Relato de Caso
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Ano 2018 -
Volume 8 -
Número
2
Linfangiectasia renal bilateral: Um caso associado a derrame pleural, ascite e policitemia
Bilateral renal lymphangiectasia: a case associated with pleural effusion, ascites and polycythemia
Nathalia Gravina Bottino1; Marcio Fernandes Nehab2
RESUMO
A linfangiectasia renal é uma desordem do sistema linfático renal rara e benigna, relatada tanto em adultos como em crianças, podendo ser congênita ou adquirida. O conhecimento desta condição é baseado em relato de casos isolados. A apresentação é variada, podendo ser sintomática ou não. Relatamos o caso de um paciente de 13 anos com linfangiectasia renal bilateral associada a policitemia, derrame pleural e ascite durante sua internação na enfermaria de Pediatria.
Palavras-chave:
linfangiectasia, derrame pleural, policitemia, ascite, rim.
ABSTRACT
Renal lymphangiectasia is a rare and benign disorder of the renal lymphatic system, reported in both adults and children. It can be either congenital or acquired. Knowledge of this condition is based on isolated case reports. The presentation is varied, and the condition may be symptomatic or asymptomatic. This article reports the case of a 13-year-old patient with bilateral renal lymphangiectasia associated with polycythemia, pleural effusion, and ascites during hospitalization in the pediatric ward.
Keywords:
Pleural Effusion, Ascites, Polycythemia, Kidney, Lymphangiectasis.
INTRODUÇÃO
A linfangiectasia renal é uma entidade pouco frequente e conhecida1-3. É uma desordem benigna do sistema linfático renal relatada tanto em adultos como em crianças, podendo ser congênita ou adquirida1,2. O conhecimento desta condição é baseado em relato de casos isolados1,2. Formas de apresentação variadas foram descritas, podendo ser um achado de exame de imagem assintomático, ou estar associado a hematúria, proteinúria, dor em flancos, dor/distensão abdominal, massa abdominal palpável, edema de extremidades, hipertensão arterial, policitemia, efusão pleural e ascite2-5. Em alguns casos, pode haver falência renal2-5.
O tratamento irá depender das complicações apresentadas e da gravidade2,3,5. Um total de 43 casos de linfangiectasia renal foram reportados entre 1890 e 19932. Somente 14 casos foram descritos desde 1993 na literatura, três deles com derrame pleural2,6,7 e quatro com policitemia2,6,8,9. O objetivo deste artigo é relatar o caso de um paciente de 13 anos, com linfangiectasia renal bilateral, associada a derrame pleural, ascite e policitemia, e sem alteração da função renal durante sua internação em enfermaria de Pediatria.
RELATO DO CASO
Paciente masculino, 13 anos, 165 cm, negro, com diagnóstico de linfangiectasia renal bilateral há 4 anos. Foi referenciado ao centro de tratamento intensivo (CTI) do nosso hospital transferido da Unidade Básica de Saúde com quadro de pneumonia que, após 10 dias de febre, evoluiu com dispneia um pico hipertensivo de 160X100 mmHg (acima de 135x90 mmhg calculado como percentil 99% de pressão arterial para a idade e estatura). Na admissão do CTI paciente apresentava-se hemodinamicamente estável, sendo necessária oxigenoterapia em máscara e iniciados cefepime, azitromicina e oseltamivir.
Após dois dias, foi transferido para enfermaria já em ar ambiente, em bom estado geral, eupneico, pressão arterial (PA)=129X75 mmHg. De alterações ao exame físico, apresentava: murmúrio vesicular reduzido em bases de hemitóraces direito e esquerdo, massa palpável em flancos direito e esquerdo, com dor à palpação profunda de flanco esquerdo.
Os exames laboratoriais evidenciavam policitemia (hematócrito=52,4%, hemoglobina=16,2 g/dl), leucócitos=14.000/mm3 (0/2//0/0/10/63/13/12), EAS normal, sem proteinúria ou hematúria, função renal normal, ureia=10 mg/dl, creatinina=0,59 mg/dl, PCR=6,9 mg/dl (< 0,5 mg/dl). Ecocardiograma: sem alterações
Na história patológica pregressa possuía incontinência urinária e enurese noturna, sem acompanhamento médico há 2 anos.
A ultrassonografia abdominal evidenciava rins aumentados de volume (± 18 cm), com múltiplos cistos periféricos e em pelve renal bilateralmente. Não compatível com doença renal multicística. A ultrassonografia de tórax evidenciava pequeno derrame pleural direito homogêneo e derrame pleural esquerdo laminar com atelectasia.
Na tomografia havia derrame pleural bilateral pequeno, maior à esquerda, e ascite. Rins tópicos com grande aumento de volume, de contornos lobulados, com espessamento parenquimatoso difuso (Figuras 1 e 2).
