ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2016 - Volume 6 - Supl.1

Dilemas bioéticos em neonatologia

Bioethical Dilemmas In Neonatology


"Os médicos devem ser guiados pelas quatro virtudes fundamentais de Beauchamp e Childress: compaixão, lealdade, discernimento e integridade moral."1

BIOÉTICA: ASPECTOS CONCEITUAIS

De uma maneira simples, bioética, do grego bios (vida) + ethos (ética), é a ética da vida ou ética prática. Mas seu conceito vai além das necessidades individual e coletiva frente às mudanças e paradigmas surgidos no século XX; desta forma, muitos conceitos surgiram. Os diversos olhares, das áreas de humanas, saúde e de exatas, passando pela Medicina, Direito e Filosofia, permitem colocar-se no lugar do outro, repensar valores morais e discutir conflitos. Um dos conceitos mais completos foi apresentado por Kottow, em 19952:
"A bioética é o conjunto de conceitos, argumentos e normas que valorizam e justificam eticamente os atos humanos que podem ter efeitos irreversíveis sobre os fenômenos vitais"
Segundo Motta et al.3, a Bioética abrange dilemas morais referentes (1) ao processo de morrer, (2) às pesquisas que envolvem seres vivos e o desenvolvimento das biotecnociências, (3) à atenção primária e seus questionamentos quanto à prática das equipes de Estratégia de Saúde na Família na reformulação do sistema de saúde, (4) da alocação de recursos na Saúde Pública e (5) à preocupação ecológica em relação ao meio ambiente.

Eutanásia: termo grego sugerido por Francis Bacon, em 1623, como "TRATAMENTO ADEQUADO ÀS DOENÇAS INCURÁVEIS"; pode ser traduzido com "boa morte" ou "morte apropriada". Hoje, significa provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins misericordiosos4.

Ortotanásia: Atuação correta diante do paciente que está morrendo. Pode se referir aos cuidados paliativos adequados, prestados a esse paciente4.

Distanásia: forma de prolongar a vida de modo artificial, sem a perspectiva de cura ou melhora; torna o morrer desnecessariamente mais doloroso e oneroso5.

Além das mudanças no sentido da morte através dos tempos, a morte marcou nossas culturas e está no centro das várias crenças religiosas. Vivemos tempos de culto à juventude, medicalização da vida e ocultação da morte – que passou a ser vista como um sinal de fracasso. A hospitalização e as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) caracterizam a revolução tecnológica que alterou totalmente a Medicina, a morte e o morrer6.

As UTIs passaram a receber pacientes portadores de doenças crônicas incuráveis, ou recém-nascidos imaturos extremos, com intercorrências clínicas das mais diversas, aos quais dispensamos os mesmos cuidados oferecidos aos agudamente enfermos ou com chance de alcançar plena recuperação. A esses pacientes oferecemos um sobreviver precário e, às vezes, não mais do que vegetativo.

A sacralidade da vida, isto é, a vida como um bem intocável, pode conflitar com a qualidade da vida. Atualmente, a ênfase recai sobre os novos conhecimentos, as novas tecnologias, em detrimento do ensino da arte de ser médico. Perdeu-se a noção do todo, das dimensões biopsicossocial e espiritual. "Curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre"6.


VULNERABILIDADE

O conceito vulnerabilidade deriva do latim, vulnus, que significa ferida, também citado o verbo vulnerare, que quer dizer "provocar dano, uma injúria". Assim, ser vulnerável é possuir uma susceptibilidade para ser ferido, para ser maltratado, para sofrer. A vulnerabilidade é introduzida no vocabulário bioético, pela primeira vez, em 1979 no Belmont Report: ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research, documento que orienta os princípios éticos fundamentais na experimentação humana.

Neste documento, são relacionadas as minorias raciais, aqueles em desvantagem econômica, os doentes e institucionalizados. Outros documentos apontam: a) especialmente as crianças, as mulheres grávidas ou lactantes, os muito idosos e os sem-teto, que a literatura e a história demonstram que são os que mais sofrem em situação de desastre; b) pessoas na qual a possibilidade de escolha é muito limitada ou sujeita à coerção em sua decisão7,8.


