ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2011 - Volume 1 - Supl.1

A violência contra a criança sob a perspectiva ecológica: implicações para a prática pediátrica

Child abuse under the ecologic perspective: implications to pediatrics practice

RESUMO

O modelo ecológico tem sido utilizado para explicar a eclosão da violência e para propor formas mais adequadas de abordagem e de proteção de crianças e adolescentes. Este modelo sugere que sempre seja considerada a interação complexa de fatores existentes em quatro diferentes níveis: individual, relacional, comunitário e social. Utilizando exemplos, a autora apresenta a importância deste enfoque para a prática pediátrica, relacionando-o com a linha de cuidado para a atenção integral de crianças e adolescentes em situação de violência.

Palavras-chave: cuidado da criança, ecologia, maus-tratos infantis.

ABSTRACT

The ecologic framework is used to explain child abuse and to purpose adequate manners to treat and protect victims. This model suggests that a complex interaction of fours factors need to be considered: individual, relational, communitary and social. Using examples, the author presents this approach’s importance to pediatrics practice, relating it to a care line purposed to the integral attention of children and adolescents in violence’s situation.

Keywords: child abuse, child care, ecology.


INTRODUÇÃO

Há cerca de três décadas, o modelo ecológico vem sendo utilizado para explicar a eclosão da violência, propondo que ela resulte da interação complexa de fatores existentes em quatro diferentes níveis: individual, relacional, comunitário e social1. Assim, além das características pessoais (biológicas, históricas), estão envolvidas as relações sociais próximas (familiares) e os contextos comunitários nos quais estas relações acontecem (escolas, vizinhança). Em um nível mais amplo e que abrange os demais, está a sociedade, com suas características culturais, tabus e normas, além das políticas de saúde, educacionais, econômicas e sociais vigentes.

Em todos os níveis existem fatores de vulnerabilidade, de risco e de proteção interagindo para a ocorrência da violência contra crianças e adolescentes. Ao explorar a relação entre fatores individuais e contextuais, o modelo ecológico desafia os profissionais a ampliar sua visão sobre este grave problema de saúde pública.

Tal como ocorre com as questões de saúde da criança de um modo geral, em relação às quais há um apelo para a necessidade do enfoque biopsicossocial2, no caso da violência é ainda mais premente que os pediatras tomem para si a missão de ir para além dos aspectos orgânicos. Estes, mesmo quando presentes nas vítimas, muitas vezes não são os mais importantes a serem trabalhados nas situações que chegam aos serviços de saúde.

Sendo frequentemente o profissional que suspeita da ocorrência da violência ou em quem a família confia para relatar uma situação, o pediatra precisa ter em mente toda a complexidade do problema que se apresenta. Só assim, será capaz de conduzir adequadamente o caso.


LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO À CRIANÇA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

Recentemente, o Ministério da Saúde propôs que a atenção de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência seja feita sob a forma de linha de cuidado. A recomendação foi apresentada em documento destinado a profissionais e gestores da área da saúde3. Nele, estão descritos os tipos de violência que mais frequentemente acometem crianças e adolescentes, suas formas de manifestação e a estratégia para a ação em linha de cuidado. Esta estratégia considera a abordagem integral desde a promoção da cultura de paz e a prevenção da violência até as dimensões do cuidado indicadas quando a violência é suspeita ou confirmada, a saber: o acolhimento, o atendimento (com destaque para a atitude do profissional e os cuidados profiláticos específicos para as vítimas de abuso sexual), a notificação e o seguimento na rede de serviços necessários para o estabelecimento das ações de cuidado e de proteção social.

É recomendável que a linha de cuidado comece a ser implementada dentro de cada unidade de saúde, por meio do planejamento de ações de promoção e prevenção, de acolhimento adequado, de fluxos internos bem definidos com profissionais capacitados e da existência de rotinas norteadoras para o atendimento e o acompanhamento clínico. Esta linha de cuidado “interna” precisa prever ainda o trabalho em rede com outros serviços da própria área da Saúde e de outros setores (Escolas, Conselho Tutelares, Justiça, Delegacias Especializadas), inserindo-se, assim, na rede intra e interssetorial da linha de cuidado.

Tendo como objetivo proporcionar atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência, a linha de cuidado não poderá ser implementada sem que o pediatra e outros profissionais envolvidos no atendimento tenham uma visão ampla do problema, que lhes permita contextualizar cada caso que se apresente.