Figura 1. Rins tópicos com grande aumento de volume, de contornos lobulados, com espessamento parenquimatoso difuso, sem sinais de dilatação pielocaliciana ou ureteral. Presença de cistos corticais esparsos e de formação císticas localizadas nos espaços perirrenais e nos seios renais que distorcem e estiram o sistema coletor, sem determinar dilatação, compatível com cistos parapiélicos. Considerar hipótese de linfangioma/linfangiectasia renal. Tomografia computadorizada de abdome.
Figura 2. a) Pequeno derrame pleural bilateral, com atelectasia compressiva do parênquima pulmonar em correspondência. b) Derrame pleural maior à esquerda. c) Pequena quantidade de líquido livre na cavidade abdominal (seta vermelha). d) Presença de infiltração líquida nos espaços pararrenais. Presença de circulação colateral venosa pararrenal direita que comunica as veias renal direita e cava. Tomografia computadorizada de tórax, abdome e pelve.
Paciente trouxe laudo de biopsia renal realizada em 2011:
Cápsula renal com tecido fibro-adiposo intensamente vascularizado, permeado por infiltrado inflamatório polimorfonuclear ao lado de grandes estruturas vasculares de paredes hialinas e revestimento aplanado compatíveis com linfangiectasia.
Parênquima renal com tecido fibroso e proliferação vascular capsular associado à extensa faixa de hialinização subcapsular contendo alguns ductos necróticos. Glomérulos de tamanhos variados com ectasia dos espaços de Bowman, esclerose glomerular focal, infiltrado inflamatório predominantemente mononuclear permeando o parênquima, que mostra fibrose e dilatação focal de ductos.
Observa-se ectasia vascular difusa de permeio aos ductos e glomérulos, por vezes ao grau de microcistos.
O quadro histológico, associado aos exames de imagem e à história clínica é compatível com nefromegalia por linfangiectasia renal e pielonefrite crônica por compressão. Ausência de restos embrionários ou de neoplasia neste material.
Não foi necessária realização de drenagem pleural, pois paciente estava eupneico e estável.
Foram completados 10 dias de tratamento com cefepime e 5 dias com azitromicina. Manteve-se com PA normal, após estabilização inicial, no restante da internação (abaixo de 124X78 mmhg, de acordo com percentil de PA calculado para estatura e idade), sem necessidade de anti-hipertensivos e função renal normal. Recebeu alta para seguir acompanhamento pela pediatria geral e urodinâmica.
DISCUSSÃO
Pouco mais de 50 casos de linfangiectasia renal sintomática foram descritos desde 18902,6. Os pacientes se apresentam em qualquer idade, não há predileção por sexo, sendo a maioria bilateral (90%) e assintomática2,10. Quando sintomática, tem sido associada com dor abdominal em flancos, hematúria, proteinúria, distensão/massa abdominal, hipertensão, policitemia, derrame pleural, ascite, fadiga, perda de peso, pielonefrite e, raramente, disfunção renal2,5,6,10.
Sua patogênese ainda é incerta, mas há a hipótese de que resulta de malformação do desenvolvimento do tecido linfático renal, ocasionando obstrução e acúmulo e linfa no parênquima, região subcapsular e hilo6,10. Lesão adquirida pós-trauma, cicatrização ou inflamação é outro mecanismo proposto6,11. Alguns sugerem que seja um processo neoplásico benigno1,11.
Os diagnósticos diferenciais incluem doença renal policística, nefroblastomatose, linfoma, nefroma cístico multilobular, hidronefrose, hematoma, abscesso ou outras causas de massa renal7,10,12.
O diagnóstico da linfangiectasia renal é baseado em dados clínicos em conjunto com os achados da ultrassonografia, ressonância magnética e tomografia1. Pode ser confirmado com aspiração por agulha de fluido quiloso e coleções perinéfricas que evidenciam predomínio linfocitário (> 90%), porém raramente é necessário1,2,11.
Os achados em exames de imagem incluem cistos peripélvicos e coleção fluida perirrenal7. Na ultrassonografia visualizam-se cistos simples, anecoicos, com paredes bem definidas7. Os rins podem estar aumentados e com perda da relação corticomedular7. Na tomografia computadorizada visualizam-se também as coleções fluidas, mas os septos podem não ser bem definidos7.
Caracteristicamente, não há invasão de estruturas adjacentes, embora possam estar em contiguidade ou deslocadas pela lesão5,7. Em caso de extensão para pelve ou região retroperitonial, os diagnósticos diferenciais tornam-se mais prováveis10. Em relação à doença renal policística, principal diagnóstico diferencial, os cistos ocorrem no córtex renal, enquanto na linfangiectasia o córtex renal é normal, além de o sistema pielocaliciano não apresentar dilatações12.
