve reforçar o papel educador, junto aos profissionais de saúde, principalmente no que se refere à compreensão do que seja a ética em pesquisa.

Kipper10 chama a atenção para a exclusão de crianças em pesquisas, devido à ausência de autonomia destas para o seu consentimento em pesquisas, após o Código de Nuremberg, marco histórico na ética em pesquisa. Esta medida foi extremamente importante para diminuir as atrocidades realizadas em nome da ciência, que incluíam crianças e adolescentes. Mas, como revés, muitos anos do que Kipper10 denomina "orfandade terapêutica" levaram ao atraso no desenvolvimento diagnóstico e terapêutico para diversas doenças específicas ou com especificidades nesta faixa etária. A partir de então, busca-se o equilíbrio entre a beneficência e a não maleficência.

A família procura um atendimento médico, em busca de atenção e cuidado, não sabe e nem imagina que a qualquer momento poderá ser recrutado para uma pesquisa. Desta forma, há a necessidade do entendimento sobre do que trata a pesquisa. Se a pesquisa trará benefícios ao paciente em questão ou, pelo menos, não trará malefícios. Este entendimento vai além da assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Especial atenção deve ser dada aos estudos caso-controle, nos quais os convidados de pesquisa como controles realizam procedimentos apenas com o objetivo de pesquisa e não para seu próprio bem.

Nas Diretrizes Internacionais do Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS), de 1993, toda a diretriz de número 5 é dedicada à pesquisa em crianças e adolescentes2:
crianças não devem ser envolvidas em pesquisas que possam ser desenvolvidas igualmente em adultos;

o objetivo da pesquisa deve ser o de gerar conhecimentos relevantes para a saúde das crianças;

os pais ou representantes legais devem dar um consentimento por procuração;

o consentimento de cada criança deve ser obtido na medida da sua capacidade. Hoje, pela Resolução 466 de 2012 (CNS, MS), deve ser chamado Assentimento livre e esclarecido;

a recusa da criança em participar na pesquisa deve sempre ser respeitada, a menos que, de acordo com o protocolo de pesquisa, a terapia que a criança receberá não tenha qualquer alternativa medicamente aceitável;

o risco apresentado pelas intervenções que não beneficiem individualmente a criança sujeito da pesquisa seja baixo e proporcional com a importância do conhecimento a ser obtido. O termo "criança sujeito da pesquisa" é hoje denominado "criança convidada a participar da pesquisa"

as intervenções que propiciarão benefícios terapêuticos devem ser, pelo menos, tão vantajosas para a criança convidada a participar da pesquisa quanto qualquer outra alternativa disponível.
O artigo 12 dos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados estabelece: Direito de não ser objeto de ensaio clínico, provas diagnósticas e terapêuticas, sem consentimento informado de seus pais ou responsáveis e o seu próprio, quando tiver discernimento para tal. Este documento foi estabelecido por meio da Resolução nº 41 de 1995, pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), do Ministério da Justiça, que aprovou, na íntegra, o texto oriundo da Sociedade Brasileira de Pediatria, relativo aos Direitos da Criança e do Adolescente hospitalizados11.

Levando em conta que os pesquisadores são seres humanos éticos que atuam em diversas áreas do conhecimento científico e buscam evidências de diversas formas, percebe-se a dificuldade em apreciar as pesquisas realizadas em crianças, em que a análise do controle social deverá levar em conta todas as especificidades. Na pesquisa em crianças e adolescentes, devese considerar sua vulnerabilidade, mas, ao mesmo tempo, sua capacidade de entendimento sobre a pesquisa, ao ponto de quando houver diferença de interesses, o interesse da criança deve, em princípio, prevalecer sobre o do adulto6.

Deve-se considerar que em toda pesquisa na qual a abordagem exige o contato com a criança, o pesquisador deverá ter conhecimento em pesquisa quantitativa, em aspectos da pesquisa qualitativa e das ciências humanas. Uma exceção poderá ser a pesquisa quantitativa que trata de dados secundários, como, por exemplo, resultados laboratoriais.

Outra abordagem da pesquisa em crianças e adolescente, às vezes desconhecido de pesquisadores biomédicos, trata das relações e percepções, o que torna fundamental o ver e ouvir. Neste tipo de pesquisa valoriza-se a narrativa, entender a história. Ver e ouvir são cruciais para que se possa compreender gestos, discursos e ações12.

Esperava-se uma valorização e até mesmo um salto no processo de avaliação destas pesquisas pelo sistema CEP-CONEP, mas a Resolução 466, de 2012, apenas previu a elaboração de resolução complementar para atender às especificidades de pesquisas nessas áreas.

XIII.3 - As especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas serão contempladas em resolução complementar, dadas suas particularidades8.

Assim, em 2013 foi organizado um grupo de trabalho para sua elaboração. Este grupo contou com a participação de representantes associações e sociedades de pesquisa em diversas áreas do conhecimento, principalmente das áreas humanas e sociais.