A PERSPECTIVA ECOLÓGICA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O CUIDADO

Embora o modelo ecológico venha sendo evocado especialmente para explicar a ocorrência da violência1,4-6, também tem sido utilizado para compreender a heterogeneidade de suas sequelas7 e para propor padrões mais adequados de abordagem do problema, incluindo as possibilidades de proteção da criança8-11.

A seguir, são apresentadas algumas possibilidades de aplicação do modelo ecológico na prevenção e no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência.

Nas consultas de puericultura, nas quais são desenvolvidas ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos de um modo geral, o pediatra pode explorar os riscos para a ocorrência de violência. Deve observar e/ou perguntar de forma sistemática sobre fatores individuais (ex: crianças com comportamento provocativo e as portadoras de deficiências podem expor-se mais; pais com doença mental ou que foram vítimas de violência quando crianças podem ter dificuldade de cuidar adequadamente dos filhos), relacionais (ex: a violência entre os pais está diretamente relacionada à ocorrência de violência contra os filhos), comunitários (ex: desemprego e violência comunitária podem causar impacto no comportamento parental) e sociais (ex: desigualdades relacionadas ao gênero e valores culturais que preconizam o uso da violência ou dificultam intervenções na privacidade da família podem contribuir para a ocorrência da violência)1.

A prevenção de violência física deve fazer parte das consultas pediátricas, uma vez que ela ocorre, na maioria das vezes, no contexto da prática amplamente difundida e aceita da punição corporal como meio de educar crianças e adolescentes. O pediatra precisa conhecer as características próprias das crianças que as colocam em maior risco para punição física (as mais inquietas e as desafiadoras, por exemplo), as relações familiares que facilitam esta prática (agressões físicas e verbais entre os pais; divergências sobre as regras para educar os filhos), as ideias dos cuidadores a respeito do assunto, a utilização da punição pela comunidade onde a família reside e a aceitação dessa prática no seu meio social. Só assim, é possível ter conversas francas sobre a educação dos filhos e auxiliar a família na escolha de formas não agressivas de estabelecer limites, acordos e regras, bem como ajudar os pais a superar suas dificuldades.

Tão importante quanto avaliar os fatores de risco para a ocorrência de violência é identificar os fatores de proteção, como, por exemplo, a existência de familiares mais resilientes ou com maior habilidade para solucionar problemas e de redes de apoio familiar e comunitária. Quando fragilizada, a família pode ter dificuldades para reconhecer os fatores de proteção, precisando ser fortalecidas e estimuladas a lançar mão de seus próprios recursos em prol da superação de problemas e do desenvolvimento de uma dinâmica saudável para o desenvolvimento da criança. O pediatra pode auxiliar nesse processo.

O conhecimento dos pais sobre as etapas de desenvolvimento é identificado como um dos cinco fatores determinantes para evitar a ocorrência da violência contra crianças12 e as orientações a esse respeito são recomendadas nas consultas de puericultura. Ao adquirirem este conhecimento, os pais diminuem suas frustrações, melhorando as relações familiares, e podem evitar a prática da violência que ocorre por esperarem condutas não compatíveis com a idade da criança. Não é raro, por exemplo, que as crianças sofram violência física ou psicológica por não terem o controle de esfíncteres, muitas vezes exigido antes da idade ideal. Da mesma forma, alguns pais passam a negligenciar o tratamento de escolares e adolescentes portadores de doenças crônicas, ao transferirem para eles a responsabilidade dos cuidados quando ainda não estão preparados para assumi-los.

Cabe lembrar que, não sendo estanques, os fatores de risco e de proteção terão que ser revisitados periodicamente nas consultas, para que o pediatra possa saber se continuam presentes, se surgiram novos, com que intensidade afetam a vida da criança e dos familiares e decidir “se”, “quando” e “como” deve ser feita alguma intervenção.