Neste caso, o paciente apresentava na tomografia computadorizada rins com grande aumento de volume, de contornos lobulados, com espessamento parenquimatoso difuso, sem sinais de dilatação pielocaliciana ou ureteral, além de formação císticas localizadas nos espaços perirrenais e nos seios renais que distorcem e estiram o sistema coletor, sem determinar dilatação. Ou seja, apresentava cistos localizados na pelve renal, o que é característico de linfangiectasia. Outros diagnósticos como nefroblastoma, linfoma e nefroma multinocular cístico também podem ser excluídos pelo fato de todos envolverem o parênquima renal12.
O tratamento dos casos assintomáticos é conservador12. Diuréticos e anti-hipertensivos podem ser utilizados em pacientes sintomáticos12. Casos complicados podem ser tratados com nefrectomia (se unilateral), drenagem percutânea, ou marsupialização dos cistos para o retroperitônio, especialmente em caso de dor, hematúria ou hipertensão arterial dependente de renina1,7,8. Este procedimento está associado à ascite recorrente, que pode ser abordada com diuréticos8.
Embora o diagnóstico seja baseado em exames de imagem, a biópsia renal foi feita em alguns casos2. Neste caso, o paciente já havia realizado biopsia renal no momento do diagnóstico aos 8 anos, que corroborou o diagnóstico ao evidenciar na cápsula renal estruturas vasculares de paredes hialinas e revestimento aplanado compatíveis com linfangiectasia e detectou ainda pielonefrite crônica por compressão. Foram descartadas neoplasias.
No presente relato, paciente apresentou derrame pleural, ascite, policitemia, sem alteração da função renal. Houve um pico hipertensivo no início do quadro, porém manteve a pressão normal no restante da internação.
Há poucos casos de associação com derrame pleural na literatura2. Nosso paciente apresentou derrame pleural bilateral pequeno, que não necessitou drenagem, embora tenha sido internado com dispneia. Foi iniciado tratamento para pneumonia no momento da admissão, quando não se tinha ciência da doença de base, tendo sido completada a antibioticoterapia. No entanto, consideramos mais provável que o derrame pleural tenha sido por transudação relacionada à linfangiectasia do que por processo parapneumônico, embora não tenhamos como comprovar esta hipótese.
De todo modo, consideramos válido ponderar que, mesmo em vigência de pneumonia, um paciente com linfangiectasia renal pode apresentar derrame pleural, não por processo parapneumônico, mas sim pela sua doença de base. O fato de apresentar ascite poderia corroborar o diagnóstico de transudação. Assim como pela presença de policitemia e massa abdominal dolorosa, características descritas associadas à doença de base.
O paciente apresentava níveis de hematócrito e hemoglobina superiores aos normais para sua idade, não era tabagista e não tinha nenhuma outra causa mais provável para a policitemia. O mecanismo proposto para a policitemia é a isquemia causada pela compressão renal e a consequente secreção de eritropoietina pelos linfangiomas perinéfricos8-10. Não houve complicações relacionadas e não foi necessário tratamento.
É controversa a abordagem terapêutica da policitemia secundária à linfangiectasia renal10. Há relatos que necessitaram intervenção e foram realizadas flebotomias para controle da hemoglobina9,10.
Alguns autores referem que em caso de manejo cirúrgico a marsupialização é preferida em detrimento da drenagem percutânea10. No entanto, não há indícios de que a marsupialização dos cistos melhore a policitemia, além de causar significativa morbidade, não sendo, portanto, recomendada nesses casos8. A escleroterapia é referida como tratamento promissor10.
CONCLUSÃO
A linfangiectasia renal é uma entidade rara, muitas vezes congênita, que pode progredir para falência renal. Seu conhecimento é devido a relato de casos isolados, o que torna difícil seu diagnóstico precoce e o manejo de suas complicações, principalmente em situações de urgência e emergência. É importante que os pediatras tenham informação sobre esta doença e de suas possíveis associações, beneficiando o diagnóstico, a terapêutica e o seguimento dos pacientes.
Nós apresentamos um caso de associação com derrame pleural, ascite, policitemia e massa abdominal dolorosa que necessitou de tratamento de suporte. O seguimento clínico deve ser feito com controle do hemograma, monitorização da função renal, da pressão arterial e com exames de imagem.
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1. Pós-graduação - Residente de Pediatria R2 do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2. Mestrado - Médico pediatra e preceptor da Residência Médica em Pediatria do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência:
Marcio Fernandes Nehab
Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF)
Avenida Rui Barbosa, nº 716, Flamengo
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 22.250-020
E-mail: marcio.nehab@gmail.com
Data de Submissão: 26/10/2016
Data de Aprovação: 25/07/2017