BIOÉTICA, O INÍCIO DA VIDA E O ABORTO

O abortamento é definido como a interrupção da gestação antes de ser possível ao concepto (aborto) sobreviver no meio extrauterino.

O dilema bioético deverá ser analisado sob a ótica do Princípio da Sacralidade da Vida (PSV), que se refere à vida como um bem de origem divina ou natural, que não pode ser interrompida, mas também sob a ótica do Princípio do respeito à autonomia da pessoa (PRA), que considera a autonomia da pessoa, seu livre arbítrio, incluindo sobre decisões morais. A autonomia da mulher ou do casal, no caso do abortamento, seria suficiente para justificar sua escolha, sendo o indivíduo competente para decidir o que é importante em sua vida2.

O abortamento, no Brasil, é ilegal, exceto no caso de risco de morte para gestante, em que a decisão será do médico, ou quando a gravidez resulta de estupro, havendo necessidade do consentimento da gestante ou de seu responsável legal.

A medicina baseada em evidências auxilia na decisão ética, qualificando-a para o esclarecimento apropriado das famílias, que devem participar das decisões9.

Segundo Suzanne Toce, "decisões sobre tratamento e reanimação apropriadas de RN de baixo-peso extremo nunca deverão ser o triunfo da esperança sobre a razão nem a vitória do ego sobre a incerteza". E, por se tratar de uma difícil decisão, os pais da criança devem participar e estar bem esclarecidos sobre a situação10.

Os avanços tecnológicos em neonatologia permitem, atualmente, a manutenção da vida em situações descritas como incompatíveis com a vida, como recém-nascidos prematuros extremos, com múltiplas malformações ou com lesões neurológicas graves. Desta forma, alguns autores têm questionado se estes artifícios nada mais fazem do que retardar indefinidamente a morte, o que pode evoluir para obstinação terapêutica9.

Hill demonstrou que a discussão ética sobre morrer com dignidade era pouco abordada na formação médica, no final do século passado, mas pouco mudou desde então. Apenas cinco, dentre 125 escolas médicas nos Estados Unidos (EUA), ofereciam ensinamentos sobre terminalidade da vida e, apenas 26, dos 7048 programas de Residência Médica dos EUA, tratavam do tema em reuniões científicas11.

A ausência de conhecimento e treinamento adequados durante a formação médica, tais como saber se comunicar, saber informar "más notícias", dificulta a troca de informações entre pacientes e equipe de saúde. Este pode ser um dos motivos no atraso na indicação em cuidados paliativos e na manutenção da obstinação terapêutica. O médico deverá ter sensibilidade em reconhecer o momento exato para informar "más notícias", a empatia, com o objetivo de manter a esperança de sua família, sem oferecer expectativas irreais.

Paralelamente ao diagnóstico de "fora de possibilidade terapêutica", o médico e a equipe de saúde deverão direcionar o cuidado para o conforto físico, afetivo e emocional da família, além do recém-nascido, como consta no princípio da beneficência, no qual fazer o bem é agir em favor do melhor interesse do paciente. A beneficência não necessariamente implica em utilizar os conhecimentos científicos para preservar a vida a qualquer custo. "Fazer tudo" em favor do paciente terminal pode significar lhe oferecer cuidados paliativos, evitando-se a distanásia12.

Não existem regras fixas de conduta no que se refere à ortotanásia, e sim princípios éticos para nortear as ações. Cada caso deve ser considerado individualmente, buscando o equilíbrio das decisões e evitando a obstinação terapêutica em situações de terminalidade da vida. As Comissões de Bioética Clínica poderão auxiliar na tomada de decisão e orientações futuras5.

A tomada de decisão sobre retirar suporte vital, não ofertar suporte vital ou deliberar não reanimação não pode ser colocada em prática sem a concordância do seu representante. Um problema especial se apresenta quando há uma solicitação de retirada ou não oferta de suporte vital pelos pais, sem a convicção do médico de que o solicitado seja aceitável do ponto de vista médico, para o melhor interesse do paciente.