Devido à necessidade de atender às especificidades das pesquisas não biomédicas, a CONEP realizou consulta pública a fim de que toda a sociedade pudesse contribuir com a diminuição das controvérsias geradas pela tramitação das pesquisas das áreas das ciências humanas e sociais no sistema CEP-CONEP13.


III. FRAGILIDADES E NECESSIDADES

a) O ensino da Ética e Bioética na área da saúde.

A Formação médica com problemas complexos na esfera ética, dependentes do contexto sociocultural, necessita voltar seus currículos para um perfil mais comprometido com o respeito para com o outro, tolerante com os diferentes e capazes de tomar decisões com o uso crítico da razão14.

Entendimento sobre Consentimento e Recusa do assentimento. Esse princípio deve ser reforçado, em especial, em relação a exames e/ou coleta de espécimes realizados na criança, os quais só devem visar ao interesse de saúde da criança que não possa ser atendido de outra maneira6.

b) A imagem da criança

O rosto, a fotografia da criança. O vídeo da criança. Os autores são orientados a não divulgar o rosto de uma criança e, quando necessário, inserir tarja preta sobre os olhos, com o objetivo de proteção à identidade. A imagem, neste caso, retrata uma lesão, um sinal clínico. Mas a imagem pode ser tratada como uma metodologia da pesquisa qualitativa. O registro de atividades da criança, em sua realidade, por exemplo em creches, em brincadeiras, em orfanatos, mal tratos e violência, é considerado um passado lido aos olhos do presente, pois sofre influência do observador, de quem vê a foto. São ângulos diversos de um mesmo objeto de pesquisa.

À medida que a foto de criança, utilizada como pesquisa, passa a ser um problema em sua apresentação e interpretação, mesmo com a autorização dos responsáveis, por escrito, cresce a necessidade em determinar critérios para autorização e divulgação, principalmente nas ciências sociais e humanas15.

"As imagens falam e, ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das que foram ditas, aos ouvidos de quem as pronunciou."16.

c) A pesquisa como um benefício para a própria criança convidada e para a sociedade

Uma pesquisa não necessita dar retorno imediato, pois seus resultados poderão favorecer retornos indiretos para outros pesquisadores, outras equipes. Mas, a pesquisa tem o compromisso com a sociedade e para ela deve retornar e é desta forma que os CEP devem apreciar os projetos.
"Evitar que erros do passado com pesquisas voltem a se repetir"15
(Guilhem e Diniz)

REFERÊNCIAS

1. Kipper DJ, Goldim JR. A pesquisa em crianças e adolescentes. J Pediatr (Rio J). 1999;75(4):211-2.

2. CIOMS. International ethical guidelines for biomedical research involving humans subjects. Geneva: WHO; 1993.

3. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Resolução nº 1.246/88. Brasília: Diário Oficial da União; 1988.

4. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 1, de 1988. Normas de pesquisa em saúde. Brasília: Diário Oficial da União; 1988.

5. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília; 1996.

6. Declaração de Mônaco. Considerações sobre a Bioética e os Direitos da Criança. Simpósio Internacional; 2000. [citado 1 Jul 2016]. Disponível em: http://fmj.br/Pdfs/bioetica.pdf

7. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Divisão de Ética das Ciências e Tecnologias. Setor de Ciências Sociais e Humanas. Paris: UNESCO; 2006.

8. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília; 2012.

9. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. CEP por Macrorregiões. 2015. [citado 1 Jun 2016]. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/Web_comissoes/conep/aquivos/MAPA_CEP_ATUALIZADO_2015_nov.pdf

10. Kipper DJ. Ética em pesquisa com crianças e adolescentes: à procura de normas e diretrizes virtuosas. Rev Bioét. 2016;24(1):37-48.

11. Brasil. Ministério da Justiça Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução nº 41, de 13 de outubro de 1995. Aprova em sua íntegra o texto oriundo da Sociedade Brasileira de Pediatria, relativo aos Direitos da Criança e do Adolescente hospitalizados. Brasília: Diário Oficial da União; 1995.

12. Silva JP, Barbosa SNF, Kramer S. Questões teórico-metodológicas da pesquisa com crianças. Perspectiva. 2005;23(1):41-64.

13. Barbosa AS, Corrales CM, Silbermann M. Controvérsias sobre a revisão ética de pesquisas em ciências humanas e sociais pelo Sistema CEP/CONEP. Rev Bioét. 2014;22(3):482-92.

14. Rego S. A Formação ética dos médicos saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p.184.

15. Guilhem D, Diniz D. O que é ética em pesquisa. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense; 2008.

16. Kramer S. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cad Pesqui. 2002;116:41-59.










Prof. Adjunto de Pediatria da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Pesquisa Clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-doutora em Ensino em Saúde pela Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Departamento de Bioética da Sociedade Brasileira de Pediatria

Endereço para correspondência:
Rosana Alves
Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências da Saúde
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E-mail: rosana.medufes@gmail.com