Quando o pediatra se vê diante de uma suspeita ou de um caso confirmado de violência, o momento do acolhimento é peculiar por ser determinante para toda a linha de cuidado. Este é um momento delicado e, algumas vezes, com desdobramentos imprevisíveis, na medida em que, além da influência da situação de violência em si (tipo e gravidade, características pessoais das vítimas, dos agressores e dos acompanhantes, dentre outros fatores), somam-se as características dos profissionais que prestam o atendimento. A formação, a história de vida, as crenças, os valores morais e as experiências pessoais de todos (equipe e família) são postos no ambiente onde o assunto é tratado, demandando dos profissionais - nesse momento na situação de cuidadores - a habilidade de mantê-lo o mais harmonioso e acolhedor possível (inclusive para o autor da agressão, caso esteja presente). A capacidade de prestar acolhimento adequado nas situações de violência pode ser desenvolvida com conhecimentos teóricos sobre o tema e com experiência de atendimento, que garantem mais segurança e tranquilidade ao profissional.

Quando é revelado um caso de violência, não é raro que a equipe passe a agir como se houvesse uma emergência, ignorando que muitas vezes as situações estejam sendo vivenciadas em família há longo tempo. Abordagens realizadas de modo precipitado podem ser desastrosas para a família e desconfortáveis para a equipe. É aconselhável que haja avaliação abrangente da situação e reflexão antes da tomada de decisões (às vezes, até mesmo antes de expor para a família uma possível suspeita). Essa avaliação pode demandar alguns encontros com a família e o envolvimento de outros profissionais que o pediatra ache necessário (assistente social, psicólogo, psiquiatra, etc). Feita desta forma, poderá fornecer subsídios para fundamentar melhor uma suspeita ou elaborar uma proposta de ação mais de acordo com as necessidades do caso.

Outro aspecto importante a ser destacado é que, algumas vezes, os pais são acusados de negligenciar tratamentos sem que haja uma tentativa de conhecer os motivos que os levam a não seguirem certas recomendações médicas. Cabe lembrar que os pais podem agir assim por falta de compreensão, por não aceitarem ou não acreditarem no tratamento proposto e até mesmo por incapacidade de perceberem a gravidade de certos quadros, embora sem a intencionalidade de causar danos. Esses pais necessitam de um espaço de escuta, onde possam se expressar livremente e ser esclarecidos por parte do pediatra que assiste a criança. Essa conduta abre caminho para muitas descobertas, tanto pela família quanto pelos profissionais, permitindo traçar soluções acordadas entre ambas as partes e com maior chance de serem cumpridas.

É também importante verificar a capacidade dos pais para reconhecerem suas dificuldades e a disposição para aceitar ajuda. Essa disponibilidade é fundamental para que a equipe de saúde consiga implementar ações que possam mudar comportamentos. Quando ausente, dificulta o trabalho e exige medidas mais intervencionistas para a proteção da criança. Acionar a rede de apoio familiar e/ou social é fundamental caso seja verificado que o responsável não consegue seguir ou não aceita as intervenções. O Conselho Tutelar, cuja missão principal é garantir os direitos das crianças e adolescentes, é um parceiro fundamental na garantia dessas medidas protetivas.

A aplicação do modelo ecológico nas dimensões do cuidado das crianças, adolescentes e familiares em situação de violência tem ainda outras duas implicações práticas.

A primeira, é que não há como seguir protocolos de atendimento fechados, embora seja útil criar algumas rotinas básicas e flexíveis, adaptáveis para diferentes situações. Em outras palavras, o cuidado é sempre individualizado, por ser praticamente impossível duas situações possuírem os mesmos contextos individual, relacional, comunitário e social.

A segunda, é que as avaliações mais aprofundadas levantam problemas que não são usualmente postos nas consultas estritamente voltadas para questões biológicas. E muitos deles precisam ser enfrentados para que a situação de violência seja resolvida. Há, então, a necessidade de selecionar o foco da atenção de acordo com as especificidades do caso, priorizando algumas ações em detrimento de outras e construindo, junto com as famílias, os caminhos com maior chance de resultados satisfatórios e duradouros.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os pediatras recém-formados, fica a sugestão de incorporarem a visão ecológica não apenas para a atenção à violência, mas a todos os demais agravos à saúde de crianças e adolescentes. Considerar o paciente sem separá-lo de seu contexto de vida precisa ser um exercício diário. Sendo esta visão sistematicamente utilizada, seus desafios passam a ser mais facilmente enfrentados e as propostas de ação tornam-se mais eficazes e em acordo com as demandas e capacidades dos pacientes e de suas famílias.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Série F: Comunicação e Educação em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_criancas_familias_violencias.pdf

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Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ. Coordenadora do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência do IPPMG/UFRJ. Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/FIOCRUZ.

Correspondência:
Ana Lucia Ferreira
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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