Nesse caso, o princípio da beneficência deve prevalecer sobre o da autonomia do paciente e devem ser estudadas profundamente, de preferência por equipe multiprofissional incluindo psicólogo, psiquiatra, assistente social, religioso e bioeticista, além dos pais. Nessa situação, pode ser de extrema utilidade o parecer factual e isento de um Comitê de Bioética13,14.

A qualidade de vida é a principal razão citada pelos neonatologistas para a tomada de decisão. No artigo sobre decisões médicas envolvendo a vida e propostas para nossa realidade, o CFM ressalta que nós médicos, especialmente os intensivistas13:

"a) nos questionamos sobre nossas decisões em relação ao fim da vida, porque temos a clara percepção de que ainda fazemos uso excessivo e inapropriado da tecnologia, prolongando inutilmente o sofrimento humano, gastando mal os finitos recursos destinados à saúde e ocupando mal os sempre insuficientes leitos das UTIs e emergências;

b) nos vemos desamparados, sob o ponto de vista legal, de tomar qualquer decisão de não oferta ou retirada de suporte vital;

c) sentimos falta de normas e diretrizes de como nos conduzirmos com esses pacientes."


CONSIDERAÇÕES BIOÉTICAS SOBRE AS DECISÕES TERAPÊUTICAS E O LIMITE DE VIABILIDADE

Os melhores preditores de sobrevivência em recém-nascidos (RN) prematuros extremos são o peso ao nascer e a idade gestacional (IG). A taxa de sobrevivência com relação ao peso do nascimento entre 400 e 499 g é de 10 a 20% e com relação à Idade Gestacional igual ou inferior a 23 semanas, de 10 a 30%. Os preditores são estimativas prognósticas sobre a chance de sobreviver15,16.

A bioética não distingue: Não iniciar e Interromper. Eticamente, é mais aceitável retirar a terapia do que não a iniciar, pois oferece ao paciente o benefício da dúvida. Mas a pergunta permanece: quando não iniciar ou interromper os cuidados intensivos neonatais? São fatores determinantes da necessidade do médico em reanimar15:
• Médico: treinado para salvar vidas e faz isso automaticamente;

• Resposta à solicitação da família para "fazer tudo";

• Constrangimento legais. A obstinação terapêutica adotada por muitos profissionais médicos decorre de uma formação inadequada e da postura preventiva contra processos judiciais;

• Conflitos com os pais, com colegas, com a administração ou com ele mesmo.
São consideradas situações de maior risco: a) Prematuridade extrema, devido à análise de viabilidade; b) Malformações congênitas múltiplas, devido à análise da compatibilidade com a vida; e c) Doentes cronicamente doentes sem possibilidade terapêutica.
"O médico deve tentar a cura daqueles que podem ser curados, diminuir a morbidade de doenças onde é possível e assegurar o conforto do paciente. Finalmente, quando a doença evoluir e o paciente estiver prestes a morrer, o médico é obrigado a reconhecer isto e aliviar o processo de morte."
Hipócrates, 430 a.C.
Um dos maiores dilemas ocorre na sala de parto, onde frequentemente são mantidas medidas vigorosas de reanimação em recém-nascidos prematuros extremos, com a possibilidade prognóstica de vida vegetativa. Mas a Sala de Parto é o local mais inadequado para decidir. O "não iniciar ou interromper" poderá levar às mesmas consequências do "não interromper", pois ambos levarão a graves consequências na criança13-15.

A Organização Mundial de Saúde conceitua Cuidados Paliativos como o cuidado ativo e total do corpo da criança, mente e espírito, envolvendo o suporte a familiares, iniciando no diagnóstico e durante todo o tratamento17.

As Comissões Hospitalares de Bioética Clínica, ainda em pequeno número no Brasil, auxiliam equipes de saúde, pacientes e famílias sobre decisões, princípios de beneficência e não maleficência e cuidados paliativos, conforme quadro abaixo (Quadro 1)18.




O projeto de cuidados paliativos neonatais faz sentido em situações de nascimentos no limite da viabilidade extrauterina, naquelas decorrentes da reanimação neonatal com complicações secundárias irreversíveis e nas situações inesperadas, como a asfixia perinatal grave ou no caso do recém-nascido portador de malformações graves não diagnosticadas no pré-natal. Para muitos recém-nascidos com limitada sobrevivência pela extrema prematuridade ou com malformações congênitas e para aqueles que desenvolvem complicações no curso neonatal, chega o momento em que moderar os cuidados agressivos orientados para a cura prolongadoras da vida é considerado o curso da ação ética e medicamente mais apropriado.

Nesse sentido, para Daniel Serrão "nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente aceitável"19. Assim, reconhecer a necessidade de mudar o sentido do cuidado longe do modelo curativo, realçando as medidas paliativas, deve ser acompanhado por ações que integrem uma abordagem interdisciplinar e que visem dar apoio ao bebê que está a morrer e a sua família, neste período de vida tão difícil.
"Se existe um problema jurídico, parece-me que o desafio é adequar as leis às exigências da ética."
Délio Kipper, 2000

REFERÊNCIAS

1. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.

2. Kottow MH. Introducción a la Bioética. Santiago de Chile: Editorial Universitaria; 1995.

3. Motta LCS, Vidal SV, Siqueira-Batista R. Bioética: afinal, o que é isto? Rev Bras Clin Med. 2012;10(5):431-9.

4. Goldim JR. Eutanásia. 2004. [citado 2016 Jun 10]. Disponível em: http://www.ufrgs.br/bioetica/eutanasi.htm

5. Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola; 2001.

6. Siqueira JE, Pessini L, Siqueira CEM. Conflitos morais sobre a terminalidade da vida: aspectos médicos, filosóficos e jurídicos. Rev Colomb Bioét. 2013;8(2):104-15.

7. Department of Health, Education and Welfare. The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. The Belmont Report: ethical guidelines for the protection of human subjects. Belmont: DHEW; 1979 [citado 2016 Set 14]. Disponível em: http://www.hhs.gov/ohrp/regulations-and-policy/belmont-report/

8. Nichiata LYI, Bertolozzi MR, Takahashi RF, Fracolli LA. A utilização do conceito "vulnerabilidade" pela enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem. 2008;16(5):923-8.

9. Ribeiro CDM, Rego S. Bioética clínica: contribuições para a tomada de decisões em unidades de terapia intensiva neonatais. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;3(Suppl.2):2239-46.

10. Toce S. Ethical Decision Making for the Child with a Life-Limiting Condition. Care of the Dying: Supportive Voice. 2001;7(4):6-8.

11. Hill TP. Treating the dying patient. The challenge for medical education. Arch Intern Med. 1995;155(12):1265-9.

12. Jyh JH. I Consenso Brasileiro de Ventilação Mecânica em Pediatria e Neonatologia. Dilemas Éticos no Suporte Ventilatório. São Paulo: AMIB, SBP; 2009.

13. Kipper DJ, Martin L, Fabbro L. Decisões médicas envolvendo o fim da vida – o desafio de adequar as leis às exigências éticas. J Pediatr (Rio J). 2000;76(6):403-6.

14. Kipper DJ. Ética em pesquisa com crianças e adolescentes: à procura de normas e diretrizes virtuosas. Rev Bioét. 2016;24(1):37-48.

15. Castro MP, Rugolo Lígia MSS, Margotto PR. Sobrevida e morbidade em prematuros com menos de 32 semanas de gestação na região central do Brasil. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012;34(5):235-42.

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17. World Health Organization. Cancer pain relief and palliative care in children. Geneva: World Health Organization; 1998.

18. Moritz RD, Lago PM, Souza RP, Silva NB, Meneses FA, Othero JCB, at al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20(4):422-8.

19. Reis CPP. Cuidados Paliativos Pediátricos: Perspetivas dos Enfermeiros [Dissertação de mestrado]. Porto: Universidade do Porto; 2011. 290 p.










1. Profª Adjunto de Pediatria da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Pesquisa Clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-doutora em Ensino em Saúde pela Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Departamento de Bioética da Sociedade Brasileira de Pediatria
2. Prof Adjunto de Pediatria e do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória-ES (EMESCAM). Doutor em Pediatria pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência:
Rosana Alves
Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências da Saúde
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E-mail: rosana.medufes@gmail.com